Senso incomum

Para ministro do STF, julgamentos não podem ser conforme a cabeça do juiz!

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16 de julho de 2015, 8h01

Spacca
1. Maior fundamento para a prisão preventiva de pessoas conhecidas?
Tenho escrito que, em Pindorama, falta Creonte e sobra Antígona, isto é, falta-nos uma visão acerca da preservação do direito da polis para todos e sobra o jeitinho, o individualismo, enfim, somos bons em relações interpessoais. “- Fala com Fulano que ele resolve…”. Aliás, sabemos bem o que (e como) é isso, não? O que é isto – o tráfico de influência em Pindorama? Trânsito epistemical-fathers ou, mais sofisticadamente, expertise due to parental epistemic relations. Consciente ou inconscientemente, isso atravessa o imaginário (até) dos nossos presidentes. Lula já havia dito, quando Presidente, que “Antes do Ministério Público denunciar, deveria fazer uma análise do currículo da pessoa”. Que tal? E quem não tem curriculum, Presidente? Está lascado? 

Já a Presidente Dilma acaba de reforçar o nosso lado patrimonialista ao salientar que “gostaria de maior fundamento para a prisão preventiva de pessoas conhecidas”.  Para contestar a Presidente, afirmo que eu gostaria de maior fundamentação para a prisão preventiva TAMBÉM das pessoas “não-conhecidas”… Enfim, uma melhor fundamentação para todos. Até porque um “não-conhecido” (ou alguém sem currículo) sempre leva desvantagem. Sabe como é Pindorama, Presidente…!

E por que trago a baila as frases de dois Presidentes da República? Porque ali está o retrato de certo imaginário que se forjou no país. E foi incorporado pelo direito.[1] Falei disso na coluna da semana passada. E falei disso na Rádio Justiça (ouça aqui). Vejam a continuidade, agora.

2. O discurso do ministro Marco Aurélio em Coimbra
Nesta semana, acabei reconfortado com excertos da palestra do ministro Marco Aurélio em Coimbra. Ao mesmo tempo em que ele alertava para o fato de “o Brasil vive tempos estranhos com a perda de princípios e a inversão de valores em meio a crises econômica, financeira e política”, o Min. Marco Aurélio vai ao âmago do problema, asseverando que “é preciso que haja proteção à coisa julgada, à previsibilidade da Justiça”. Bingo. E deixou claro que:

“… os julgamentos não podem ser feitos conforme a cabeça do juiz. De bem-intencionados, de salvadores da pátria, o mundo está cheio.”

E o que isso tem a ver com o que escrevi na coluna passada? Tudo. E o que isso tem a ver com as frases de Lula e Dilma? Tudo. Se acreditarmos que o problema da resolução de um caso está centrado na “cabeça do juiz”, no seu “livre convencimento” ou que “para decretação da prisão devemos exigir, em determinados casos, uma ‘maior fundamentação’ quando se tratar de pessoas conhecidas” (sic), então é porque, implícita ou explicitamente, trabalhamos com certas concepções do realismo jurídico mescladas com grandes doses de subjetivismo (esse mix é bem jabuticaba – vejam, por exemplo, essa decisão).

Por isso, falei que não concordo com a tese de que os problemas do processo e do ensino do processo estão centrados na decisão judicial. E não concordo com a adoção — mesmo que sob certa vulgata — de excertos do modelo anglo-saxão, de conotação realista. E sabem por quê? É que, por essa perspectiva, os sentidos do direito decorrem e se dão predominantemente… na decisão judicial. Aliás, isso explica, por exemplo, o crescimento do direito “jurisprudencial” em Pindorama… Consequência disso: um enfraquecimento do papel da doutrina e um desdém pelo ensino de teorias jurídicas, com o crescimento de livros “comentando” resumos de julgados.

