Homenagem póstuma

Por que os civilistas devem ler Nelson Saldanha

Autor

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é advogado doutor em Direito pela UFPE professor de direito civil da UPE Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e Sucessores – Seção Pernambuco (ADFAS-PE) e Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

14 de julho de 2015, 6h54

Nelson Nogueira Saldanha morreu na sexta-feira passada, dia 10 de julho de 2015, aos 82 anos. O Brasil perdeu um grande escritor. Um escritor como ele é um artigo raro hoje em dia. Pois o escritor não é aquele que desperdiça laudas e laudas de papel para repetir o óbvio, mas aquele que tem realmente alguma coisa a comunicar.

Infelizmente, “é justamente por não terem de fato o que dizer, que certas pessoas escrevem e publicam vário volumes” (Filosofia, povos, ruínas: páginas para uma filosofia da história. Rio de Janeiro: Calibán, 2002, p. 20). O mercado editorial hoje parece sofrer bastante com a proliferação dos pseudoescritores, que são prolíficos em produzir tratados que nada dizem, imersos no “senso comum teórico dos juristas” (que é alvo das inteligentes e bem-humoradas críticas de Lenio Streck).

Nascido no dia 05 de fevereiro de 1933, no Recife, Nelson Saldanha era graduado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Recife (da Universidade Federal de Pernambuco), onde também obteve o títulos de Doutor em Direito e de Livre-docente. Notabilizou-se no campo da Filosofia do Direito e da História das Ideias Jurídicas, mas também se destacou no Direito Constitucional e na Sociologia do Direito. Tornou-se um dos grandes juristas do nosso tempo justamente porque não se ateve apenas ao Direito. Apesar de ter feito carreira em Recife, era um cidadão do mundo; reverenciado nos grandes centros europeus e latino-americanos.

Não obstante a boa fama obtida na seara do Direito Público e da Teoria do Direito, Saldanha também legou uma contribuição notável para a civilística nacional. Talvez seja porque não concebia o público dissociado do privado; como se vê em “O Jardim e a Praça” (1983), um dos clássicos da literatura jurídica nacional. A complementaridade entre o espaço público (a praça) e o espaço privado (o jardim) guarda relação com a indissociabilidade entre os dois momentos do humano e de sua projeção sobre as coisas: o pessoal e o institucional. Alertava, então, quanto ao perigo da redução do indivíduo à condição de mero consumidor, bem como em relação às hostilidades à vida privada.

Se naquela época a grande ameaça era encarnada nos governos totalitários, hoje este papel é desempenhado pelas grandes corporações e suas estratégias de controle social, que terminam por gerar aquele que já era chamado de ciberantropus por Nelson Saldanha há mais de trinta anos atrás (O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Ciência e Trópico, v. 11 (jan./jun.1983). Recife: FUNDAJ, p. 118). Ademais, para Saldanha, a própria noção geral de direito no Ocidente estruturou-se a partir do direito civil elaborado a partir das fontes romanísticas (Apontamentos sobre a teoria do direito civil. Revista Acadêmica, n. 84 (2012). Recife: UFPE, p. 448 e ss). Dois elementos centrais da teoria do direito carregam a marca privatista desde o nascimento: a teoria das fontes e a teoria da interpretação.

A teoria das fontes desenvolveu-se a partir das demandas teórico-positivas do direito civil nacional, diante da necessidade de harmonização da estrutura racional do código com os vetustos costumes e a doutrina tradicional. A teoria da interpretação, em vista das demandas conceituais e práticas do direito nacional a partir do século XIX, elaborou-se no âmbito da civilística “com os restos da literatura jurídico-filosófica dos séculos XVII e XVIII e a partir da reflexão sistematizante de Savigny” (Apontamentos sobre a teoria do direito civil. Revista Acadêmica, n. 84 (2012). Recife: UFPE, p. 461). Neste entrelaçamento entre a Teoria das Fontes e a Teoria da Intepretação situa-se o tema dos princípios, que também proveio do direito privado. Além de se qualificar como espécie de direito privado “geral”, o direito civil também é dotado de uma teoria geral: a teoria geral do direito civil. No direito constitucional, alude-se a teoria da constituição (e não a teoria geral do direito constitucional). Daí porque a noção de que o direito ultrapassa os lindes do legislado parece provir desta visão civilista do direito. Contudo, o tema dos princípios pode levar ao seguinte impasse: os princípios estão “dentro” ou “fora” do direito? Ou seja, eles pertencem ao direito na qualidade de fundamento dos dispositivos legais; ou estão “fora” do direito, a medida que integram uma ordem suprapositiva de valores? Este impasse talvez seja um dos sinais da crise do classicismo no direito.

É interessante notar que este problema foi abordado em: “Sobre o ‘direito civil constitucional’ (notas sobre a crise do classicismo jurídico)” (2002). Nelson Saldanha vê no movimento do “direito civil-constitucional” um reflexo da tensão entre o classicismo e o romantismo no direito. Os conceitos de clássico e romântico não se aplicam somente aos padrões artísticos, mas também às formas literárias e a tipos de filosofia. Sob uma perspectiva histórica, o classicismo se constituiu em um processo de secularização, baseado em uma confiança na razão como “faculdade conhecedora e instrumento de organização, (…) como estrutura da mente humana identificada à própria ordem universal”. Enquanto que o romantismo é identificado com momentos de crise da cultura ocidental secularizada, períodos em que se questionou a razão e o racionalismo, de ascensão de valores ligados à emoção, bem como ao resgate da tradição e dos componentes religiosos (Sobre o “Direito Civil Constitucional” (Notas sobre a crise do classicismo jurídico). Revista trimestral de direito civil, a. 2, v.9 (janeiro/março 2002). Rio de Janeiro: Padma, p. 187-188).

