Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-americano (Parte 22)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de julho de 2015, 8h04

Spacca
1. O método do caso e a didática do ensino jurídico norte-americano
O ensino do Direito nos Estados Unidos da América poderia ser muito próximo do que se pratica na Europa não fosse a intervenção de um homem, Christopher Columbus Langdell (1826-1906), deão da Harvard Law School no período de 1870 a 1895.  O que é mencionado no Brasil como uma das grandes inovações pedagógicas — o método do caso — foi criado por Langdell para a Universidade de Harvard no final do século XIX e ainda hoje é um padrão para um número significativo dos cursos jurídicos estadunidenses, apesar das críticas e das tentativas de sua superação.[1]

Langdell não pertencia ao mainstream acadêmico norte-americano. De origem relativamente humilde para os padrões aristocráticos de Harvard, Langdell foi nomeado para o decanato da escola de Direito por indicação do reitor Charles William Eliot. Tão longo assumiu o cargo, Christopher Columbus Langdell iniciou uma série de reformas na administração, no perfil pedagógico e na matriz curricular do curso de Direito.  

O case method utiliza-se de fundamentos do método socrático e, muita vez, é a ele reduzido, o que é um equívoco. [2] A concepção de Langdell abrange a maiêutica, mas também admite elementos da aula magistral e a realização de seminários pelos alunos. O centro do método, no entanto, é a análise de decisões das cortes norte-americanas em detrimento do estudo de manuais ou da assistência das grandes aulas-magnas. O aluno é convidado a ler, analisar e a interpretar os casos por si mesmo. O professor submete os estudantes a uma série de perguntas e vai construindo as soluções a partir dessas respostas. O conhecimento do caso e o estudo prévio são indispensáveis para a fluência da aula e para que o método não fracasse.

No início do século XX, o case method disseminou-se pelas grandes universidades americanas e, ainda hoje, é central para o sistema de educação jurídica daquele país.[3]

Na atualidade, com a crise generalizada do ensino jurídico norte-americano, reforçam-se as críticas ao case method e começam a surgir alternativas ao modelo de Langdell. Os adversários ao método afirmam que ele gera um nível elevado de estresse, de competitividade e, não raras vezes, de humilhação aos alunos que não estudam previamente os casos ou não conseguem ter participação mais efetiva nos debates e na construção do raciocínio em sala de aula. Veja-se esta interessante descrição do método de Langdell feita em um profundo estudo sobre o ensino jurídico norte-americano, elaborado por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, baseado em Legal education as training for hierarchy, de Duncan Kennedy:

“O case method parte de prévia determinação de pesada carga de leitura para os alunos. A frequência das aulas é precedida de intenso estudo. O aluno vai preparado. Decisões judiciais são rigorosamente lidas, estudadas, digeridas. Há sabatina em todas as aulas. Professores torturam, assustam, humilham os alunos. Alguns estudantes escondem-se. Sentam-se nas últimas filas (back-benching) ou pedem formalmente (por bilhetes depositados na mesa do professor antes do início da aula) para não serem arguidos (no-hassle pass). Os lugares que os alunos ocupam na sala de aula, nos auditórios, são escolhidos no primeiro de dia de aula. Os estudantes marcam seus nomes em diagrama, que ficará em posse do professor. As secretarias (registrars) enviam fotografias dos alunos aos professores. Esses têm na mesa, ao lado dos livros, nome, fotografia e localização do aluno. O controle é absoluto”.[4]

A ausência de um sistema legal codificado, a força dos precedentes, o caráter estadualizado do Direito, a centralidade do juiz e a ruptura com os padrões romano-germânicos de ensino são elementos que tornaram o case method tão bem-sucedido nos Estados Unidos e também que explicam sua não proliferação para outros países. Some-se a isso o fato de que o ensino de Direito nos Estados Unidos não é massificado como no Brasil e nem possui um número tão grande de alunos nos semestres iniciais, como se dá na Europa. 

Sua aclimatação no Brasil, que é defendida por alguns, deve levar em consideração todos esses elementos. Não se pode considerar, de modo apriorístico, o case method superior ao lecture method, muito menos admiti-lo como mais moderno — ele tem mais de 100 anos — ou mais eficaz — a atual crise americana põe em dúvida esse êxito. Ele é apenas um de entre os métodos disponíveis e deu certo durante muito tempo em uma sociedade capitalista avançada, com elevado nível de competição e com a forte marca de que o fracasso não admite solidariedade. Os alunos dedicam-se fortemente ao estudo de seus casebooks e a vida universitária é tomada pela preocupação com a solução desses casos. Como elemento negativo, está o desinteresse por sistematizações, teorias gerais e questões metajurídicas.