Em outras palavras, sou contra a tese de que o bom jurista é aquele que sabe como jogar com as decisões e/ou comportamentos dos juízes. Também não concordo com a tese de que a aplicação do direito é um jogo e o bom jurista é  aquele que sabe jogar bem esse “jogo”.[2] Bom, isso pode até ser verdade. Mas, se for verdade, tanto no mensalão como na lava jato alguns setores da dogmática jurídica não aprenderam bem as regras desse… “jogo”, permitam-me a ironia. Em linguagem ludopédica: parece que no primeiro tempo a dogmática foi derrotada (até a Presidente quer mais fundamento para a prisão de pessoas conhecidas…!) e agora tem de ir para o vestiário (ou para a próxima rodada) e mudar o esquema tático. O perigo é a dogmática processual penal ir parar no Z-4 (embora tenha ganhado alguns jogos importantes no campeonato contra E.C. Satyagraha, E.C. Sundown/Banestado e S.E.R. Castelo de Areia). Mas, por que houve uma reviravolta no “jogo”? A resposta começa pela leitura da coluna passada. A dogmática sempre apostou no protagonismo judicial. Só que, ao que parece, agora esse protagonismo vai em sentido contrário do que ela gostaria… Eis o busílis. Que falta que faz a doutrina, pois não? 

3. De como a fala do “professor” no vestiário não resolve
O que quero dizer é que isso não adianta, ou seja, o “vestiário” não produz grandes alterações, porque o problema é anterior (falo da crise de paradigmas de dupla face). Os jogadores foram, historicamente, treinados em um esquema ultrapassado e se acostumaram a ganhar o jogo cercando a arbitragem, fazendo a linha do impedimento e muita cera (aqui a relação com nosso passado patrimonialista e individualista não é mera coincidência). Ou seja, a dogmática — insistindo na metáfora – esteve (e continua a estar) mais preocupada com o apito do que com a bola (essa é a diferença entre as posturas realistas e a hermenêutica).

Se é que é possível ser mais claro, quero dizer que não consigo conceber que o problema do processo seja visto como um jogo, pelo qual o advogado deve ficar atento até mesmo à roupa que o juiz veste, ao time que torce, etc. Pode até ser assim, realisticamente falando. Mas minha teoria da decisão – que vem da matriz hermenêutica – quer mostrar que isso não deve e não pode ser assim. Claro que a jurisprudência é importante. Mas não é ela que dita, solo, o que o direito é.

Ademais, se, de fato, o processo for (reduzido a apenas) um jogo (de poder), te(re)mos de confessar o fracasso da doutrina e de tudo o que ela representa em termos de “constrangimentos epistem(ológ)icos”. Note-se: não estou desindexando “o processo do poder”. É óbvio que não. Mas é exatamente por isso é que uma decisão jurídica precisa encontrar uma conformação mais englobante, que dê legitimidade ao ato de força que o Estado realizará a partir dela. A teoria precisa encontrar uma forma de avaliar as decisões de modo que seja possível dizer quando uma decisão se apresenta melhor que a outra para o caso, no sentido de dar legitimidade ao uso do poder coercitivo pelo Estado.

Portanto, todas as formas, variações de posturas e teses que apostam que “o sentido do direito se dá na decisão judicial”[3] (um retorno a Alf Ross, Olivecrona, Holmes?) não podem ser classificadas como hermenêuticas, por uma razão simples: a hermenêutica é recuperada e alçada a uma dimensão fundante,  surgindo como uma terceira via para superar tanto o objetivismo como o subjetivismo (solipsismo onde está assentado o livre convencimento, o “decido conforme minha cabeça”, etc).

É por tais razões que faço minhas críticas às pesquisas que se contentam em examinar como os juízes decidem, como se o modo como ele fazem isso fosse uma fatalidade e restasse, às partes, apenas apreender o modo como “lidar com isso”. Nego-me a aceitar isso. Peremptoriamente. Caso contrário, não precisamos mais da doutrina. E podemos fechar a pós-graduação. Por isso as minhas críticas àquela pesquisa, para mim, absolutamente descabida, acerca dos juízes de Israel que, quando sentem fome pela manhã, são mais duros com os réus. Minha proposta — sarcástica —  é que lhes seja estendido o beneficio dos juízes de Pindorama: o vale refeição.

