Senso Incomum

Como (não) se ensinava processo penal antes da "lava jato". Eis o busílis!

Autor

9 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Alexandre Morais da Rosa (ler aqui) pergunta como é possível ensinar Direito Processual penal depois da operação "lava jato". A resposta é difícil. Ela exigiria a escrita de um livro e não de uma coluna. O segredo da resposta está na crise da dogmática jurídica, da qual falarei mais adiante.

Dos anos 80 para cá ocorreu uma transição não muito bem feita. A falta de democracia originou uma espécie de aposta no protagonismo do Judiciário em face da estrutura autoritária da legislação e do Estado. Por isso floresceu, em determinado período, um espaço que foi ocupado por teses acionalistas, como o realismo jurídico, o direito alternativo, o direito achado na rua, a velha investigação cientifica, etc. No regime autoritário, era necessária aposta em posturas acionalistas. Entretanto, quando foi implantada a democracia e promulgada, logo depois, a Constituição, a dogmática jurídica não se reciclou. Ali começa o problema.

A crise de paradigma de dupla face: minha antropofagia
Para mim, o busílis da questão que está na raiz da pergunta de Alexandre Morais da Rosa reside lá longe. E sobre ela escrevi muito. Já antes de 1988 fazíamos congressos e, junto com José Eduardo Faria, denunciávamos aquilo que hoje bate forte na dogmática. Faria dizia que se avizinhava uma crise de paradigma com a nova Constituição. Segundo ele, o direito estava preparado para lidar com conflitos interindividuais e não “aguentaria o tranco” quando se defrontasse com os conflitos transindividuais.

Bingo. Ousadamente, peguei a tese de Faria e fiz uma antropofagia, que já está em textos bem antigos. Chamei a essa crise de uma crise paradigmática com dupla face. A face um (lado A) era a da estrutura do direito, que, preparada para pegar ladrões de galinha (e criticava a cultura manualesca cujos exemplos eram sobre Caio, Ticio e Mévio), não estava preparada para enfrentar os casos que tratavam de bens jurídicos transindividuais (vejam: as garantias são para todos; na época denunciava que estas só eram aplicadas em favor de determinados segmentos — eu queria isonomia para a patuleia, por assim dizer).

Mas havia um problema a mais. A crise só se sustentava porque havia um lado “B”, que chamei de crise do paradigma aristotélico-tomista e da filosofia da consciência (e teses voluntaristas em geral) porque, de um lado ainda a dogmática estava sustentada em posturas objetivistas (verdade real, por exemplo e o mito do dado das posturas exegetistas) e, de outro, paradoxalmente, quando interessa(va) — ideológica e politicamente — lança(va) mão do extremo subjetivismo, dando o sentido que quer(ia) às leis e aos fenômenos envolucrados nos tipos penais e nas garantias processuais.

A crise de dupla face escondeu, por exemplo, o solipsismo judicial, que, por sua vez, esconde o paradoxo representado pela dupla face (o mix entre objetivismo e subjetivismo). E continua escondendo a relevante circunstância de que a dogmática jurídico-processual penal produziu doutrina durante todos esses anos apostando no protagonismo dos juízes. Continuou a apostar na livre apreciação da prova. Mais: colocou um verniz — que agora desbotou — com a ficção do “livre convencimento motivado” (ou livre apreciação motivada). É de uma ingenuidade de dar dó a crença generalizada da comunidade jurídica na bondade das analises judiciais. O juiz é bom? Para quem? Depende do lado que você está. Ou eu tenho um direito, ou eu não tenho — se eu tenho, o Poder Público tem o dever de reconhecê-lo. Não importa minha posição social. É assim que funciona em arranjos democráticos. E isso não pode depender da opinião que eu e você temos a respeito disso.

Observemos um sintoma: quando a procuradora Ela de Castilhos escreveu sua tese de doutorado nos anos 90, mostrou que menos de 10% dos casos de crimes de colarinho branco era objeto de condenação em Pindorama. Por que hoje isso mudou? Por uma razão simples: naquele momento os órgãos repressivos-investigativos eram competentes para lidar com os crimes ligados à interindividualidade ( o lado A da crise). Sempre foi mais fácil provar coisas quando o réu era pobre e os crimes daqueles-cometidos-por-pobres. No momento em que, dos anos 2000 para cá, houve um aprimoramento da Policia Federal e do Ministério Público, começou a mudar o cenário. No andar de baixo a coisa continuou como estava; o que começou a mudar foi a relação com o andar de cima.

