Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-americano (Parte 21)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

15 de julho de 2015, 8h00

Spacca
1.Uma insuspeita descrição das faculdades de direito estadunidenses
Sempre que releio esta passagem, escrita em 1947 por um homem que assistiu ao fim de dois mundos, eu me emociono e mais admiro o autor do texto, que o concluiu aos 66 anos de idade. Reproduzo suas palavras, que são o fecho de seu livro autobiográfico:  

“Desde 1945, sou professor titular. Minha atividade docente é muito gratificante. É verdade que, por conta da minha teoria (…), eu seria um professor mais indicado para a Faculdade de Direito. Mas as faculdades de direito estadunidenses não têm interesse particular por uma teoria científica do direito. Elas são training schools – escolas jurídicas profissionalizantes; sua função é preparar para a profissão prática de advogado. Ensina-se quase exclusivamente direito estadunidense, e segundo o case method. Como os tribunais estadunidenses baseiam suas decisões essencialmente em precedentes, é compreensível que as faculdades de direito considerem como seu objetivo educacional familiarizar os estudantes com o maior número de casos possível. Ao concluir os estudos jurídicos, um estudante estadunidense de direito está certamente muito mais bem preparado para sua profissão como advogado do que um jurista austríaco ou alemão. Talvez o direito como objeto de conhecimento científico pertença realmente mais a uma faculdade filosófica, histórica ou de ciências sociais. O que me faz falta aqui no Departamento de Ciência Política é que, entre os estudantes, inteligentes, aplicados e pessoalmente muito gentis na sua maioria, há relativamente pouco interesse pelo trabalho científico. É verdade que eles se preparam muito conscienciosamente para suas provas e apresentam trabalhos de seminário muito bons, mas em todos esses anos não encontrei um único que quisesse se especializar no campo da teoria do direito ou do direito internacional. Isso está certamente relacionado ao fato de que esses temas são matérias acessórias no Departamento de Ciência Política e de que quem se decide pela docência prefere escolher outras áreas para o doutorado. Porém, minha atividade docente deixa tempo para meu próprio trabalho científico. A biblioteca da universidade é excelente, e tanto o clima como os arredores não deixam nada a desejar. Adquiri em Berkeley uma pequena casa com um jardinzinho, onde florescem rosas que me dão muita alegria.

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Durante a escrita destas memórias, completei 66 anos de idade. Através da larga janela junto à qual está minha escrivaninha, olho por cima dos jardins para a Baía de São Francisco e a ponte Golden Gate, atrás da qual brilha o Oceano Pacífico. Aqui será com certeza o último refúgio do viajante cansado.”

Com as desculpas necessárias aos leitores por uma transcrição de tal modo extensa, inicio a segunda coluna sobre o ensino jurídico nos Estados Unidos. E o faço na companhia de um homem excepcional, o autor da passagem reproduzida, que vem a ser o austro-húngaro naturalizado norte-americano Hans Kelsen, um dos mais influentes juristas do século XX nos países da tradição romano-germânica. 

De modo extremamente gentil e humilde, esse gigante da Ciência do Direito assim encerrou sua Autobiografia.[1] É perceptível o sentimento de frustração por não ser compreendido pelos alunos e por se encontrar vinculado a um sistema de formação jurídica tão diferente do europeu. Mas aquele foi o último refúgio do viajante cansado (Wandermüden letzte Ruhestätte), uma referência ao verso de Heinrich Heine no poema Wo?. A gratidão à acolhida dos americanos não poderia ser mitigada, daí o cuidado de Kelsen com as palavras usadas para descrever o curso jurídico estadunidense.

2. Os cursos de Direito nos Estados Unidos
Boa parte das referências contidas no texto da Autobiografia de Hans Kelsen podem ser aproveitadas para nosso tempo, tanto as explícitas quanto as implícitas. Uma esplêndida biblioteca e a presença de grandes professores europeus (como Kelsen), ao menos nas grandes universidades, é uma realidade até hoje. Pode-se dizer mais ainda: de professores de diversas partes do mundo. O cosmopolitismo é uma tônica da boa universidade estadunidense. Corretas também se mantêm suas palavras sobre o método do caso, o caráter profissional das faculdades de Direito e o alheamento às grandes construções teóricas ao estilo europeu.

