Uber x Táxis

Estado não pode inviabilizar atividade econômica ao regulamentá-la

Autor

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

8 de julho de 2015, 6h07

Na ordem do dia a discussão sobre a legalidade da atividade prestada pela Uber, apresentada como empresa de tecnologia que conecta motorista autônomo e usuário em busca de transporte.

Notícias sobre decisões judiciais dão conta de que a atividade seria clandestina, uma vez que não fora submetida à autorização ou permissão do Poder Público, conforme dispõe normas que disciplinam o serviço de táxi.

A questão central, portanto, é saber se a atividade ofertada pela Uber é ou não atividade econômica, pois, se for, o regime da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, da CR), liberdade no exercício de qualquer trabalho (artigo 5º, inciso XIII), livre concorrência (artigo 170, caput, inciso IV, CR) e livre exercício de qualquer atividade econômica (artigo 170, parágrafo único, CR), será aplicável de modo a invalidar tentativa de impedir ou proibir a ferramenta tecnológica disponibilizada pela Uber.

Antes de mais nada, é bom correr os olhos na Constituição da República para ver se qualquer iniciativa que envolva o transporte individual de passageiros é considerada serviço público. Não há. O artigo 30, inciso V, dispõe ser da competência do município organizar e prestar serviços públicos de interesse local, “incluído o de transporte coletivo”.

Isso, contudo, não impede que o legislador, por meio de lei ordinária, possa destacar determinada atividade para designá-la como serviço público. Entretanto, e considerando ser a livre iniciativa fundamento da República (artigo 1º, inciso IV, da CR), será possível testar a constitucionalidade dessa eventual norma a partir da razoabilidade, uma vez que não seria admissível que qualquer trabalho ou negócio inicialmente privado passasse a ser de titularidade exclusiva do Estado (daí, serviço público) sem que houvesse razões fáticas e jurídicas justificáveis.

A Lei 12.468/2011, que regulamenta a profissão de taxista, dispõe que “é atividade privativa dos profissionais a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros”, o que poderia sugerir que o produto ofertado pela Uuber seria abarcado por essa previsão.

Ocorre que a atividade de taxista, reconhecidamente de interesse público pelo legislador, não exclui a do motorista autônomo, proprietário ou não de veículo, que exerce seu trabalho de forma lícita o que, aliás, é contrato típico previsto no Código Civil (Capítulo XIV, Seções I e II).

Também não está vedada, no âmbito da iniciativa privada, a oferta de locação de veículos com motorista, razão pela qual há diversas empresas no país atuando nesse ramo.

Também não está incluída na referida lei a oferta de ferramenta tecnológica (“aplicativo”) que possibilita a comunicação entre o motorista autônomo e o usuário ou consumidor. Aliás, os “aplicativos” que conectam usuários a motoristas de táxi já causavam alvoroço desde o início do ano passado, quando taxistas deixavam de atender chamadas vindas da cooperativa, caso viesse antes alguma chamada pelo aplicativo.

Desse modo, não seria viável afirmar que, segundo o ordenamento jurídico vigente, a atividade prestada pela Uuber seria ilegal porque exclusiva do Estado ou de determinada categoria.

Mas podemos prosseguir, afinal, notícias recentes veiculam a iniciativa legislativa de vedar a atividade ofertada pela Uber, tal como ocorreu no projeto de lei 282/2015, que aguarda sanção ou veto do governador do Distrito Federal. Segundo o projeto, “dentro dos limites do Distrito Federal, a utilização de aplicativos ficará restrita aos veículos com cadastros e autorizações vigentes junto ao Governo do Distrito Federal, não sendo permitido a tais programas a veiculação e disponibilização de veículos e profissionais não autorizados na forma da lei.”

Percebe-se que o projeto não destacou a atividade de “utilização de aplicativos para a prestação do transporte individual e remunerado de passageiros” para configurá-la como serviço público. Trata-se, portanto, de norma que, a pretexto do exercício do poder de polícia em sentido amplo, regula a atividade econômica.

Nesse cenário, resta examinar se a restrição imposta pelo projeto de lei passa pelo crivo da razoabilidade e, para isso, está em mira saber se foi ou não inviabilizado o exercício da atividade econômica, a ferir o princípio da livre iniciativa e normas correlatas.

Para tanto, não é preciso ir muito longe, pois a ferramenta ofertada pela Uber tem o propósito de conectar passageiro com motorista autônomo, facilitando o acesso a determinado serviço contratado segundo as normas de direito privado. Contudo, o projeto em apreço, ao vincular o “aplicativo” apenas a veículos cadastrados e devidamente autorizados segundo a legislação vigente, esvazia, por completo, a atividade, inviabilizando seu núcleo de existência. Em outras palavras, a pretexto de regulamentar a atividade econômica, fulminou-se o modelo de negócio.

Não se ignora o argumento sustentado pelos taxistas no sentido de que haveria concorrência desleal, todavia, é preciso avaliar se a vedação à determinada atividade econômica é o único e mais razoável caminho, até porque, a concorrência é realidade inclusive entre prestadores de serviços públicos, basta lembrar o setor de telefonia. O serviço de taxista, por outro lado, tal como regulado, atrai garantias inexistentes no serviço ofertado pela Uber, como pontos de táxi nas vias públicas, oferta livre ao usuário independente do uso de aplicativos ou de cartões de crédito, entre outras.

Dito de outro modo é legítimo o exercício do poder de polícia administrativa por meio do legislador, regulando atividade econômica de modo a compatibilizá-la com o contexto social, econômico e tecnológico vigentes, desde que não a inviabilize, tudo em respeito à livre iniciativa.

Por fim, é bom não esquecer ator importante nessa história, o consumidor. A liberdade de contratar e a de escolher, tão caras no Estado Democrático de Direito, pressupõem o não cerceamento desproporcional da capacidade empreendedora daqueles que investem em alternativas na prestação de serviços. Com essa atenção e sem descuidar da função reguladora da atividade econômica, o Estado cumprirá, legitimamente, seu papel na relação conflituosa entre Uber, taxistas e consumidor. 

Autores

  • Brave

    é sócio do Silveira e Unes Advogados, doutor em Direito Administrativo. coordenador e professor do curso de pós-graduação em Direito Administrativo do IDP. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do DF. Ex-assessor de Ministros do STJ, TSE e STF.

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