Direito ambiental

Gerenciamento de risco é mais vantajoso que princípio da reparação integral

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9 de julho de 2015, 6h46

Recentemente, em maio de 2015, decisão de primeiro grau da Justiça paulista julgou procedentes os pedidos formulados em ação civil pública para condenar o proprietário de uma área contaminada a promover nova remediação, restituindo-lhe "integralmente o equilíbrio ecológico", tendo como metas Valores de Referência de Qualidade da Cetesb (processo 1032789-75.2013.8.26.0100).

Trata-se de importante precedente, que ainda deverá ser analisada em grau de apelação, e traz questionamentos importantes para o tratamento jurídico do gerenciamento de áreas contaminadas.  

A Lei Estadual paulista 13.577/2009 e a Resolução Conama 420/2009 traçaram as balizas jurídicas para o gerenciamento de áreas contaminadas seguindo a tendência internacional de determinar diferentes valores de tolerância à presença de contaminação, conforme o uso pretendido para a área. Foram previstos três níveis de valores: (a) de intervenção, para os casos em que há riscos à saúde humana; (b)  de prevenção, para os casos de riscos à qualidade do solo e da água subterrânea; e (c) de referência de qualidade, que indicam o "solo como limpo ou a qualidade natural da água subterrânea" (artigo 3º, incisos. XXII, XXIII e XXIV da Lei Estadual).

Ainda, de acordo com os artigos 10 e 11 da Lei Estadual, apenas na hipótese de riscos à saúde humana (valores de intervenção), a continuidade de atividades será impedida. Riscos ao meio ambiente (valores de prevenção) implicariam, em princípio, apenas a obrigação de monitoramento dos impactos. Daí a noção de tolerância ao impacto ambiental como uma fórmula para sopesar o gerenciamento de riscos ambientais, conforme o uso pretendido, com o desenvolvimento de atividades que possuem importância socioeconômica, o que tende a realizar o princípio do desenvolvimento sustentável.   

Contudo, o Ministério Público vem questionando a constitucionalidade dessas normas, uma vez que, segundo o parquet, a tolerância à contaminação, em qualquer nível, violaria o direito fundamental ao meio ambiente e o princípio da precaução. No julgamento da ADIn estadual 0210197-50.2011.8.26.0000, o Tribunal de Justiça entendeu que o artigo 10 não é inconstitucional, pois contém apenas "critérios de prevenção para o exercício das atividades econômicas. Não cuida, portanto, de hipóteses de incerteza quanto ao dano ambiental, nas quais incide o princípio da precaução, mas de critérios de avaliação a serem desenvolvidos com base em conceitos toxicológicos que, além de permitirem o exercício de atividades relevantes do ponto de vista econômico e social, previna a ocorrência de transformações prejudiciais ao ser humano e ao meio ambiente".

No entanto, o Tribunal também decidiu que o atendimento aos valores de prevenção (sem risco à saúde, mas com riscos ao meio ambiente) "não resguarda o agente contra a responsabilidade por eventuais danos causados (…) não confere uma autorização para poluir". Assim, o Ministério Público passou a propor ações civis públicas contra proprietários de áreas contaminadas, para obrigá-los a promover a remediação dessas áreas até atingir valores de referência de qualidade.

O réu, no caso do precedente mencionado, é um investidor imobiliário que adquiriu uma propriedade onde, no passado, funcionou um posto de gasolina. Essa atividade teria causado contaminação do solo e águas subterrâneas. O posto promoveu a remediação da área e atingiu os valores de prevenção exigidos pela Cetesb. Pela legislação vigente isso bastaria para a reabilitação da área. O investidor adquiriu então o imóvel e requereu a reabilitação. 

Ou seja, o investidor agiu de acordo com aquilo que o destinatário da norma poderia razoavelmente prever: adquiriu uma área que, nos termos da legislação vigente, havia sido remediada e poderia ser reabilitada para determinado uso. O mesmo se aplica ao vendedor, que realizou o procedimento previsto em lei para viabilizar a venda do imóvel. 

O Ministério Público argumentou que, apesar de o proprietário "ter executado todas as fases do procedimento de gerenciamento de áreas contaminadas exigido pela Cetesb, o dano ambiental provocado ainda está longe de ser reparado". Isso porque o princípio da reparação integral, na interpretação dada pelo parquet, não apenas viabilizaria a cumulação de obrigações de reparar in natura e pagar indenização pelo dano ambiental (REsp 1.198.727/MG), mas também permitiria exigir a remediação pautada por valores de referência de qualidade.[1]

A sentença acompanhou a tese do Ministério Público e decidiu que, embora os valores de referência exigidos pela Cetesb afastem o risco à saúde humana, o pedido é procedente porque "não é possível aceitar que a ré erga empreendimento imobiliário destinado a moradias em solo que abriga água com quantidades de benzeno superior às recomendadas". Assim, a tolerância a certos níveis de contaminação, conforme o uso do solo, implicaria "chancelar que o direito fundamental, indisponível e intergeracional ao meio ambiente equilibrado (…) pudesse ser subjugado a pretensões egoísticas (…) pensar de outra forma seria projetar, moralmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental compensa. Diante disso, a resposta judicial no caso de dano ambiental há de ser energética, sob pena de a impunidade do ofensor servir de inspiração social".