Só a dogmática não se reciclou
Mas, o que não mudou? Só não mudou o imaginário dos juristas. No processo penal, continuou-se a escrever, grosso modo, as mesmas coisas. Poucas foram as analises criticas, no sentido paradigmático da palavra (não me refiro aos discursos panfletários). E tem sido quase zero a preocupação com a filosofia no processo, isto é, a discussão das condições de possibilidade de o judiciário apreender o fenômeno e… decidir. Não nos preocupamos com a decisão. Por incrível que pareça — e isso parece risível — somos tão atrasados que até mesmo o projeto do novo Código de Processo Penal (que tramita a passos de cágado no Parlamento) insiste na tese da livre apreciação da prova.

Ora, deveríamos ter iniciado no dia 5 de outubro de 1988 uma filtragem nos Códigos. Mais, fundamentalmente, deveríamos ter feito uma filtragem nas posturas dos juristas. A CF/88 mudou o alvo. Lamentavelmente, pouquíssimo se alterou na dogmática processual-penal. Até hoje tem gente que escreve sobre processo penal ainda defendendo o sistema inquisitivo. Foi muito lenta a apropriação do novo. Lembro a batalha que travei, em conjunto com a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para implementar a tese do interrogatório como meio de defesa. Fiz inúmeros pareceres sustentando a nulidade de interrogatórios que não traziam a presença do advogado. De forma pioneira, a 5ª Câmara anulou centenas de processos. O Ministério Públicorecorria contra meus próprios pareceres. E o Superior Tribunal de Justiça anulava as anulações, sob o argumento de que o CPP não exigia a presença de advogado. Lembro que, em 2004, quando veio a Lei 10.792/2003, escrevi: os juristas não acreditaram até agora na CF que prevê a ampla defesa; mas agora acreditam na nova Lei. Aleluia. Não era dramático?

Há marcos rupturais?
Alexandre Morais da Rosa diz que a "lava jato" é um marco. Eu diria que a “coisa” começou um pouco antes, na Ação Penal 470. Escrevi várias colunas na ConJur mostrando que a maior derrotada na AP 470 foi, exatamente, a dogmática jurídica. Seus elementos centrais foram destroçados do mesmo modo que o escrete canarinho o foi pela seleção alemã na Copa passada. Quando viram, estava 5×0. E assim foi com a AP 470.  Aquilo que a dogmática pregava e ensinava a vida toda foi liquidada paradoxalmente pelo mesmo esquema tático que a sustentou: a livre apreciação da prova e a busca da verdade real (que tem em seu ponto de estofo o velho inquisitivismo e, portanto, as respostas teleológicas). Sim. Há décadas que os livros de processo penal ensina(ra)m aquilo que foi utilizado como arma contra os próprios ensinadores e utentes em geral. É duro, mas foi o que ocorreu.

De fato, é nesses hard cases da vida (real) que os juízes revelam suas convicções pessoais sobre o direito, não esquecendo que também houve uma profunda renovação nos quadros da magistratura e do Ministério Público. A questão é saber se o direito coincide com as convicções pessoais dos juízes (e dos promotores). Entendem o que quero dizer? O que apareceu, tanto na AP 470 como na "lava jato" (e isso se estende ao restante do direito)? Simples. Apareceu aquilo que venho denunciando há muito tempo: A visão pessoal do judiciário acerca do problema e seus efeitos colaterais em uma sociedade fragmentada. Ou seja, indagou-se ao judiciário o que o direito tem a dizer sobre esses fenômenos e ele respondeu o-que-cada-membro-do-judiciário-pensa-sobre-tudo-isso. Claro que ele já fazia isso desde sempre. Só que, agora, pegou em outro alvo. Essa talvez seja a parte mais difícil de compreender na teoria do direito: a de que, antes dos juízes, existe uma estrutura chamada “direito” e que, por vezes, não diz exatamente a mesma coisa que cada juiz pensa. Esse é o locus da doutrina jurídica: fazer essa transição paradigmática entre o direito (estrutura) e o imaginário dos operadores. Observe-se: esta análise transcende os hard cases em tela. Não pretendo, assim, “julgar os julgamentos”.