Esse divórcio entre o modelo continental europeu e o norte-americano é também notável pela baixa repercussão de autores jurídicos estadunidenses no Brasil, salvo em relação a certas áreas, como o Direito Constitucional, a Análise Econômica do Direito e a Filosofia do Direito.  Com a (má?) importação de institutos e figuras jurídicas dos Estados Unidos e a maior presença de estudantes brasileiros em universidades daquele país esse quadro pode mudar um pouco.

Muito bem, é conveniente expor como são os cursos jurídicos nos Estados Unidos.

Após concluir a high school, o aluno norte-americano não pode ingressar em uma law school. Ele precisa ter frequentado um curso de duração média de 4 anos em um college ou uma universidade, que lhe conferirá o título de bachelor of Arts (B.A.) ou bachelor of Science (B.S.). Somente após essa etapa é que esse graduado pode ser admitido em uma law school.

A entrada na law school depende de alguns requisitos, que variam de universidade para universidade. É muito comum encontrar-se, de entre esses requisitos, a realização de um teste admissional de caráter objetivo, que vem a ser o  Law School Admission Test – LSAT, encontrável não apenas nos Estados Unidos mas também no Canadá, na Austrália e em outros países da tradição de common law. O exame compreende questões de múltipla escolha, nas quais se objetiva avaliar a capacidade de raciocínio lógico, de compreensão de texto e de raciocínio analítico dos candidatos.

Após a média de 4 anos de estudos de graduação e o preenchimento dos requisitos específicos da universidade para a qual o candidato se apresentou a concorrer, tem-se sua admissão na law school para um curso de duração média de 3 anos. Caso único na América e na Europa, o aluno norte-americano é, na prática, um estudante de pós-graduação e, ao terminar esse período trienal, ele poderá fazer jus ao título de Juris Doctor – JD. Literalmente traduzido para o português, ter-se-ia um “doutor em direito”. Essa nomenclatura causa enorme confusão no Brasil, embora se deva lembrar o hábito oitocentista de se tratar por “doutor” os licenciados em Direito que são advogados, juízes, promotores ou tabeliães. Rigorosamente, porém, o Juris Doctor estadunidense não é um doutor em Direito e também não é um graduado no sentido brasileiro, pois ele já se graduou anteriormente.

Somente após se haver tornado Juris Doctor é que o egresso da law school se pode colocar no mercado de trabalho como advogado, juiz ou promotor. No caso da advocacia, como se verá posteriormente, ele será submetido a um Bar Examination, que geralmente se traduz por Exame de Ordem, mas é uma aproximação puramente literária e não propriamente fiel ao conceito brasileiro homólogo, como também se verá em outra coluna.

Existem ainda alguns cursos que permitem uma formação mais rápida. Trata-se do accelerated JD program, oferecido, por exemplo, pelas universidades do Arizona, do Kansas,  de Iowa e de Columbia. O aluno pode obter um grau de bachelor em 3 anos e um Juris Doctor em mais 3 anos. É o programa 3+3. Encontram-se também os diplomas acelerados de JD em 2 anos.

Há cursos de Direito à distância em quantidade reduzida e sujeitos a muita polêmica. A ABA- American Bar Association, a partir de 2015, passou a não mais emprestar seu reconhecimento a tais modalidades.

Os norte-americanos também podem frequentar um Master of Laws (LL.M), equivalente a uma especialização no Brasil, segundo as regras de conversão de títulos usualmente aplicadas no país. Tem-se ainda o JSD – Juridical Science Doctor, um doutorado de pesquisa em algumas universidades, ao exemplo de Yale, Harvard, Cornell, Stanford, Berkeley, Nova York, Georgetown, Duke, de entre outras. Mais universal é o PhD (philosophiae doctor), que existe em várias universidades americanas e é equivalente ao doutorado em Direito brasileiro. Na Yale Law School, o PhD é um curso destinado a pessoas que obtiveram o diploma de Juris Doctor e é exigido um período de 3 anos de “residência”, que compreende, no primeiro ano, algumas disciplinas para auxiliar na pesquisa e no desenvolvimento da atividade de investigação. No segundo ano, o aluno deve elaborar uma pré-tese e iniciar a elaboração de seu texto. Admite-se que a tese seja substituída pela elaboração de 3 artigos ou que seja apresentada sob a forma de um livro.[2] Em muitas universidades, a publicação desses artigos é direcionada para revistas com revisão cega por pares e é fundamental que o periódico seja bem qualificado segundo os padrões de classificação da área. O número de publicações implica a obtenção de pontos para o programa e isso pode-se reverter em vantagens indiretas para todo o curso.

