Laços jurídicos

Justiça Eleitoral não pode decidir sobre os mesmos fatos da Justiça Comum

Autor

  • Vera Lúcia Feil

    é graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba ex-promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná juíza federal vinculada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região lotada na 6ª Vara Federal de Curitiba mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC-PR juíza do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná no biênio 2014-2016 professora de Direito Constitucional Direito Processual Civil e Administração da Justiça (atuando principalmente nos seguintes temas: Processo Civil Direito Aduaneiro Direito e Tecnologia e administração da justiça) tutora em EAD de cursos de gestão do Judiciário palestrante e autora de livros e artigos jurídicos.

5 de julho de 2015, 7h30

O artigo 1º, inc. I, alínea “l”, da Lei Complementar 64/90, alterada pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), preconiza que são inelegíveis para qualquer cargo: "os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena". 

Desse modo, condenação nesse sentido é causa de inelegibilidade, competindo à Justiça Eleitoral verificar se a decisão condenatória na Ação de Improbidade Administrativa: a) transitou em julgado ou foi proferida por órgão judicial colegiado; b) decorreu de ato doloso; c) condenou o responsável pela conduta de lesão ao patrimônio público (dano ao erário) e enriquecimento ilícito (Lei 8.429/92, arts. 10 e 9º, respectivamente).

A aplicação dos dois primeiros requisitos não gerou maiores discussões na doutrina e jurisprudência, mas quanto ao terceiro requisito surgiu  uma polêmica, que foi resolvida pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. Aquela Corte pacificou o entendimento de que, para a incidência dessa causa de inelegibilidade, é necessário que a condenação pela prática de ato doloso de improbidade administrativa implique, cumulativamente, lesão ao patrimônio público e o enriquecimento ilícito (TSE. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral 7154. Relator Min. Henrique Neves da Silva. DJE, Tomo 068. Data 12/04/2013. Página 59-60).

Entretanto, no momento do reconhecimento da aludida causa de inelegibilidade a Justiça Eleitoral tem ampliado a condenação, quando não há a cumulatividade descrita no dispositivo da sentença ou do acórdão (título judicial).

A título de exemplo citamos trecho do acórdão do TSE no Recurso Ordinário 380-23, de Relatoria do Min. João Otávio de Noronha, publicado em sessão do dia 12/09/2014: "Deve-se indeferir o registro de candidatura se, a partir da análise das condenações, for possível constatar que a Justiça Comum reconheceu a presença cumulativa de prejuízo ao erário e de enriquecimento ilícito decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, ainda que não conste expressamente na parte dispositiva da decisão condenatória"  (Grifamos).

Todavia, a condenação oriunda da Justiça Comum, proferida em Ação de Improbidade Administrativa, deve ser interpretada de acordo com as regras constitucionais e legais pertinentes, as quais serão analisadas a seguir.

A primeira das regras está relacionada aos tipos previstas na Lei 8.429/92, que regulamentou o § 4º do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Prevê essa Lei três ordens de atos de improbidade: a) os que importam em enriquecimento ilícito do agente (art. 9º); b) os que causam lesão ao patrimônio público/dano ao erário (art. 10) e c) os que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11). A cada uma das espécies foram atribuídas penalidades/sanções próprias, conforme seu artigo 12.

As sanções no direito administrativo estão adstritas aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais (OSÓRIO, Fábio Medina Osório. Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000. e STJ. REsp 879360. DJU 11/09/2008). As condutas e penalidades da Lei 8.429/92 são prescrições dotadas de tipicidade semelhante ao princípio da tipicidade do direito penal (DI PRIETO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24ª ed.São Paulo: Atlas, 2010). Assim, é necessário que o título judicial oriundo da Justiça Comum condene o infrator nos tipos dos artigos 9º e 10 da Lei 8.429/12, e aplique a respectiva sanção, observando a legalidade e a tipicidade.

A segunda regra diz respeito ao tópico da sentença/acórdão em que deve constar a condenação nos tipos e a aplicação das sanções, ou seja, se basta constar na fundamentação ou precisa, necessariamente, constar no dispositivo da decisão judicial.

Entendemos que os princípios da legalidade e da tipicidade somente serão cumpridos se no dispositivo constar expressamente os tipos legais violados e as sanções respectivas, pois, tratando-se de análise de título oriundo judicial oriundo da Justiça Comum (com ou sem trânsito em julgado), em ação de natureza cível, para anotação dos seus efeitos no que tange à causa de inelegibilidade, deve-se buscar as regras no Código de Processo Civil.