Onde e quanto sapato aperta em novos pés
Por que digo isso? Porque, quando o sapato aperta (em novos pés), quando o caso e os argumentos que os concebem assim o exigem, os juízes acabam dizendo o que pensam sobre a apreciação da prova, do convencimento, da formação da opinião. O problema é que, por vezes, isso fica aquém ou além da estrutura chamada “direito” (que é feito pelo parlamento).  Quando surge um “decido conforme minha consciência”, ou um “não me importa o que diz a doutrina” na voz da linguagem pública, é porque a doutrina já fracassou de há muito… se é que me entendem.

Ou seja: vai tudo muito bem até que o direito (uma instituição fundante da democracia) deixa de ser um direito, para ser aquilo-que-o-juiz-entende-por-direito. É, por exemplo, quando se prende e se solta com base no mesmo argumento. Pois é: Se tudo é, nada é.  Acredito que isso tudo pode ser resumido assim: enquanto a “clientela” era a patuleia, a dogmática jurídica se indignava no atacado; mas quando a “clientela” passou a ser um “não-patuleu”, a dogmática passou a se indignar no varejo. Só que já é(ra) tarde. Aqui entra a pergunta de Alexandre Morais da Rosa.

Então, como ensinamos?
Pois esse é o ponto central para a resposta à pergunta de Alexandre Morais da Rosa. Como ensinamos processo até hoje? Simples: Ensinamos processo a anos-luz dos paradigmas que conformam o mundo. Ninguém mais fala no esquema sujeito-objeto. Mas, no direito, sim. Só que é ainda pior. Não só falam no esquema sujeito-objeto (subjetivismo-solipsista) como ainda tem gente escrevendo sobre verdade real, que é uma “verdade” pré-moderna, em que, se quisermos lidar com os fatores S e O, seria O>S, um objeto que (ainda) assujeita o sujeito. É complexo isso? É. Muito. Mas se continuarmos a achar que direito é coisa simples — como querem setores importantes da dogmática jurídica —  teremos que aguentar isso tudo-o-que-vemos-cotidianamente.

Um sintoma que mostra a crise claramente
Outro sintoma que demonstra a minha tese da crise de dupla face: a tal da ponderação. Esse sintoma desnuda a crise de dupla face. Sempre a denunciei (a ponderação) como sendo uma tese caudatária do subjetivismo. Inúmeros juristas — alguns que hoje se queixem da "lava jato" e se queixaram da AP 470 — escreveram ou ensina(ra)m nas salas de aula que o juiz pode fazer ponderação entre direitos individuais e interesses coletivos, citando, para isso, Alexy. Dramaticamente equivocados. Quantos acusados já foram condenados com base na ponderação (mal feita)? Sem fazer qualquer passagem pelas fases complexas do processo de “ponderação”, o judiciário simplesmente pega um “valor” (sic) em cada mão e, fiat lux: escolhe um deles, no mais das vezes o “valor público”, que seria o interesse da coletividade. Só que esquece(ra)m que Alexy nunca disse isso. E o ônus argumentativo? Ninguém fala disso? Sabem por quê? Porque a dogmática nunca se preocupou com isso. Coagulou os sentidos e se fechou em um monastério. A dogmática jurídica quer ser prática. Mais importante que estudar e pesquisar, é ter bons contatos na República. É conhecer os caminhos das pedras… Pois é.

Insisto: Enquanto o modelo investigatório-probatório tratava de alcançar a malta, a dogmática quedou-se silente. Agora, quando se alcançam outros setores, a “coisa pega”. Louvo a preocupação de Alexandre Morais da Rosa. Bingo. Apenas acrescentaria que: não se ensina depois… porque não se ensinou antes… Essa luta é paradigmática. E foi perdida. Pela própria dogmática jurídica. Porque exatamente cumpriu o vaticínio da crise de paradigmas de dupla face: preparada para enfrentar os conflitos interindividuais, não se preparou para os grandes embates. Não se preparou para o dia em que o jogo poderia virar, com novidades como delação, etc.

