Diário de Classe

As pílulas do ativismo anticoncepcional
da Justiça do Trabalho

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18 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Há quem diga que o “Direito do Trabalho não é Direito”. Ou, ainda, que “a Justiça do Trabalho é terra sem lei, que cada juiz é seu próprio código” e que ela “constitui um mundo à parte do sistema jurídico”. Não concordamos com nenhuma dessas afirmações. É importante que isso fique bem claro. Quais as razões, entretanto, que levaram à formação desse imaginário? Difícil responder nos limites de uma coluna. De todo modo, uma coisa é certa: a justiça do trabalho – e, aqui, incluem-se os seus atores, uma vez que ela não existe por si só – contribui para isso. Vejamos um exemplo que simboliza e/ou justifica o “que falam por aí da justiça laboral”:

Após toda a discussão em torno da I Jornada sobre o Novo Código de Processo Civil, promovida Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (GO), nos dias 25 e 26 de junho desse ano (veja aqui), eis que são divulgados os enunciados aprovados pelos juízes e servidores daquele Tribunal ao final do evento científico (relatório da comissão). Recebemos dezenas de e-mail questionando especificamente os mais polêmicos:

Enunciado 12 – I Jornada sobre o Código de Processo Civil de 2015.
“DISCIPLINA DA FUNDAMENTAÇÃO. CPC, ART. 489, § 1° E CF, ART. 93, IX. DEVER CONSTITUCIONAL. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE: CLARA, PRECISA E ESPECÍFICA. A premissa maior do Código de Processo Civil repousa em observar a Constituição, de modo que uma lei infraconstitucional não tem o poder de alterar o significado das normas constitucionais, por uma questão de hierarquia. O dever de fundamentar é constitucional (art. 93, IX) e o STF já decidiu que não há necessidade de rebater, de forma pormenorizada, todas as alegações e provas. A fundamentação, que pode ser concisa, será suficiente quando for clara – acerca da análise do direito, específica – quanto ao caso proposto, e precisa – quando indicar com exatidão a adequação dos fatos ao direito”.

Enunciado 13 – I Jornada sobre o Código de Processo Civil de 2015.
“AINDA QUE SE REPUTE POR CONSTITUCIONAL, REVELA-SE MANIFESTAMENTE INAPLICÁVEL AO PROCESSO DO TRABALHO O DISPOSITIVO DO NOVO CPC QUE EXIGE FUNDAMENTAÇÃO SENTENCIAL EXAURIENTE, COM O ENFRENTAMENTO DE TODOS OS ARGUMENTOS DEDUZIDOS NO PROCESSO PELAS PARTES. O inciso IV, do § 1º, do artigo 489, do Novo CPC, ao exigir fundamentação sentencial exauriente, é inaplicável ao processo trabalhista, seja pela inexistência de omissão normativa, diante do caput do artigo 832, da CLT, seja pela flagrante incompatibilidade com os princípios da simplicidade e da celeridade, norteadores do processo laboral, sendo-lhe bastante, portanto, a clássica fundamentação sentencial suficiente”.

A única dissidência — ainda durante as deliberações da comissão que aprovou as propostas de enunciados a serem submetidas à assembleia-geral — foi o juiz do Trabalho Ari Pedro Lorenzetti, ao qual somos solidários pela contrarresistência à aplicação do novo Código de Processo Civil à Justiça do Trabalho.

Gostamos, por demais, da frase “ainda que se repute por constitucional”… Mas, vamos ao tema. De plano, o Enunciado 12 apresenta uma contradição falaciosa que salta aos olhos. Com efeito, com o intuito de desqualificar uma lei aprovada, democraticamente, pelo Parlamento (falamos, aqui, é claro, do novo CPC), após amplo debate em todo o país, o texto do enunciado invoca a jurisprudência do STF. Ocorre que os poderes são independentes sim, mas também são harmônicos entre si, conforme artigo 2º da Constituição de 1988. Portanto, a jurisprudência do STF não está acima das leis aprovadas pelo Legislativo. Afinal, vivemos em um Estado Democrático de Direito, e não em um Estado Juristocrático de Direito, para recordar as lições de Ran Hirschl. Ou seja: quer dizer que, se o STF decidir algo em torno de uma lei, o legislador não pode fazer outra lei tratando dessa matéria? Mas, então, para quê necessitamos de Parlamento? Deixemos tudo para o judiciário. Ah: só para recordar: a CF diz que são poderes da República o Legislativo, o Executivo e o Judiciário e não o contrário. Não é implicância nossa, mas é o que consta na Lei Maior.