O método alemão, que foi descrito nas colunas sobre o ensino jurídico na Alemanha, tem diversos elementos do case method, mas com a necessária combinação com o lecture method (as aulas magistrais) e um forte amparo no conhecimento literal da legislação. Para além disso, os alemães acreditam na existência de “uma resposta correta”, embora trabalhem com situações criadas pelos elaboradores dos casos, muitas delas com enorme complexidade fática.[5]

Como dito, além do método do caso, os estudantes norte-americanos também se submetem a algumas aulas-magistrais, que mais se assemelham ao conceito brasileiro de palestras ou conferências. As lectures são bem mais raras, no entanto. Existem também os seminários, nos quais os alunos apresentam um determinado tópico e são arguidos pelo professor e pelos colegas, sem qualquer abertura para o espírito de proteção recíproca tão comum no Brasil.

A realização de julgamentos simulados (court moots) é também comum nos cursos jurídicos norte-americanos.

As notas, os conceitos e o desempenho acadêmico podem definir o futuro do estudante. Não há tempo a perder e o fracasso não será recompensado ou tratado com leniência. O sistema elimina os menos aptos e as portas dos melhores empregos não se lhes abrem. Evidentemente que o espaço para os menos dotados de méritos acadêmicos ou de recursos financeiros existe: as atividades desportivas, a política, as Forças Armadas ou seguir negócios familiares. Neste ponto, ricos e pobres assemelham-se. Mas, só neste ponto.

2. A matriz curricular: o modelo da Escola de Direito de Harvard
Atribui-se também a Christopher Columbus Langdell a composição da matriz curricular básica do primeiro ano dos cursos de Direito dos Estados Unidos, a qual segue até hoje adotada em Harvard, com algumas modificações.

O primeiro ano (First Level ou 1L) é a etapa mais importante para a formação jurídica do aluno. Em Harvard, ingressam no 1L um número aproximado de 560 alunos, que se dividem em 7 seções compostas por 80 estudantes, cada uma delas sob coordenação de um docente sênior. É neste período que os alunos da Harvard Law School) são levados a cursar as seguintes disciplinas obrigatórias:  a) Direito Processual Civil (Civil Procedure), b) Contratos (Contracts), que corresponde parcialmente a nosso conteúdo de Direito das Obrigações, Direito dos Contratos e parte do Direito das Coisas; c) Direito Penal (Criminal Law); d) Legislação e Regulação (Legislation and Regulation),  que abrange parte do conteúdo do que seria o Direito Constitucional; e) Property, que corresponde parcialmente a nosso conceito de Direito das Coisas, dada a ausência de linhas muito claras entre negócios jurídicos de translação dominial e o Direito dos Contratos; f) Responsabilidade Civil (Torts); g) Direito Internacional ou Comparado (International or Comparative Law); h) Oficina de Solução de Casos Práticos (Problem Solving Workshop).[6]

No primeiro ano, é também necessária a frequência à disciplina de Pesquisa e Redação Jurídica para o Primeiro Ano (First-Year Legal Research and Writing). Diferentemente do que se imagina no Brasil, não há qualquer preocupação em formar o aluno para a “pesquisa científica” no sentido que se emprega em nossas faculdades. O objetivo é bem menos ambicioso e muito mais pragmático: o discente tem a oportunidade de aprender, sob a tutoria de bibliotecários, a pesquisar nas bases jurídicas contratadas pela escola de Direito (LexisNexis, Jstor, WestLAw)  e pelos diversos livros ou compêndios eletrônicos de  cases, que vêm substituindo os velhos tomos das grandes coleções de cases dos tribunais norte-americanos.[7] O manuseio dessas fontes é essencial para que o futuro advogado exerça sua profissão. Mais do que isso, é indispensável para que ele resolva muitos dos problemas que serão colocados em sala-de-aula nas atividades do case method.

Além dessa função de educar o estudante na pesquisa de bases de dados e de repertórios de cases, a disciplina pretende moldar seu pensamento para raciocinar juridicamente e resolver os casos, além de se adaptar a linguagem jurídica e ao método de elaboração das peças jurídicas.

O aluno também deve participar do Programa Ames de Audiência Simulada do Primero Ano (First-Year Ames Moot Court Program).[8] O nome do programa é uma homenagem a James Barr Ames (1846-1910), em cujo nome há uma fundação vinculada à Havard Law School e que foi um dos pioneiros do ensino jurídico por meio de casos e do uso de simulações de atividades judiciárias[9]. Essa “disciplina” compreende a pesquisa e a elaboração de uma peça relativa a um caso simulado que tramitaria em um tribunal federal ou distrital. O trabalho é feito por dois alunos em conjunto. No fim do semestre, o discente defende seu caso perante um painel composto por 3 “juízes”, os quais são escolhidos de entre professores de Harvard, advogados ou estudantes de nível mais elevado no curso.[10] 

Se aprovados no severo regime do primeiro ano, o aluno seguirá para o segundo e terceiro anos, nos quais ele terá maior liberdade de escolha das disciplinas, embora haja uma distinção entre créditos de livre matrícula e créditos que são obrigatoriamente escolhidos dentro de um rol específico de matérias. Nessa etapa do curso, haverá disciplinas com carga horária em sala de aula, seminários, grupos de leitura, produção de trabalhos escritos, atividades de extensão e algumas disciplinas fora do curso de Direito.

