Dez anos depois

"Papel do CNJ é melhorar a gestão e não cuidar de questões salariais do Judiciário"

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12 de julho de 2015, 9h26

Spacca
Embora seja dos ministros mais antigos da composição atual do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes parece enxergar o Judiciário pela lente de um sociólogo. Isso quer dizer que se trata de um ministro que sequer considera o senso comum para dar resposta aos conhecidos problemas do Poder da República do qual já foi o comandante.

Não à toa, o ministro presidiu a mais agitada gestão que o Conselho Nacional de Justiça já teve. A gestão de Gilmar Mendes é reconhecida como das poucas que começou e acabou no mesmo ritmo acelerado. Ele ficou à frente do órgão – e do Supremo – de abril de 2008 a abril de 2010 e vêm dessa época algumas das principais contribuições do CNJ para a Justiça: Mutirão Carcerário, Começar de Novo e Justiça em Números, por exemplo.

Em retrospecto, o ministro avalia o legado que o CNJ deixou nesses dez anos. E conclui que “um papel muito importante do órgão é inviabilizar soluções do tipo ‘mais do mesmo’”. “Precisamos olhar com senso crítico”, afirma, em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Gilmar Mendes acredita que, no conjunto, o conselho mostrou resultados positivos e possibilitou avanços hoje difíceis de reverter. O exemplo mais evidente é incutir na mentalidade de quem pensa o Judiciário de que o problema é de gestão, não de orçamento. E que a solução está na desjudicialização, não no aumento da estrutura.

Entretanto, o ministro aponta problemas de identidade da instituição e lamenta os caminhos que têm sido tomados nos últimos anos. “Até pouco tempo atrás o CNJ não se tinha envolvido em questões salariais, e depois passou a emitir resolução para equiparações salariais, ou recentemente na questão do auxílio moradia”, comenta. “São decisões que, acredito, não honram a tradição do CNJ nesses dez anos.”

Leia a entrevista:

ConJur — Dez anos depois, o senhor avalia que o CNJ cumpre com a função para a qual ele foi desenhado e criado?
Gilmar Mendes —
Se fizermos uma avaliação das atividades desempenhadas nesses dez anos, o resultado do trabalho do CNJ terá que ser reconhecido como positivo. Se olharmos as conquistas que tivemos, em termos de maior transparência da atividade judicial, da ideia de accountability, ou prestação de contas, a verificação das atividades disciplinares, a possível punição de abusos no âmbito no próprio poder Judiciário, a ideia de planejamento, organização, creio que tudo isso milita em prol do resultado do CNJ.

ConJur — Mas o senhor notadamente vê problemas.
Gilmar Mendes —
Temos que reconhecer que esse desenvolvimento não se dá de forma homogênea e simétrica. O CNJ tem se tornado uma instituição “presidencialista”, depende muito de sua presidência. Talvez a própria formação díspar, com juízes, ministros, advogados contribua um pouco para a influência da pessoa do presidente. Se formos rigorosos, podemos dizer que no atual momento há um decréscimo de atividades, uma falta de aproveitamento do potencial institucional de que dispõe o CNJ, no planejamento, na construção de metas. O CNJ demonstrou grande influência na questão do sistema prisional, mesmo na questão da segurança pública.

ConJur — E hoje já não tem mais?
Gilmar Mendes —
Houve muitos problemas internos. Por exemplo, as disputas ocorridas entre corregedoria e presidência, notadamente na gestão do ministro Cezar Peluso e da ministra Eliana Calmon. Depois houve certa descontinuidade administrativa, uma não prioridade ao CNJ, e o seu envolvimento com questões corporativas. Até pouco tempo atrás o CNJ não se tinha envolvido em questões salariais, e depois passou a emitir resolução para equiparações salariais, ou recentemente na questão do auxílio moradia. São decisões que, acredito, não honram a tradição do CNJ nesses dez anos. Mas é importante assinalar que o resultado ainda é altamente favorável, se considerarmos o conjunto da obra.

ConJur — O que o senhor considera, então, o papel do conselho?
Gilmar Mendes —
São alguns. Um papel muito importante é inviabilizar soluções do tipo “mais do mesmo”. “Aumentou o número de processos, vamos aumentar o número de juízes.” Às vezes a demanda aumenta por uma causa específica, uma demanda concentrada que daqui a pouco passa, como causas tributárias. Inclusive certas causas às vezes aumentam porque determinado juiz é vagaroso. Então não posso criar uma causa automática de desdobramento de vara, como alguns imaginam. Vamos premiar a ineficiência e dividir uma vara em cinco? Não pode ser esse o critério. Precisamos olhar isso com senso crítico, e por isso órgãos como o CNJ são importantes, para que se faça esse tipo de aferição, o adequado dimensionamento de comarcas, de seções judiciárias, por exemplo.

