Limite Penal

Com "lava jato", concedemos poder ao Estado em nome da "guerra justa"

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17 de julho de 2015, 11h00

Spacca
Quando Goldschmidt lançou a metáfora do processo como guerra antecipou os vieses pelos quais podemos compreender, com maior precisão, os mecanismos de recompensa dos agentes processuais em busca de otimização pessoal, no e pelo Processo Penal. Cada sujeito processual e policial, tanto na fase pré-processual, como na fase judicial, é movido por recompensas e satisfação de interesses particulares. Não falamos de interesses pessoais no sentido de prevaricação, embora não se exclua a hipótese.

Todos queremos um mundo melhor, com menos corrupção, menos crimes e, para tanto, democraticamente, estabelecem-se as regras do jogo democrático. No caso do Processo Penal brasileiro, diante a importação de novos institutos, especialmente delação e leniência, conforme apontado nas colunas anteriores (aqui), vivemos uma crise de princípios. A cada semestre os professores de Processo Penal ensinam os sistemas acusatório, inquisitório e o constitucional, ante a inexistência de sistemas mistos, dada sua impossibilidade lógica (Jacinto Coutinho). Para além dos sistemas, atualmente, podemos dizer que transformamos o processo penal em mecanismo de barganha, de jogo, com os riscos de trapaças, trunfos e blefes. Os institutos pensados na lógica continental deixaram de ter sentido em algumas hipóteses, especialmente na prisão cautelar. Isto porque continuamos ensinando que a prisão cautelar deveria garantir o objeto do processo, ainda que tenha se transformado em mecanismo de pressão psicológica, midiática e patrimonial (objetiva e subjetiva) de comércio, via delação premiada. Prende-se para que crie capital para negociação, antecipando-se, assim, com os ainda não presos, possíveis negócios de informação qualificada (um mercado de futuro pelo suspense de o próximo pode ser você).

Daí que não existe mais, no contexto brasileiro, a possibilidade de continuarmos a ensinar o processo penal uniforme, já que ele navega em frequência diferenciada, movido por recompensas distintas da apuração da verdade. A verdade, no ambiente pragmático, próprio do sistema da common law, estabelece-se por negociação. E a negociação fomenta novas modalidades de posição subjetiva. A expectativa de uma decisão favorável, como apontava Goldschmidt, transformou-se na expectativa de uma negociação favorável, em que os advogados e membros do Ministério Público, bem assim Delegados, precisam antecipar as jogadas, as informações qualificadas, capazes de chegar ao acordo via recompensas. O Dilema do Prisioneiro, as árvores de decisão, enfim, novos significantes precisam fazer parte do repertório.

Invoca-se o jargão da “Guerra Justa” — jus ad bellum —, executada de maneira justa — jus in bello — já que os “crminalizados” não possuem respeito pela coisa pública e, por isso, justifica-se o transpassamento dos limites herdados da modernidade. Abolimos as distinções entre suspeito, acusado e condenado mediante o acolhimento da figura de duas faces chamada delator. Rompemos, por assim dizer, as barreiras da presunção de não culpabilidade. Negociamos a liberdade, a pena, a informação (prova) e, para nós, isso deveria ser uma questão de princípios.

Nossa gramática processual penal exige domínios de persuasão, blefes, jogos midiáticos, vazamentos seletivos, enfim, instrumental para além de Maquiavel, conforme apontamos no livro A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal (Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015). Ao invés de se analisar o processo é preciso compreender o cenário do caso penal, ou seja, precisamos apurar quem possui poder de decisão, qual a recompensa (de informações) que pretende, os alvos que busca alcançar, para somente então podermos falar de informações relevantes. A teoria da prova transmudou-se, em alguma medida, em teoria da informação qualificada. A estratégia deixou de ser meramente processual para se vincular às consequências das consequências. As coordenadas em que se pensa, portanto, o processo penal, nos casos do Processo Penal do Espetáculo, como diz Rubens Casara, exigem novos coadjuvantes. Enfrentar o jogo da mídia faz com que a defesa precise de jornalistas, detetives, especialistas, monitoramento de redes de informática, apuração de informações que possam interessar, toda uma série de dispositivos ausentes nos processos penais do dia-a-dia. Não se pode comparar a atuação em crimes do colarinho branco ao furto e ao roubo, pois os últimos giram noutra frequência.

Como dar uma aula de busca e apreensão depois da pirotecnia da realizada na casa do senador Collor? Podemos continuar dizendo que a busca é uma medida instrumental de obtenção de provas que visa encontrar coisas e a apreensão de prova vinculada ao processo, não podendo ser um mandado aberto para apreensão de veículos emplacados? O efeito midiático, todavia, é acachapante. As fotos da apreensão, dentro das casas, dos escritórios, começaram a circular em Whatsapp antes mesmo da contagem do dinheiro e foram apresentadas, pouco depois, no Jornal Nacional. A exploração midiática satisfaz a população, tal qual os coros das tragédias gregas, que deseja espetáculo.

Acabou o romantismo de querer acomodar as novas técnicas de investigação, os novos mecanismos de negociação, as estratégias de uma guerra processual nos moldes pensados pela modernidade, dado o giro negocial do processo penal transformado em mesa de negociação.

O limite ético deveria nos fazer olhar para nossas práticas, para nós mesmos, não justificando os fins pelos meios, especialmente quando matreiramente os meios foram legalizados e operam sem limites, muitas vezes de valendo de cláusulas abertas, desprovidas de densidade semântica. O desconforto que opomos, todavia, reside justamente nas mentiras processuais comuns, incorporada ao discurso ordinário, que faz com que o pensamento crítico do devido processo legal seja visto como um privilégio incompatível com a necessidade de punição. Joga-se, ademais, com um patriotismo de guerra contra corrupção que transforma qualquer um que procure colocar barreira como sendo o inimigo a ser derrotado.

Como professores de Processo Penal talvez tenhamos que promover uma mudança radical na maneira de ensinar, cientes de que as consequências das consequências podem ser complicadas, já que estamos chegando ao ponto de conceder poderes não derrogatórios ao Estado em nome da guerra justa. Só não sabemos quem poderá ser o próximo inimigo. Talvez sejamos fora de moda e anacrônicos ou, quem sabe, românticos. E todo cuidado é pouco. 

*Artigo atualizado às 12h45 do dia 17/7 para acréscimo de informações.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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