O art. 469, inciso I,  do CPC, prescreve que não fazem coisa julgada: "os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença". Assim, a contrario sensu, somente faz coisa julgada material a tipificação da conduta e aplicação da respectiva sanção/penalidade que estejam descritas no dispositivo do título judicial (STJ. REsp 1298342/MG. Rel. Min. Sidnei Benetti. DJe 27/06/2014).

Nesse aspecto é importante frisar que a previsão do  artigo 1º, I, alínea “l”, da Lei 64/90, pressupõe a condenação por outro juízo/tribunal para que incida a causa de inelegibilidade, e não a condenação pela Justiça Eleitoral, pois menciona: "os que forem condenados (…) por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito (…)".  (Grifamos).

Portanto, o pressuposto para a consideração da causa de inelegibilidade é que tenha havido condenação pela Justiça Comum, pois a Justiça competente para condenar por ato de improbidade administrativa não é a Justiça Eleitoral, sob pena de violar os limites objetivos da lide (CPC, art. 468 – quando ainda não transitado em julgado o título judicial) ou da coisa julgada (CPC, arts. 467 e 469), e usurpar a competência do órgão judiciário comum. Além disso, se não houve condenação no dispositivo do título judicial a Justiça Eleitoral estaria processando e julgando novamente pelos mesmos fatos, o que é vedado, inclusive, pelo artigo 474 do CPC, que trata da eficácia preclusiva da coisa julgada.

Dessa forma, é incabível que a Justiça Eleitoral faça um novo exame daquela causa para ampliar a condenação, interpretando a fundamentação do acórdão, dissociada do dispositivo, julgamento novamente os fatos e valorando as provas, com o objetivo de perquirir e afirmar que o réu na Ação de Improbidade Administrativa também praticou conduta da Lei 8.429/92 que não consta do dispositivo, a fim de reconhecer a causa de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, alínea “l”, da Lei Complementar  64/90.

Considerando tais questões, surge a terceira regra, relacionada a princípios constitucionais, porquanto não sendo observado o dispositivo do título judicial a Justiça Eleitoral viola os princípios da legalidade e da tipicidade (CF, art. 5º, II), do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV) e do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). Em suma: condena novamente com base nos mesmos fatos.

Nesse contexto, com o devido respeito, entendemos que a decisão do TSE no Recurso Ordinário nº 380-23 não observou tais princípios, e deveria ser coerente com o que foi decidido no Recurso Especial Eleitoral 154144 (Relatora Min. Lucia Lóssio. DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 168. Data 03/09/2013. Página 80), pois entendeu-se na ocasião que: "Não cabe à Justiça Eleitoral proceder a novo enquadramento dos fatos e provas veiculados na ação de improbidade para concluir pela presença de dano ao erário e enriquecimento ilícito, sendo necessária a observância dos termos em que realizada a tipificação legal pelo órgão competente para o julgamento da referida ação".

Também não é coerente com a conclusão tecida no Recurso Especial Eleitoral 20533 (Relator Min. José Antonio Dias Toffoli. DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 184. Data 25/09/2013. Página 67), segundo a qual, tratando-se da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, na alínea “g”, da LC 64/90, existindo uma análise exauriente pela Justiça Comum acerca das irregularidades apontadas e da conduta pelo juízo competente, não se pode mais fundamentar a inelegibilidade em uma análise superficial e em tese a ser realizada pela Justiça Eleitoral.

Portanto, considerando os princípios supracitados e o disposto nos artigos 467, 468 e 469, 474, do CPC, a Justiça Eleitoral não pode decidir novamente sobre os mesmos fatos que foram apurados e julgados na Justiça Comum, valorar a prova e incluir uma condenação não contemplada no título judicial oriundo do juízo/tribunal competente.

Cumpre frisar que, se os atos praticados também implicam outra conduta não prevista no dispositivo do título judicial, deveria o autor da Ação de Improbidade Administrativa ter se atentado para isso: ter requerido a condenação na petição inicial ou, se assim agiu e não foi apreciado pelo  órgão competente, ter embargado de declaração. O que não pode é a Justiça Eleitoral, incompetente para tanto, processar e julgar novamente, ampliando os termos da condenação oriunda da Justiça Comum, para fins de reconhecer a causa de inelegibilidade referida.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!