Tudo isso que disse acima posso comprovar epistemicamente (e empiricamente). Quando saiu a Lei das Interceptações — lá em 1997 —, escrevi acerca do perigo de se usar esse mecanismo como inicio e não como ultima ratio. Poucos se preocuparam com isso. A própria delação premiada merec(er)ia uma filtragem constitucional, conforme delineei alhures, para que ela não fosse utilizada igualmente como unica ratio e como instrumento de pressão. Ali está(ria) uma inconstitucionalidade. Como sempre, a dogmática decidiu esperar o que o judiciário diria… Sempre uma volta ao velho realismo jurídico. O direito se faz mesmo é… na decisão. O fantasma de Holmes, Alf Ross, Olivecrona… estão presentes.

Quando surgiu a lei que alterou o artigo 212 do CPP, fui o primeiro a escrever e lutar no tribunal para que fosse aplicado, porque ali estava o inicio da implementação do sistema acusatório. E ali estava também uma possibilidade de ruptura com a velha teoria das nulidades. Fui à luta. Fiz críticas à doutrina de Luiz Flávio Gomes e Guilherme Nucci que defenderam a não necessidade de aplicar, dizendo que o novel dispositivo nada havia alterado na estrutura do CPP. Diziam ambos que isso acarretava apenas nulidade relativa, como se estivéssemos no século XIX. Também critiquei o STJ e o Supremo Tribunal Federal. E quem esteve no Congresso da ABDCONST realizado depois da lei deve se lembrar do repto que fiz ao STF e a um dos ministros presentes acerca do sentido dos limites semânticos da lei. Está lá gravado. E a dogmática jurídica quedou-se silente. Posso matar a cobra e mostrá-la morta.

Enfim, esse quadro de crise paradigmática de dupla face faz com que, hoje — e esse é o ponto nevrálgico —  os direitos, as garantias processuais não dependam de uma estrutura chamada direito (conceito aqui já explicitei ad nauseam), e, sim, do solipsismo judicial, que por sua vez possui ancoragem nas fragmentadas decisões judiciais. Para o bem e para o mal. Afinal, há decisões para todos os gostos. As decisões passam a ser, cada vez mais, teleológicas (decide-se e, só depois, busca-se uma justificativa) e não de principio. Não quero ser o descobridor da pólvora, mas tenho insistido, com chatice epistêmica, que as decisões judiciais devem ser proferidas por princípios e não por políticas. E que precisamos de uma teoria da decisão. Antes de uma decisão por decisão, um modo de como esta deve ser feita.

Para ser bem claro: Se, por exemplo, o paciente reúne as condições de receber habeas corpus — aferíveis objetivamente em face da estrutura chamada “direito” — por mais que seja antipático ou politicamente incorreto a sua soltura, o judiciário deve conceder o writ. Mesmo que a mídia berre. Porque a decisão na democracia é por principio. Por mais tentador que seja agir por política. Mas, infelizmente, a própria dogmática jurídica cavou o seu buraco. Admite até hoje a livre apreciação. Logo, se esta é livre, pode ser contra ou a favor. E logo depois se justifica o que foi decidido intuitivamente… Por isso, em casos que envolvam forte atuação da mídia, cada vez mais as decisões são teleológicas. Finalísticas.

Mas não ponho a culpa no Judiciário. Fazemos parte de uma coisa maior, que é o imaginário jurídico no interior do qual nos localizamos. E agimos. E não reagimos. Do professor da faculdade tipo-balão-mágico, que não sabe um ovo do que ensina, até o professor de cursinho que encanta as plateias com refrões resumidinhos, até a pós-graduação que, em parte considerável de programas, ainda repete conteúdos da graduação, com dissertações e teses sobre embargos, limitação de fim de semana, estelionato, cheque sem fundo ou agravo, com temas monográficos que recebem uma flambagem teórica do tipo “regra é no tudo ou nada, princípios é na ponderação”. Tem exceção? Claro. Muita. Mas parcela considerável do ensino e das práticas nos mostra esse quadro tão bem pintado por Alexandre Morais da Rosa. Só que minha resposta tenta pegar a origem disso tudo.

O problema é que o judiciário já se acostumou…
Parece que a discussão das garantias processuais, antes tão distante do andar de baixo (veja-se que a maioria dos tribunais estaduais ainda usa a inversão do ônus da prova para crimes do tipo cometido-pela-patuleia), está provocando, dialeticamente, o andar de cima. Violações são condenáveis nos dois andares. Só há um modo de combater isso: decidindo por princípio, como explicito em Verdade e Consenso. E, para tanto, necessitamos de uma doutrina adequada.