A segunda metade do século passado foi marcada pela crise das grandes codificações, que está relacionada à crise do classicismo e do racionalismo. Disto resultou a desconfiança quanto às certezas dogmáticas, à onipotência do método e à autonomia do jurídico na vida social. Daí uma reflexão acerca dos limites entre o direito civil e o direito penal, assim como entre o direito civil e o direito constitucional; que faz com que os juristas se voltem ao estudo dos elementos específicos de determinado ramo, mas que se revelam em outro. O que traz a lume a necessidade de releitura daquilo que – estando no texto constitucional -, corresponde a matéria de direito civil ou processual civil; verificando-se uma constante interpenetração entre todas as disciplinas jurídicas e, de modo específico, entre o direito civil e o direito constitucional. De modo que o fenômeno da constitucionalização do direito civil guarda relação com a crise do classicismo jurídico, mas sem qualquer relação com um novo romantismo (Sobre o “Direito Civil Constitucional” (Notas sobre a crise do classicismo jurídico). Revista trimestral de direito civil, a. 2, v.9 (janeiro/março 2002). Rio de Janeiro: Padma, p. 190-191).

Aparentemente, o lastro teórico do chamado “direito civil-constitucional” parece repousar em teorias tais como a de Dworkin ou Alexy. Entretanto, estas teorias terminam por ignorar a perspectiva histórica e à hermenêutica como expediente de apreensão de significados (2007, p. 84). A perspectiva histórica (ou historicismo) será um traço marcante no pensamento de Nelson Saldanha. O historicismo será a nota característica do pensamento de Saldanha no âmbito do que se poderia chamar de movimento culturalista, que tem em Miguel Reale um dos pontos altos.

O historicismo procura encarar as “experiências humanas como algo que, não podendo ocorrer senão em situações históricas, adquirem significado na medida em que se encaixam numa interpretação que leva em conta tais situações” (Historicismo e culturalismo. Rio de Janeiro/Recife: Tempo Brasileiro/FUNDARPE, 1986, p. 17). Muita vez observa-se entre alguns adeptos do “direito civil-constitucional” uma atitude que parece ignorar esta historicidade do direito.

Não é raro ver certos autores afirmarem que a Constituição Federal de 1988 iniciou uma nova era no direito privado, como se ignorassem o valor da multissecular tradição privatista. Esta visão a-histórica do fenômeno jurídico guarda relação com o insuficiente desenvolvimento de uma teoria filosófica das ciências culturais e com o prestígio do conceito físico-matemático de ciência (History, Reason and Law. Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, Bd. LXI/1 (1975). Franz Steiner Verlag GmbH, Wiesbaden, BRD, p. 62). Esta fragmentação do direito civil, que paulatinamente deixa de ter um locus proprio para se misturar ao direito constitucional, causava grande preocupação ao jurista recifense. Pois, para ele, “em nosso tempo de desconstruções, reconstruções, decodificações e hermenêutica, a revisão do sentido da teoria jurídica precisa incluir o reexame da posição da privatística como mater do pensamento jurídico ocidental” (Apontamentos sobre a teoria do direito civil. Revista Acadêmica, n. 84 (2012). Recife: UFPE, p. 465). Por outro lado, a adoção de uma perspectiva historicista, como a de Nelson Saldanha, pode proporcionar uma “vacina” eficaz contra certo tipo de otimismo exagerado que às vezes se apresenta como verdadeira epidemia entre os juristas.

Não raro, um civilista afirma que o direito civil atual “após a constitucionalização” foi elevado ao cimo da perfeição, ou que se constitui no estágio mais avançado da “evolução” normativa. Esta tendência “otimista” dos juristas de mitificar o direito – ou de enxergar o momento atual como “o melhor dos mundos possíveis” -, evidencia uma percepção muitas vezes “evolucionista” da história do fenômeno jurídico, “onde as normas e valores do presente já existem em embrião no passado mais longíquo”. Então, é comum ver autores afirmarem que Teixeira de Freitas era um homem “à frente do seu tempo”, ou que Tobias Barreto “antecipou tal teoria”. Como crítica e contraponto a esta visão evolucionista da história, Nelson Saldanha afirma que os grandes vultos do passado devem ser interpretados como intelectuais ligados às respectivas épocas, sem que se possa cobrar dele a adesão a teses que hoje estão em voga (Observações gerais sobre Jhering. In: ADEODATO, João Maurício (org.). Jhering e o Direito no Brasil. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1995, p. 183). O que também se pode afirmar de Tobias Barreto, Pontes de Miranda ou Nelson Saldanha. Foram homens de seu tempo. Nelson Saldanha, na sua perspectiva relativista, referia-se aos “passados”. Certamente, no Jardim e na Praça existiram diversos Nelsons Saldanhas. Talvez, alguns lembrem do apreciador de boa música, disposto a conversar sobre o último CD de Lenny Kravitz. Outros lembrarão do profundo conhecedor de Ortega y Gasset, Hegel e Dilthey.

Enfim, era ele e suas circunstâncias.

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