4.Volta o discurso do ministro
Bom, é aqui que assume relevância, de novo, a conferência do Min. Marco Aurélio, ao dizer, em Coimbra, que os julgamentos não podem ser feitos conforme a cabeça do juiz. Binguíssimo! É o que estou tentando pregar neste deserto pindoramense de há muito. Também prego que o direito necessita ter previsibilidade, tudo, aliás, o que Sua Excelência disse aos conimbressenses há poucos dias.

Portanto, temos de lutar para que tenhamos critérios para decidir, isto é, precisamos de uma teoria da decisão, para que não dependamos justamente…da cabeça dos juízes. Os advogados de todo o país sabem do que estou falando. Simples assim. Debruço-me nisso há anos. Já escrevi mais de 5 mil páginas sobre isso.

Se a fala do ministro Marco Aurélio assume relevância, a minha  pode ser resumida assim: precisamos de uma teoria da decisão porque juiz decide por princípios e não por políticas. Decide em face da lei e não (aló, Presidente Dilma) em face da pessoa (conhecida ou não) que está sendo julgada. E a decisão não pode advir do solipsismo judicial. Ou, o que dá no mesmo: os julgamentos não podem ser feitos conforme a cabeça do juiz.

Ah, mas, então, Professor Lenio, como é decidir por princípios? Bom, não tenho muito espaço. Textos longos não são bem recebidos, se me permitem o sarcasmo. Mas, rapidamente, dou um exemplo. Sócrates é tentado por Críton para fugir. Ele não foge…por principio. Principio é um “não”. E pode ser um “sim”. Mas não é um “não-à-meia-boca”. E tampouco é um “sim-à-meia-boca”… Isto é, por mais tentadora que seja a situação, deve-se agir por principio (ufa, como já escrevi sobre isso em tantos livros e textos!). Por isso, principio não é qualquer coisa. Por isso, a “afetividade” não é principio, mas a ampla defesa, sim.  Princípio é deontológico, porque atua a partir do código lícito-ilícito. É por isso que não se pode brincar com os princípios.

Para compreender melhor ainda, vejam a propaganda dos Tubos Tigre. O personagem age por principio. A concorrência tenta de tudo. E ele diz: “Não”. Bingo! Assistam.  Para quem não entendeu: Se a lei e a jurisprudência  dizem que, diante de tais e tais requisitos, o paciente deve ser solto, por mais tentador que seja deixá-lo preso, o julgador deve decidir por principio, dizendo NÃO à tentação e SIM à liberdade! Querem mais exemplos? Acho que não é necessário. Quem quer saber mais sobre princípios e sua diferença em relação às regras, recomendo Tubos Tigre-Streck, quer dizer, Verdade e Consenso, além do capítulo VI do Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Ainda outro exemplo: Um amigo que age por princípio não pega a namorada do melhor amigo, por mais bonita e tentadora que ela seja. Mesmo que haja uma enorme afetividade… Não trair o amigo é deontológico (normativo); desejo e afetividade são, aqui, política. Metaforizando: juiz decide por principio e não por política. Do mesmo modo: As frases de Lula e Dilma não são “de princípio”. São “de política”. 

Post scriptum: o que eu quis dizer é que, se o Ministro Marco Aurélio e eu tivermos razão, não precisamos das concepções realistas e tampouco necessitamos nos preocupar com o almoço do juiz…

Fui claro?


[1] Danilo Pereira Lima, meu orientando de mestrado, publicou livro demonstrando a relação do discricionarismo com o patrimonialismo. Leiam, dele,  Constituição e Poder: Limites da Política no Estado de Direito. Livraria do Advogado, 2014.

[2] Aqui não estou polemizando com Alexandre Morais da Rosa, cuja tese – sobre o direito e a teoria dos jogos – é mais sofisticada do que a transformação do direito em um “jogo de poder” ou algo do tipo “Games of Trones”.

[3] Não há dúvida de que hoje as teses realistas (ou suas vulgatas) são dominantes no imaginário dos juristas, o que se pode ver pela prevalência do direito tribunalício e pela “absoluta paixão” por enunciados (até mesmos os doutrinadores de processo se reúnem para aprovar enunciados como se estes fossem holdings de “precedentes” ).

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