Ademais, o Enunciado 12 acaba por cair na mesma falácia constante no Enunciado 13. Basta ler o artigo 489 do novo CPC para perceber que não se trata, propriamente, de rebater todas as alegações das partes. O artigo 489, §1º, inciso IV, apenas corrobora o dever constitucional de fundamentação (art. 93, IX, CR) no sentido de que o julgador enfrente “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Se algum argumento capaz de infirmar a conclusão do julgador não for enfrentado, obviamente que a fundamentação será insuficiente. Alardear que a exigência do novo CPC seria em relação a todo e qualquer argumento, ainda que não capaz de infirmar a conclusão do julgador, é cair em uma falácia ad terrorem, mormente quando isso é feito para enfraquecer o novo CPC. Parece a “fórmula Scalia”: para negar determinado direito, leve-o às ultimas consequências no seu lado negativo e terá argumentos assustadores do outro lado (referimos, por exemplo, o voto de Scalia no caso Bowers v. Hardwick, em que este alegava direito à privacidade e Scalia negou o recurso com base no argumento de que não havia um direito fundamental de Hardwick à prática de sodomia – nesse sentido, ver Streck, L.L. Introdução à obra On Reading the Constitution, de Michael Dorf e Lawrence Tribe, traduzida no Brasil pela editora Del Rey com o título Hermenêutica Constitucional). Eis os perigos das falácias.

Um ponto há de ser destacado, ainda, no tocante ao Enunciado 13, segundo o qual haveria “flagrante incompatibilidade com os princípios da simplicidade e da celeridade”. Sem adentrar aqui na discussão acerca da (in)validade do tal princípio da simplicidade (na verdade, em uma teoria dos princípios consistente, a “simplicidade” nem de longe pode ser considerada como um princípio), essa “flagrante incompatibilidade” não é dotada de qualquer dado científico que a corrobore. Ou seja: pode-se dizer o contrário que nada muda. Cabe lembrar, nesse sentido, que uma fundamentação suficiente, nos moldes exigidos pelo novo CPC, poderá contribuir para a celeridade e para a efetividade, diminuindo a recorribilidade e facilitando o cumprimento do título executivo. Essa é a tese pretendida pelos idealizadores do novo Código. Todavia, antes de uma interpretação consequencialista, aos juízes incumbe o dever constitucional de fundamentação enquanto direito fundamental do cidadão.

Como se vê, os referidos enunciados revelam a inauguração de uma nova epistemologia, algo como um pré-ativismo, tendo em vista ainda estarmos no período da vacatio legis do novo código. É como se estivéssemos diante de um “método ativista anticoncepcional”. Ou o incentivo epistêmico do uso da pílula hermenêutica do dia seguinte. Isto é, ao que se vê por aí, a maioria dos juízes do trabalho simplesmente não quer que o novo CPC nasça. A República não pode dar à luz o novo CPC. Ao novo CPC às trevas…!

É triste ver os membros de um Poder desdenhando dos atos legítimos de outro Poder. Que a República mantém uma série de vícios, ninguém tem dúvida. Claro que o Brasil não vai nada bem. Mas o novo CPC pretende combater um desses males: a irresponsabilidade política dos juízes. Sua munição, portanto, é virtuosa. Isso porque, ao delimitar os elementos imprescindíveis à fundamentação das decisões e ao institucionalizar parâmetros para o seu devido controle legal, o legislador mirou na construção de um direito mais intersubjetivo, mais isonômico, mais democrático. Aliás, inspirando-se em países que “não progrediram muito nos últimos anos”, como…a Alemanha, que tem o dever de enfrentamento dos argumentos das partes na sua Constituição. Simples assim.

Por ultimo: não há no direito do trabalho um dogma de que o vértice da pirâmide da hierarquia das regras jurídicas vigentes deve ser ocupado pela norma mais favorável ao trabalhador? Esse não é mais um “princípio” do direito do trabalho? Perguntamos isso porque achamos que a exigência de maior fundamentação das decisões é justamente uma norma que visa a proteger mais e mais o trabalhador. Logo, os juízes do trabalho deveriam estar felizes e em júbilo com o advento de uma norma que, exatamente, dará maior garantia de accountability às partes. Por que a exigência constante no inciso IV do parágrafo primeiro do artigo 489 seria prejudicial ao trabalhador? Aliás, se fosse uma conspiração neoliberal a inclusão desse dispositivo no novo CPC, por qual razão a presidente da República — cujo governo se identifica muito mais com os trabalhadores do que com os empregadores (correto?) — não o vetou?

Em uma República, uma lei votada democraticamente somente pode não ser aplicada se for inconstitucional. Bom, conforme o próprio enunciado 13 reconhece, o artigo 489 não é inconstitucional (ipsis literis: ainda que se o repute constitucional!). Consequentemente, cabe ao judiciário – inclusive o laboral – aplicá-lo. Na forma da lei e da Constituição que todos deveríamos defender.

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