A correlação entre disciplinas obrigatórias, optativas dentro de um rol fechado de escolha e de escolha totalmente livre é de aproximadamente 80% para as duas primeiras categorias e 20% para a última. Mesmo no sistema norte-americano, as disciplinas livres não ultrapassam as obrigatórias e as de escolha tipificada.   

A existência de disciplinas restritas e disciplinas livres fez com que a universidade preestabelecesse grandes eixos temáticos no curso de Direito, de modo a impedir uma formação completamente aleatória pelos alunos. Os programs of study correspondem a esses eixos e assim se apresentam: a) Direito e Estado (Law and Government); b) Direito e Negócios (Law and Business); c) Direito Internacional e Comparado (International and Comparative Law); d) Direito, Ciência e Tecnologia (Law, Science, and Technology); e) Direito e Mudança Social (Law and Social Change); f) Justiça Criminal (Criminal Justice). g) Direito e História (Law and History)[11]. Se forem pesquisados os conteúdos desses “programas” no site da Escola de Direito de Harvard, ver-se-ão o quão eles se revelam assimétricos e de difícil transposição para o Direito brasileiro. Por exemplo, no tópico Law and Business, estudam-se matérias de Direito Societário, Propriedade, Direito Tributário e Direito Regulatório.[12] No “programa”  Law, Science, and Technology, é possível estudar Direito da Propriedade Intelectual, Direito da Saúde e Direito da Internet.[13]

***  

A infinidade de detalhes e a complexidade do modelo norte-americano não permite que todos os aspectos sejam examinados em cada coluna. Na próxima semana, continuar-se-á a análise da estrutura interna dos cursos jurídicos e, em seguida, iniciar-se-á a exposição sobre as law schools, a carreira docente e, na sequência, as demais profissões jurídicas nos Estados Unidos.


[1] Registre-se que A. Almeida Júnior, na aula inaugural dos cursos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo, proferida em 18 de março de 1947, fez uma bela descrição do ensino jurídico norte-americano e do case method na década de 1940. A conferência foi intitulada “A propósito do ensino de direito nos Estados Unidos” e fez-se publicar na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ano 1947, v.42,  p.125 a 159.

[2] Demonstrando as diferenças entre o método socrático e o método do caso, veja-se: JACKSON, Jeffrey D. Socrates and Langdell in legal writing: is the socratic method a proper tool for legal writing courses? California Western Law Review. v. 43, n. 2, pp. 267-308, Spring, 2007.

[3] Sobre a evolução do ensino jurídico estadunidense e o impacto de Langdell em sua transformação, consultar: STEVENS, Robert Bocking. Law school: Legal education in America from the 1850s to 1980s. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1987; KIMBALL, Bruce A. The proliferation of case method teaching in American Law Schools: Mr. Langdell's emblematic “abomination,” 1890-1915. History of Education Quarterly. v. 46, Issue 2, pp.192–247, Jun, 2006.

[4] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Direito e educação jurídica nos Estados Unidos. Revista Seqüência, n.º 48, p. 29-40, jul. de 2004. p.38.

[5] Sobre a comparação entre o método norte-americano e o germânico de ensino jurídico, com ênfase no Direito Comparado, consulte-se este artigo escrito por um autor alemão:  GROTE, Rainer. Comparative Law and teaching law through the case method in the Civil Law Tradition: A German perspective. University of Detroit Mercy Law Review. v. 82,  Winter, 2005.

[7] “Para a pesquisa de casos, leis e artigos jurídicos, os EUA contam com duas editoras gigantes na área de publicações jurídicas: a WestLaw e LexisNexis. Ambas são empresas privadas que dominam grande parte do mercado de publicações de leis, casos e artigos jurídicos (tanto impressos, como via internet. Este último é o mais popular, pois oferece consultas e resultados múltiplos e instantâneos. Para profissionais e escritórios de advocacia, os serviços ofertados por estas empresas são altamente onerosos. Para estudantes, o serviço é gratuito. A intenção é tornar os futuros profissionais desde logo dependentes das aludidas ferramentas de pesquisa, que depois passarão a adquirir em suas vidas  profissionais” (SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Breve panorama do ensino e sistema jurídico norte-americano. Disponível em http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/file/Breve%20Panorama%20do%20Ensino%20e%20Sistema%20Jur%C3%ADdico%20Norte-Americanos.pdf. Acesso em 5-7-2015).

[8] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/lrw/course-overview/. Acesso em 8-7-2015.

[9] Sobre a Fundação Ames, consulte-se: http://hls.harvard.edu/dept/lrw/course-overview/. Acesso em 9-7-2015.

[10] Disponível em: http://hls.harvard.edu/dept/lrw/course-overview/. Acesso em 8-7-2015.

Autores

  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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