Debatendo a cidade

Transferência de área para aprovação de desmembramento do solo é abusiva

Autor

  • Murilo Melo Vale

    é advogado doutor (PhD) e mestre em Direito Público e professor de Direito Administrativo sócio do Tavernard Advogados e head da área de Direito Público e vice-presidente da Associação Mineira de Direito e Economia.

10 de julho de 2015, 6h46

Não raro, verifica-se a existência de legislações municipais, tais como a do município de Belo Horizonte, nas quais se exigem uma transferência compulsória, para o patrimônio público da municipalidade, de um percentual de área de imóvel que se submete ao ‘desmembramento’, uma modalidade de parcelamento do solo urbano.

Como se sabe, os municípios possuem competência constitucional exclusiva para promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Para conformar o interesse dos munícipes quanto ao adequado ordenamento territorial, são criados diversos deveres e ônus urbanísticos, cuja existência deve ser fundamentada na necessidade de se resguardar o bem-estar do ‘meio ambiente urbano’ ou a viabilização da edificação urbana na propriedade.

Contudo, infelizmente, muitos instrumentos urbanísticos, em tese, disponíveis para a viabilização desse munus municipal, vêm sendo deturpado para serem utilizados como meras ferramentas arrecadatórias, sem qualquer amparo constitucional. Exemplo disso, o município de Belo Horizonte, com base no artigo 29, da Lei municipal 7.166/96, exige do particular a transferência, para o patrimônio municipal, de 15% do terreno (gleba) que se submete ao processo de desmembramento ou de lote em processo de regularização de desmembramento previamente efetuado, sem mesmo justificar a necessidade dessa alienação para a viabilização da edificação, do uso ou da ocupação do solo urbano. Trata-se de verdadeira exação, camuflada de “ônus urbanístico”, a que se sujeita o cidadão municipal, cuja exigência demonstra-se inadmissível diante de sua completa dissonância com o ordenamento jurídico brasileiro.

É de se destacar a total incompatibilidade da natureza jurídica do instituto do desmembramento – enquanto espécie de parcelamento do solo – com a exigência de transferência compulsória de área ao patrimônio público. Ao observar a legislação federal (Lei 6.766/79), que regulamenta os contornos gerais acerca do parcelamento do solo urbano, constata-se que “desmembramento” é “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos” (artigo 2º, parágrafo 2º). Ou seja, diferentemente do “loteamento”, que consiste na subdivisão de gleba em lotes com abertura de novas vias de circulação e de logradouros públicos, no qual, além de justificável, a transferência de área é intrínseca ao próprio conceito, o “desmembramento” não exige, em tese, qualquer atuação ou investimento do município, o que torna injustificável qualquer exigência de transferência de área ao patrimônio público, já que se aproveita necessariamente toda a infraestrutura urbana pré-existente.

Em 1999, o Congresso Nacional pretendeu alterar o mencionado artigo 2, parágrafo 2º, da Lei 6.766/79, para possibilitar, em casos de desmembramento, “a modificação, a ampliação e o prolongamento dos já existentes ou a abertura de uma única via pública ou particular de acesso exclusivo aos novos lotes”. Todavia, diante da solidificação do entendimento doutrinário sobre a diferença entre os institutos do loteamento e do desmembramento, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, após parecer do Ministro da Justiça, corretamente vetou tal dispositivo, justificando que: “De acordo com a tradição jurídica […] o loteamento distingue-se do desmembramento por implicar ‘abertura de novas vias de circulação ou logradouros públicos”; assim, completa afirmando que “ao admitir o desmembramento com acréscimo do sistema viário, a proposta confunde ambas as figuras, estimulando a adoção de desmembramento, já que para essa modalidade de parcelamento não se exige a destinação de área da gleba ao poder público”.

Se a exigência de transferência para efetivação de desmembramentos não condiz com a natureza do instituto, afinal, o que consubstancia essa exação? Ao verificar os institutos jurídicos existentes, chegamos às seguintes ponderações: (1º) Seria uma espécie de tributo? Não, pois contraditaria a toda sistemática constitucional e aos limites da competência tributária do município, definida pela Constituição de 1988. (2º) Seria uma espécie de sanção pela infração de parâmetros urbanísticos? Não, pois a intenção ou necessidade de submissão de processo de desmembramento, na prefeitura, pelo particular, não decorre de ofensas a parâmetros urbanísticos vigentes. (3º) Seria uma espécie de indenização?Também não, pois não há que se falar em qualquer perda patrimonial do município ocasionada por qualquer ato ilícito do cidadão. (4º) Seria uma forma de desapropriação? É de se concluir que sim. Todavia, exigir a transferência de área para aprovar um desmembramento do solo contradiz, por sua vez, a toda sistemática constitucional e legislativa que regulamentam a desapropriação, pois deve haver a prévia e justa indenização ao particular pela propriedade transferida, bem como tal exigência deve ser realizada após o devido procedimento expropriatório, a ser inaugurado pela “declaração de utilidade pública”.

Por isso, é evidente que qualquer exigência de transferência de área ao patrimônio público, que não seja decorrente de loteamento ou de necessárias – e previamente comprovadas – intervenções urbanísticas aptas a viabilizar o uso e ocupação do solo, consubstancia em uma mera exação arrecadatória flagrantemente inconstitucional.

O município, no uso de sua competência urbanística, não tem a liberdade de impor qualquer tipo de dever sob o título de “ônus urbanísticos”, sem qualquer correlação com a adequada ordenação territorial urbana. Nesse contexto, o parcelamento do solo não é mero exercício de direito individual para melhor proveito de seu terreno, mas essencialmente um dever urbano – tanto que o município, desde a vigência da Constituição de 1988, pode exigir o uso, a edificação, como também o parcelamento compulsório do solo, sob pena de aplicação de sanções, tais como o IPTU progressivo no tempo, bem como a desapropriação urbanística punitiva.

Por ser, então, um “dever”, a exigência de qualquer transferência de área ao patrimônio público, para autorização do desmembramento do solo urbano, mesmo que prevista na legislação municipal, não pode ser legalmente exigida se não for previamente comprovado que tal “alienação” vai ser utilizada para a viabilização do uso e edificação do solo que está a se desmembrar. Caso contrário, tal dever evidenciaria sua natureza arrecadatória, para não dizer natureza extorsiva, desmunida de qualquer amparo jurídico.

Autores

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    é especialista em Direito Administrativo e sócio do escritório Tavernard Advogados, sendo coordenador do departamento de Direito Público. Também é professor de Direito Administrativo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Direito Administrativo pela mesma instituição de ensino.

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