Se na primeira pedalada a-paradigmática nas garantias a doutrina tivesse feito os necessários constrangimentos (que devem atuar nas faculdades, cursinhos, livros, conferencias, seminários, etc), não teria sido formada uma “certa tradição”… se me entendem o que quero dizer. Ou seja, o problema é que o judiciário já se acostumou a julgar conforme a sua livre apreciação acerca dos fatos e da lei. E, hoje, todos pagam o preço:

  1. o andar de baixo, por ser da tradição de um país de modernidade tardia; e
  2. o andar de cima, pelo desejo que o judiciário tem de tentar corrigir aquilo que a política não vem conseguindo.

Só que esta tarefa não é dele.

Numa palavra final
O quadro pintado por Alexandre Morais da Rosa está correto no plano de uma análise realista. É assim mesmo que as coisas estão indo. E a saída que ele propõe também tem fortes traços de realismo jurídico, isto é, a decisão é, ao fim e ao campo, um problema do judiciário e assim devemos nos preparar para enfrentar esse fenômeno de poder. Mas, aí é que está: eu não consigo conceber que o problema da decisão se transforme em um jogo de poder ou seja resolvida como se fosse (algo tipo als ob). Se, de fato, for um jogo de poder, temos de confessar o fracasso da doutrina e de tudo o que ela representa em termos de “constrangimentos epistemológicos”. É como se, no nosso cotidiano, os sentidos das coisas só nos surgissem no momento em que lidássemos com elas e não a partir de um a priori compartilhado que, é claro, também inclui o encontro com essas coisas. Mas não são essas coisas (no caso, as decisões) que me impingem o que a coisa (o sentido do direito) é. Toda concepção que possui traços realistas inexoravelmente flerta com alguma forma de objetivismo.  As decisões não são a fotografia do direito, assim como a filosofia não é o espelho da natureza, para usar uma expressão conhecida.

A partir do diagnóstico de Alexandre Morais da Rosa, haveria uma polarização que opõe um modelo “continental” de estudo do direito (identificado a partir de uma perspectiva epistemológica mais abstrata e sistemática, centrada na resolução dos problemas normativos) a um modelo anglo-saxão, de conotação realista (cuja identificação pode ser retratada a partir de um corte mais pragmático, assistemático, centrado num tipo de análise que permita avaliar as condições sociais e psicológicas que envolvem o processo decisório para — tentar — fazer projeções de como serão decididas os casos futuros semelhantes).

A questão posta, portanto — a partir de um olhar hermenêutico — não pode ter como resposta um realismo de nova roupagem, que continue a descrer da possibilidade de uma concepção de direito que preexista à decisão judicial e que deve conformar o caso, com um efetivo grau de autonomia. Ora, se hoje temos esse mosaico sincrético de tradições no âmbito do processo penal, como bem denuncia Alexandre Morais da Rosa, isso se dá justamente porque, nos últimos dez anos, o campo majoritário do direito no Brasil acabou seduzido pelo canto das sereias do realismo jurídico. O que seria essa volta a uma espécie de realismo? Simples: nele, os sentidos do direito decorrem e se dão predominante… na e pela decisão judicial; eis o porquê do crescimento do direito “jurisprudencial” em Pindorama; eis o porquê da paixão do novo Código de Processo Civil (CPC) pelos precedentes.

Claro que a solução do problema não está em colocar o modelo conceitualista-sistemático como o método privilegiado de análise do direito. Insisto: a resposta à questão exige uma reflexão que consiga apontar para uma dimensão mais complexa do que aquela que resulta(ria) de uma simples opção por um modelo ou outro. Trata-se de conseguirmos construir uma verdadeira terceira via. Algo que, na verdade, já está aí: no pós-positivismo de Friedrich Müller, na teoria integrativa de Ronald Dworkin e, permito-me dizer, também na Teoria da Decisão que proponho em Verdade e Consenso — que faz uma antropofagia de Gadamer, Dworkin e Müller, de alguma forma) e outros tantos livros. Mas esse encontro precisa acontecer logo, sem esperas ou demoras.

Desculpem-me pelo tamanho da coluna, mas o texto de Alexandre é absolutamente instigante. E é só o começo de uma longa discussão.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!