Na Universidade da Califórnia-Berkeley oferece-se um PhD híbrido em Jurisprudence and Social Policy, para o qual não se exige do candidato a comprovação de que este possui um diploma de Juris Doctor.[3]

Em geral, o doutoramento é um diploma buscado por estrangeiros para utilização em seus países de origem ou por americanos que desejam seguir uma carreira estritamente acadêmica ou ainda que possa lhe ser útil como um diferencial de mercado para suas profissões. No Direito, o recrutamento dos docentes não se dá necessariamente entre os portadores do título de doutorado e também não existe um regime universal de dedicação exclusiva. Muitos dos grandes professores de Direito são juízes e advogados. Mas, sobre isso se cuidará em outra coluna.  

3. Cursos jurídicos: formação e avaliação dos alunos
Não há uma formação uniforme nas law school’s norte-americanas, da mesma maneira que o egresso não se pode dizer um conhecedor do Direito dos Estados Unidos e sim do Direito federal, das principais decisões da Suprema Corte e dos tribunais federais, bem assim dos aspectos comuns do Direito estadual e, conforme a universidade, do direito do Estado onde se situa a instituição na qual ele se formou. Tal se deve à infinidade de reservas de competências legais e judiciárias que cada Estado-membro da federação possui e da formação particular de cada um desses entes, que pode ter maior ou menor vínculo com a tradição de common law, de civil law, do Direito inglês ou mesmo de um mélange dessas tradições e famílias jurídicas.

As palavras de Kelsen permanecem atuais: o foco da escola de Direito dos Estados Unidos é profissional. O aluno recebeu uma formação generalista, mais humanista ou mais técnica em seu bachelor, e terá, na law school, a oportunidade de aprender a praticar o Direito.

Aqui se conectam as experiências anglo-inglesa e norte-americana, no que toca à ênfase à formação prática. No entanto, sobressai-se uma diferença central dos modelos americano e europeu: o estudante dos EUA tem uma educação profissional na universidade, ao passo em que seu homólogo europeu só encontrará essa formação após os 3 anos de estudos em regime de dedicação integral.

A avaliação dos estudantes norte-americanos é outro ponto sobre o qual não há um modelo uniforme no país, embora exista um grande número de instituições que adotam o modelo de avaliação dita GPA – grade on a curve, um método estatístico de atribuição de notas aos alunos por meio de uma função matemática e que preestabelece grupos de desempenho, aumentando a competição entre os alunos e eliminando os desvios de avaliações de uma turma para outra.

A vantagem desse método está em sua impessoalidade relativa e pela eliminação de fatores como uma maior benevolência de certos professores ou a pressão individual por melhores notas, que muitos alunos exercem sobre seus docentes. O impacto da nota na vida profissional é relevante e já se disse que o “desempenho em uma law school  – tal como mensurado pelas notas atribuídas nos cursos jurídicos – é o mais importante augúrio de sucesso na carreira”[4]

A competitividade é algo que está na essência das melhores law schools norte-americanas e isso se reflete no modo como os alunos estudam e participam das atividades didáticas. 

Para compreender esse modelo, é necessária abordar o method case, aludido por Kelsen em sua Autobiografia, e o problema dos currículos jurídicos. A próxima coluna iniciar-se-á com esses dois tópicos.


[1] KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Introdução de Mathias Jestaedt. Estudo introdutório de Otavio Luiz Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.108-109.

[2] Disponível em http://www.law.yale.edu/graduate/PHD_program.htm. Acesso em 6-7-2015.

[4] CLARK, Jessica L. Grades Matter; Legal Writing Grades Matter Most (2013). Georgetown Law Faculty Publications and Other Works. Paper 1236.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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