Embargos culturais

Quando Gilberto Amado encontrou Pinheiro Machado

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12 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Gilberto Amado (1887-1969), diplomata, político e jurista, deixou-nos ampla obra memorialista, na qual saboreamos momentos e personagens emblemáticos de nossa reminiscência histórica. Mocidade no Rio é um de seus livros mais exuberantes[1].

Chama-me a atenção a descrição do encontro de Gilberto com Pinheiro Machado (1851-1915), o condestável da República Velha, político gaúcho que do Morro da Graça, no Rio de Janeiro, conduziu a política nacional, até seu assassinato, ocorrido no Hotel dos Estrangeiros, no Flamengo, em 8 de setembro de 1915.

Conta-nos Gilberto Amado que Pinheiro Machado conhecia seus artigos e que, por dica de João Lage (outro enigmático personagem da época, casada com uma uruguaia, Dona Helena, e supostamente amasiado com Yvonne Dorville[2]), queria conhecê-lo pessoalmente. Corria o ano de 1911.

Pinheiro Machado intrigava Gilberto Amado, para quem: “Podia simpatizar com o homem, mas não com o político (…) Vincava-me, porém, a imaginação, a verticalidade da figura, alvo dos ataques da imprensa. A crista de chantecler, a impopularidade aceita com sobranceria, a falta de arreganhos, bamboleios e abraços fáceis com palmadinhas nas costas e camaradagens dengosas, as palavras firmes, secas, curtas, que lhe saíam da boca fina, cerrada naturalmente, seu todo varonil esculpido com linhas severas e duras – batalhavam dentro de mim em favor do homem, contra o que dele diziam e lhe atribuíam os jornais de oposição”[3].

Decidido a ir ao morro e “ver de perto o bicho”[4] Gilberto Amado foi recebido por Pinheiro Machado, ao lado de sua esposa, Dona Nhanhã, “robusta e mocetona paulista, a quem [Pinheiro] iria dever felicidade e calma domésticas”[5].

Sigo com a narrativa de Gilberto Amado, batendo na porta: “Que quer? Soltei um grito esganiçado: Que quer… o quê? Isto é modo de receber alguém? E dei de costas para pular os degraus e partir ladeira abaixo. Senti-me seguro e amassado nos ombros, por duas mãos firmes. Quem é Vosmecê? Desembuchei o meu nome e ajuntei encarando-o: Disseram-me que o senhor queria me conhecer. Oh, carinho! Vomecê! Tão pequenino! Entre! Venha! Foi me levando para dentro. Vou chamar Nhanhã. Ela também quer conhecê-lo. Quando, minutos depois, desceu a loura e atlética senhora, ele interrompeu a conversa em que já tínhamos mergulhado e disse, apontando para mim: Olhe, Nhanhã, o Gilberto Amado. Levantou-se para passar à outra sala, a do bilhar, onde o esperavam, e disse: Tome conte dele. Ele é brabinho…”[6].

Gilberto Amado impressionou-se com o volume de gente que transitava pela casa do caudilho, naquela manhã, “dessas de começo de ano em que o sol come as ruas, nos azunha o rosto e nos crava os dentes no cangote”[7]. Segundo o memorialista, “a casa enchia-se (…) senadores, deputados… a conversa generalizava-se”[8]; a dona da casa escolhia quem ficava para o almoço, vestida sempre “(…) de cor-de-rosa, ela própria toda rosa como uma holandesa, matronal, uma medalha no peito”[9].

O anfitrião designava os lugares aos escolhidos, cabendo, à esquerda de Nhanhã, o conviva de mais respeito[10]. A mesa contava com 18 ou 20 pessoas, “estendida de um lado a outro, era quase sempre cheia, de ponta a ponta”[11]. Comia-se “um bom trivial com base em carne assada e arroz (…) mas nos doces Nhanhã caprichava”[12]. Gilberto Amado fez referência a determinada iguaria, que segundo a dona da casa era a preferência de Rui Barbosa: “Como o Dr. Rui gostava desse doce![13].

A convivência entre Gilberto Amado e Pinheiro Machado estendeu-se com certa intensidade até o assassinato deste último, por um tal de Manso de Paiva. Essa amizade evoca-nos a arcana relação entre os intelectuais e o poder. Aqueles, seduzem e são seduzidos por este último. Não há um Justiniano que não tenha seu corpo de juristas treinados, um Napoleão que não conte com civilistas afiados, um Getúlio que não escute um Chico Ciência afortunado.

O intelectual orgânico de Gramsci é metáfora que talvez pretenda santificar a dupla Marx-Engels, e que faria injustiça com totalitários convictos como Carl Schmitt ou com arrependidos recorrentes como Albert Speer. Mas também é chave conceitual para estudos e reflexões em torno de intelectuais de perfil ideológico tão distinto, como Rui Barbosa, Alfredo Buzaid, Gustavo Capanema, Vicente Rao, Miguel Reale, Roberto Campos, José Guilherme Merquior, Roberto Mangabeira Unger, entre os brasileiros e, no estrangeiro, Marcelo Caetano, Benedeto Croce e Norberto Bobbio, que inclusive escreveu livro sobre o assunto.

 


[1] Utilizo aqui uma versão brochura verde que tenho, dada de 1958, editada por José Olympio, comprada em um sebo, com a assinatura de proprietário original, Amaury Lopes, com data de 30 de julho de 1958. A propósito de indicações de livros antigos, agradeço a Gustavo Lacerda Franco, que precisou exatamente o proprietário do livro sobre o qual tratei na semana passada. Trata-se de Carolino Campos Salles, e não Carolina Campos Salles. Gustavo Franco alcançou essa informação com base na lista de alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no início da década de 1920. Enviei a Gustavo uma foto da assinatura, a quem agradeço pelo desate do nó, cuja importância é superlativa para quem amamos as coisas da cultura.

[2] A informação (com sabor de indiscrição) é de Gilberto Amado, Mocidade no Rio e Primeira Viagem à Europa, Rio de Janeiro: José Olympio, 1958, p. 87.

[3] Amado, Gilberto, cit., p. 89.

[4] Amado, Gilberto, cit., p. 92.

[5] Amado, Gilberto, cit., p. 91.

[6] Amado, Gilberto, cit., p. 94.

[7] Amado, Gilberto, cit., p. 93.

[8] Amado, Gilberto, cit., p. 100.

[9] Amado, Gilberto, cit., loc. cit.

[10] Amado, Gilberto, cit., p. 102.

[11] Amado, Gilberto, cit., p. 103.

[12] Amado, Gilberto, cit., pp. 105-106.

[13] Amado, Gilberto, cit., p. 106. 

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