ConJur — O senhor falou em alguns papéis. Destaca outro?
Gilmar Mendes —
Sem dúvida nenhuma intensificar esse trabalho programático, pedagógico, de desjudicialização. Já temos paradigmas, por que insistir na repetição? Se já há um entendimento em prol do consumidor, numa área de seguro, de banco, de comércio em geral, por que não estimular nessas unidades uma práxis condizente com essa jurisprudência? Seja na Justiça local, no STJ [Superior Tribunal de Justiça] ou no Supremo Tribunal Federal. O impacto disso é tirar do Judiciário a responsabilidade total da coisa, de se fazer microjustiça. Para quê levar ao Juizado Especial uma demanda para qual o desfecho eu já conheço? Isso vale tanto para as entidades privadas como para os entes públicos. E já temos alguma consciência em relação a isso, e temos alguns comandos. A própria AGU já tem isso, seria muito importante estender, pois diminuiria custos e permitiria que alocássemos a máquina da Justiça aos setores deficitários.

ConJur — Em que sentido?
Gilmar Mendes —
Em muitas das discussões que colocamos, como falta de recursos. Mas por que falta recurso? Será que vamos ter capacidade de prover recursos para as necessidades que estimamos sem fazermos os devidos ajustes? O grande trabalho do CNJ pode ser esse, de inteligência e de alocação adequada de recursos. E até de prover recursos em alguns estados. Por exemplo, em Alagoas verificamos que havia homicídios sem inquérito aberto. Talvez tenha que haver mais do que um provimento apenas de recursos humanos, como um fundo que ajude no desenvolvimento da própria Justiça. Em outras unidades é mais uma questão de diretriz, de prioridade. Tudo feito de maneira consensual. A experiência que eu tive nos anos à frente do CNJ indica que há boa receptividade.

ConJur — Qual foi a maior contribuição do senhor ao CNJ?
Gilmar Mendes —
O planejamento estratégico é fundamental, e precisa ter seguimento e prosseguimento. Talvez seja uma das atividades mais importantes do CNJ: contribuir para o planejamento e verificar onde estão as debilidades do sistema, já que temos forças diversas no Judiciário, principalmente no estadual. Temos também a assimetrias no Judiciário Federal, uma estrutura quase que megalômana na Justiça do Trabalho. Isso vai precisar ser discutido em algum momento. Temos também estruturas muito débeis em alguns estados. Não adianta nada determinar que eles tenham um dado desempenho sem saber qual é a capacidade de cada unidade. Isso precisa ser contemplado e para isso o CNJ precisa conhecer bem a realidade dos órgãos e talvez até prover recursos adicionais.

ConJur — Isso até já é feito, não é?
Gilmar Mendes —
Sim, por exemplo na informatização, distribuição de bens ligados à informática, meio que numa atividade supletiva. Mas talvez se devesse até pensar num fundo complementar para fazer certa equalização, especialmente no que diz respeito a fundos de modernização e coisas do tipo. A força financeira de cada unidade é diferente, e isso precisa ser visto. De alguma forma passou a ser olhado e vivenciado depois do estabelecimento das metas. A meta 2, por exemplo, que era julgar todos os processos que entraram até 2005 e saber por que não eram julgados esses processos. Na época criamos inclusive o Projeto Integrar, uma forma de cooperar com as unidades estaduais menos fortes, ou mais débeis. Treinamento, preparação de pessoal de cartório etc. Não adianta determinar simplesmente que um paraplégico corra.

ConJur — Outra iniciativa da gestão do senhor foi o mutirão carcerário…
Gilmar Mendes —
Ali pela primeira vez mexemos no contexto do caótico sistema prisional. Fizemos inclusive um levantamento de informações que não existiam antes, como o número de presos, quem era preso provisório, os atrasos na Justiça criminal, a necessidade de termos um programa de ressocialização de fato – e aí lançamos o Começar de Novo. Em suma, foi a partir dali que fizemos uma proposta, que hoje é lei, de criar um departamento de acompanhamento do sistema prisional. Criamos uma série de medidas concernentes a limite temporal da prisão, a obrigatoriedade de o juiz fazer a verificação da situação do preso etc. Veja, o Brasil tem hoje perto de 600 mil presos, mas praticamente a metade, mais de 40%, é de presos provisórios. Foi nesse contexto que apresentamos também a proposta das medidas alternativas à prisão, de alteração do artigo 319 do Código de Processo Penal.

ConJur — Interessante é que a maioria desses programas aconteceu justamente sem grandes reformas de sistema, mudança em lei, nem nada disso.
Gilmar Mendes —
Exatamente, e tivemos bons resultados. O programa Começar de Novo é de relativo baixo custo e teve bons resultados. Até aqui no Supremo. O próprio Estado teria um papel indutor, como poder fixar que 5% da mão de obra terceirizada possam ser de egressos do sistema prisional, ou que obras como as da Copa do Mundo pudessem contar com egressos, ou com pessoas do regime semiaberto. É mais um papel de coordenação e de legitimação. E isso precisa ser retomado. Num país que tem esse alto índice de reincidência esse tema precisa ser enfrentado.

