Legalidade do auxílio

Não cabe a intervenção de entidade pública como assistente de acusação

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16 de julho de 2015, 6h05

O estudo de um caso concreto no qual um ex-prefeito foi acusado da prática do tipo penal previsto no artigo 89 da Lei 8.666/1993 e, no curso da instrução criminal, houve a habilitação do município, por meio da Procuradoria Municipal, como assistente do Ministério Público, suscitou a reflexão acerca da legalidade da assistência de acusação por pessoa jurídica de direito público em hipóteses como essa. O caso concreto restou resolvido com o trancamento da ação penal em razão da concessão do HC 48.916/MG pelo STJ, sem, no entanto, ter a temática aqui abordada sido submetida à apreciação da Corte Superior.

Conforme se infere da disposição contida no artigo 268 do CPP, somente pode ser admitido como assistente do Ministério Público o ofendido/vítima da ação, em tese, delituosa, sendo este o pressuposto que, quando preenchido, confere legitimidade à assistência acusatória.

Tratando-se de suposto crime de dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais, formalmente tipificado no artigo 89 da Lei 8.666/1993, tem-se como titular do bem jurídico protegido, ou seja, como sujeito passivo do delito, a coletividade, pois se tutelam nesse tipo penal bens jurídicos supraindividuais, difusos e coletivos, como a otimização dos recursos públicos, a moralidade, o tratamento igualitário nas licitações etc. Não se nega, por óbvio, que exista sujeito passivo para esse delito, é claro que há. Para todo delito há. Mas o sujeito passivo é a coletividade.

Trata-se de lição basilar de processo penal que o órgão estatal legitimado a representar a coletividade no âmbito do Direito Processual Penal é o Ministério Público, que, para tanto, já é, privativamente, o próprio titular da ação penal pública, conforme fixado no artigo 129, I, da CF.

No processo penal brasileiro, o Estado, por meio do Ministério Público, assume a titularidade da persecutio criminis in judicio,([1]) salvo nas poucas hipóteses de ação penal exclusivamente privada. Assim, o protagonista da relação de direito material [vítima/ofendido] se vê alijado da estrutura do processo, não figurando como parte na ação penal, sendo esse papel assumido com exclusividade pelo Ministério Público. Desse modo, a eventual participação do ofendido/vítima na ação penal pública é relegada a um plano excepcional, caracterizado pela assistência ao Ministério Público. Porém, tal assistência pressupõe que se trate, como já dito, do ofendido/vítima e, nas hipóteses em que a imputação verse sobre suposta pratica do tipo penal do artigo 89 da Lei 8.666/1993, esse ofendido/vítima não é a pessoa jurídica de direito público, e sim a coletividade, cujo representante é, por força de expressa disposição constitucional, o Ministério Público.

Vale destacar a precisa orientação doutrinária do processualista Aury Lopes Jr., no sentido de que não cabe a intervenção de pessoa jurídica de direito público como assistente de acusação, salvo nos caso expressos em lei, veja-se: “(…) a regra é a de somente a vítima – pessoa física – ou seu representante legal possam intervir como assistentes. Excepcionalmente isso é relativizado e, quando ocorre, é de forma expressa. Nesse sentido, os casos anteriormente referidos nas Leis 7.492 e 8.078”.([2])

Na mesma esteira, prossegue Aury Lopes Jr.: “(…) não há que se esquecer de que se o crime for praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será de iniciativa pública. Logo, quem defende em juízo os interesses do órgão público afetado é o Ministério Público, sendo sem sentido (salvo para gerar desequilíbrio processual e contaminar o processo com o sentimento de vingança) admitir-se a assistência. Do contrário, teríamos de admitir que o Ministério Público é negligente na tutela do patrimônio público, o que seria um contrassenso”.([3])

Nesse ponto, cabe trazer à baila para esclarecer que a posição do autor Guilherme de Souza Nucci,([4]) segundo a qual, com base no Decreto-lei 201/1967, ou seja, quando a imputação se referir aos chamados “crimes de responsabilidade dos prefeitos”, tais como o peculato ou o peculato desvio, haveria possibilidade de a pessoa jurídica de direito público se habilitar como assistente do Ministério Público([5]) tem por fundamento não só a existência de expressa disposição legal autorizando, como também porque, nesses casos, ocorreria, em tese, apropriação ou desvio de valores da pessoa jurídica de direito público. Assim, a pessoa jurídica seria, sim, o sujeito passivo dos citados crimes e se habilitaria na ação penal na tentativa de reaver valores desviados ou apropriados.

Ademais, com a habilitação da pessoa jurídica de direito público como assistente do Ministério Público, têm-se dois órgãos públicos acusando simultaneamente o réu na ação penal, desequilibrando a estrutura processual de forma absolutamente ilegal.

Por fim, tem-se que, concretamente, a contratação mediante dispensa ou inexigibilidade de licitação é precedida do respectivo procedimento levado a termo por uma Comissão de Licitações que, via de regra, colhe parecer do respectivo departamento jurídico da pessoa jurídica de direito público [Procuradorias municipais, por exemplo]. Ora, desse modo, admitir-se a posterior habilitação como assistente do Ministério Público dessa pessoa jurídica, por meio de seu departamento jurídico, é permitir que o órgão que, em tese, concorreu para a concretização do fato que se reputa ilegal, seja assistente de acusação em relação à imputação desse mesmo fato. Tal expediente contraria a própria lógica que fundamenta a assistência. Como tal órgão poderia se habilitar para auxiliar o Ministério Público na acusação de fatos para os quais teria, ainda que em tese, concorrido?


Notas

[1] Jardim, Afrânio da Silva. Ação penal pública. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 25.

[2] Lopes Jr., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. vol II, p. 40.

[3] Idem, p. 40-41.

[4] Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 495.

[5] Do mesmo modo, quando os autores Eugênio Pacelli e Douglas Fischer discorrem sobre a assistência de acusação por pessoa jurídica de direito público, referidos autores tomam como ponto de partida hipóteses em que esta seja vítima do delito, o que não se verifica quando a vítima é a coletividade. Vide Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 523-524.

 

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