A gestão das áreas contaminadas é questão que se articula com políticas urbanas de ocupação e desenvolvimento. A tese acolhida pela sentença trivializa a questão e pouco colabora com a efetividade da proteção ambiental. O investidor imobiliário não é, em regra, o causador do dano, mas sim alguém que decidiu investir na recuperação ambiental de determinada área que, de outro modo, permaneceria abandonada. O empreendimento tende a reverter não só em lucro para o investidor, mas também na valorização e revitalização de bairros, criação de empregos, movimentação da economia etc.. A "pretensão egoística" é, portanto, apenas um dos lados da equação.

A sentença pretendeu servir como "inspiração social" para desestimular condutas degradadoras, mas passou ao largo do fato de que, embora seja legalmente responsável pela higidez ambiental da área (artigo 13, inciso II, da Lei Estadual), o investidor imobiliário não é o "ofensor", não cometeu o "ilícito ambiental". Ao contrário, é interessado em recuperar a área. A noção de "impunidade do ofensor", está fora de lugar.  

Além disso, a Cetesb afirmou naqueles autos que a "total eliminação [da contaminação] é praticamente inviável do ponto de vista técnico e econômico, daí a prática de se buscar a remediação para um uso definido, considerando o risco à saúde que esta contaminação apresenta para este uso" (fl. 545). No caso concreto, como "os contaminantes presentes são compostos biodegradáveis, pode-se inferir que em um período determinado de tempo a área sofrerá um processo de descontaminação por atenuação natural, pela qual o contaminante orgânico é degradado sem a intervenção humana" (fl. 547).

Ou seja, o gerenciamento da área conforme o uso declarado traria lucros para o investidor, revitalização para a região e, com o tempo, a área sofreria "um processo de descontaminação por atenuação natural", inexistindo riscos à saúde. A sentença, por outro lado, condiciona a reabilitação a um processo de remediação que, segundo a Cetesb, é "inviável do ponto de vista técnico e econômico". A mensagem, percebe-se, não atinge o degradador ambiental, mas o investidor eventualmente interessado em recuperar áreas contaminadas e a mensagem é: fique longe dessas áreas.

Mais do que a aplicação binária da norma, a questão aqui é saber para onde se quer levar a interpretação do Direito Ambiental e do princípio do desenvolvimento sustentável. Afastadas as hipóteses de risco à saúde humana e, diante da perspectiva de um processo natural de descontaminação, justifica-se a imposição de uma remediação economicamente inviável?

É tentadora a ideia de uma hierarquia constitucional, na qual o direito ao meio ambiente possa sempre se sobrepor a outros direitos, mas problemas complexos dificilmente comportam soluções simplistas. A recuperação de áreas contaminadas é um problema cuja complexidade vai muito além daquilo que os mecanismos jurídicos de sanção-responsabilidade podem dar conta.[2] Se o custo da remediação exigida for muito maior do que o valor potencial da propriedade, a área tende a ser abandonada e torna-se um problema público, como ocorreu em vários países com os chamados brownfields.

Por força da moderna separação funcional entre os sistemas jurídico e econômico (Luhmann) as operações econômicas não (co)respondem a decisões judiciais, mas apenas às orientações do mercado. Decisões judiciais não podem gerar dinheiro nem podem, sem a ajuda de dinheiro, gerar orientações mercadológicas sobre o interesse econômico das propriedades. O direito ambiental, no entanto, opera a partir de limitações ao direito de exploração da propriedade, que impactam negativamente o seu valor. Na sociedade complexa, o caminho mais realista para sua efetivação é garantir que, a partir dessas limitações, o mercado possa produzir valores positivos, que tornem vantajoso, para os agentes econômicos, a proteção e recuperação do meio ambiente. Nesse cenário, instrumentos como o gerenciamento de riscos conforme o uso declarado têm anos-luz de vantagem em relação à aplicação simplista do princípio da reparação integral

 


[1] Conforme José Eduardo Ismael Lutti,  "Resolução Conama 420/2009 e Lei Estadual 13577/09: inconstitucionalidade da 'remediação para uso declarado' " in RDA 65, jan, 2012, RT. O autor é também o promotor signatário da ACP.

[2] Veja-se, nesse sentido, o relatório do CABERNET – Concerted Action on Brownfiedl and and Economic Regeneration Network, sobre a situação europeia das áreas contaminadas, segundo o qual  "Regenerating brownfields is a significant challenge due to the complexity of the problem. Sophisticated multifaceted approaches are required to tackle this pan-European problem. Some of the key aspects of the brownfield problem relate to the diversity of stakeholders involved in the process. Problem oriented solutions for brownfields will need to focus on multi-stakeholder approaches that respect the range of perspectives as well as the diversity of stakeholder values. CABERNET (Concerted Action on Brownfield and Economic Regeneration Network) is the European network that is tackling the complex issues that are raised by brownfield regeneration from a multi-stakeholder perspective". Disponível em http://www.cabernet.org.uk/resourcefs/427.pdf

Autores

  • é advogado associado a Trench, Rossi e Watanabe, Professor de Direito Ambiental na PUC-SP, Doutor em Filosofia do Direito. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e Pesquisador-visitante da Università degli Studi di Lecce.

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