Costumo dizer que isso não é um tema de direitos humanos, ou não só de direitos humanos. É um tema de segurança pública. Por isso lamento muito essa descontinuidade, que imagino ser apenas uma suspensão provisória. Acho que no futuro vamos voltar, o que pode ser inclusive coordenado com o CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público]. Veja que apenas com o mutirão carcerário conseguimos tirar 22 mil pessoas da prisão e algumas estavam presas há 14 anos.

ConJur — Mas nem todos os Judiciários estaduais se emocionam muito com esse tema. Dá para concluir isso até pela falta de informações que prestam ao Ministério da Justiça, ou à resistência a certa jurisprudência do STJ. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, teve algumas brigas com o CNJ.
Gilmar —
Pois é, e talvez tenha sido até essa a causa dos tais conflitos corporativos. Mas ao mesmo tempo também o TJ de São Paulo vem passando por mudanças significativas. Quem poderia imaginar que São Paulo implantaria mudanças como as audiências de custódia [projeto que fixa prazo de 24 horas para juiz ouvir preso em flagrante e avaliar se a continuidade da medida é necessária]?

Era uma das travas que já apontávamos para reduzir o numero de prisões provisórias e sempre se falava “mas como vai fazer isso em São Paulo?”, tendo em vista a quantidade de presos, seu tamanho. Mas veja que São Paulo é justamente o estado líder nesse processo de reforma, com bons resultados. A ConJur mesmo tem publicado que as audiências têm reduzido em 40% o índice de prisões provisórias. Na base disso está o trabalho do CNJ. O ideal é que lográssemos nacionalizar isso e tivéssemos controle do sistema. Até porque as audiências foram implantadas sem grandes reformas, graças ao empenho de alguns juízes auxiliares com a coordenação do CNJ e a cooperação dos juízes de primeiro grau também.

ConJur — Não precisou nem mesmo de orçamento.
Gilmar Mendes —
Não, não mesmo. É capaz até que tenha havido um crescimento do orçamento do CNJ desde então, pelo que ouço inclusive, e talvez haja um quadro de servidores muito maior do que tínhamos em 2010. E não obstante as atividades do órgão arrefeceram.

ConJur — Por quê?
Gilmar Mendes —
Acredito que tenha a ver com esse presidencialismo, a questão das prioridades, e talvez a esse jogo de contrapressão das corporações. Por exemplo, juízes que aderiam ao projeto de metas e depois começam a criticar as metas. E alguns ouvidos são mais sensíveis que outros a esse tipo de reclamação. Também a leitura que dão à ideia da autonomia do juiz, quando na verdade a própria Constituição optou por um modelo de coordenação geral pelo CNJ, com participação dos tribunais locais. A própria fixação de metas, fazíamos na presença de todos os tribunais. Até hoje temos valores importantes, como o Justiça em Números e a sua própria avaliação a cada ano. É um trabalho que teve continuidade e é um material valioso de estudo, embora percebamos de um tempo para cá uma perda de ritmo na superação do estoque.

ConJur — E que também vem mostrando uma judicialização cada vez maior de conflitos.
Gilmar Mendes —
É preciso haver algum tipo de reformulação. É outro papel que reputo fundamental do CNJ, o de reformulações institucionais. Não vamos sair dessas situações sem uma forte desjudicialização. Por isso o efeito vinculante das decisões, as próprias súmulas vinculantes, a valorização dos precedentes e do direito em si mesmo, independente da judicialização. Não podemos trabalhar com 100 milhões de ações, com 25 milhões ações novas por ano.

ConJur — E o que poderia ser feito?
Gilmar Mendes —
Um fortalecimento dessas decisões, um efeito vinculante virtual. No momento que reduzirmos, e vamos conseguir reduzir, certamente, priorizando ações coletivas, fazer alguns controles de políticas públicas, mas no dia que conseguirmos isso vamos ter também de redimensionar a máquina judicial. Realocá-la para outras finalidades. Talvez não precise de tantos juízes numa determinada especialidade. Também se pode fazer muito hoje com o próprio processo eletrônico. Não precisamos ter pessoas para carregar processos.

ConJur — Mas ainda não os vemos nos corredores dos tribunais?
Gilmar  Mendes —
É que estamos vivendo o que na sociologia e na antropologia se chama de "contemporaneidade dos não coetâneos". São idades diferentes convivendo num mesmo momento. No Sul do país, na 4ª região, eles já têm o chamado protocolo avançado, que é a possibilidade de protocolar um processo numa prefeitura. Tem um totem lá para você protocolar, não precisa de uma estrutura fixa para armazenar o processo e isso permite uma nacionalização da presença da Justiça.

Há muito o que fazer em termos de gestão, mas a partir do momento em que resolvermos o excesso de judicialização, alocação do juiz, ter um juiz na fronteira etc, passa a ser uma ser uma decisão geoestratégica, geopolítica, não necessariamente ligada à prestação jurisdicional efetiva. Amanhã podemos dizer “recebemos tantos processos de determinada localidade, então vamos fazer a audiência de conciliação naquele local”.

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