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Vera Ponciano: Justiça Eleitoral não pode alterar decisão da Comum

5 de julho de 2015, 7h30

Por Vera Lúcia Feil

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O artigo 1º, inc. I, alínea “l”, da Lei Complementar 64/90, alterada pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), preconiza que são inelegíveis para qualquer cargo: "os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena". 

Desse modo, condenação nesse sentido é causa de inelegibilidade, competindo à Justiça Eleitoral verificar se a decisão condenatória na Ação de Improbidade Administrativa: a) transitou em julgado ou foi proferida por órgão judicial colegiado; b) decorreu de ato doloso; c) condenou o responsável pela conduta de lesão ao patrimônio público (dano ao erário) e enriquecimento ilícito (Lei 8.429/92, arts. 10 e 9º, respectivamente).

A aplicação dos dois primeiros requisitos não gerou maiores discussões na doutrina e jurisprudência, mas quanto ao terceiro requisito surgiu  uma polêmica, que foi resolvida pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. Aquela Corte pacificou o entendimento de que, para a incidência dessa causa de inelegibilidade, é necessário que a condenação pela prática de ato doloso de improbidade administrativa implique, cumulativamente, lesão ao patrimônio público e o enriquecimento ilícito (TSE. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral 7154. Relator Min. Henrique Neves da Silva. DJE, Tomo 068. Data 12/04/2013. Página 59-60).

Entretanto, no momento do reconhecimento da aludida causa de inelegibilidade a Justiça Eleitoral tem ampliado a condenação, quando não há a cumulatividade descrita no dispositivo da sentença ou do acórdão (título judicial).

A título de exemplo citamos trecho do acórdão do TSE no Recurso Ordinário 380-23, de Relatoria do Min. João Otávio de Noronha, publicado em sessão do dia 12/09/2014: "Deve-se indeferir o registro de candidatura se, a partir da análise das condenações, for possível constatar que a Justiça Comum reconheceu a presença cumulativa de prejuízo ao erário e de enriquecimento ilícito decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, ainda que não conste expressamente na parte dispositiva da decisão condenatória"  (Grifamos).

Todavia, a condenação oriunda da Justiça Comum, proferida em Ação de Improbidade Administrativa, deve ser interpretada de acordo com as regras constitucionais e legais pertinentes, as quais serão analisadas a seguir.

A primeira das regras está relacionada aos tipos previstas na Lei 8.429/92, que regulamentou o § 4º do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Prevê essa Lei três ordens de atos de improbidade: a) os que importam em enriquecimento ilícito do agente (art. 9º); b) os que causam lesão ao patrimônio público/dano ao erário (art. 10) e c) os que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11). A cada uma das espécies foram atribuídas penalidades/sanções próprias, conforme seu artigo 12.

As sanções no direito administrativo estão adstritas aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais (OSÓRIO, Fábio Medina Osório. Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000. e STJ. REsp 879360. DJU 11/09/2008). As condutas e penalidades da Lei 8.429/92 são prescrições dotadas de tipicidade semelhante ao princípio da tipicidade do direito penal (DI PRIETO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24ª ed.São Paulo: Atlas, 2010). Assim, é necessário que o título judicial oriundo da Justiça Comum condene o infrator nos tipos dos artigos 9º e 10 da Lei 8.429/12, e aplique a respectiva sanção, observando a legalidade e a tipicidade.

A segunda regra diz respeito ao tópico da sentença/acórdão em que deve constar a condenação nos tipos e a aplicação das sanções, ou seja, se basta constar na fundamentação ou precisa, necessariamente, constar no dispositivo da decisão judicial.

Entendemos que os princípios da legalidade e da tipicidade somente serão cumpridos se no dispositivo constar expressamente os tipos legais violados e as sanções respectivas, pois, tratando-se de análise de título oriundo judicial oriundo da Justiça Comum (com ou sem trânsito em julgado), em ação de natureza cível, para anotação dos seus efeitos no que tange à causa de inelegibilidade, deve-se buscar as regras no Código de Processo Civil.

O art. 469, inciso I,  do CPC, prescreve que não fazem coisa julgada: "os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença". Assim, a contrario sensu, somente faz coisa julgada material a tipificação da conduta e aplicação da respectiva sanção/penalidade que estejam descritas no dispositivo do título judicial (STJ. REsp 1298342/MG. Rel. Min. Sidnei Benetti. DJe 27/06/2014).

Nesse aspecto é importante frisar que a previsão do  artigo 1º, I, alínea “l”, da Lei 64/90, pressupõe a condenação por outro juízo/tribunal para que incida a causa de inelegibilidade, e não a condenação pela Justiça Eleitoral, pois menciona: "os que forem condenados (…) por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito (…)".  (Grifamos).

Portanto, o pressuposto para a consideração da causa de inelegibilidade é que tenha havido condenação pela Justiça Comum, pois a Justiça competente para condenar por ato de improbidade administrativa não é a Justiça Eleitoral, sob pena de violar os limites objetivos da lide (CPC, art. 468 – quando ainda não transitado em julgado o título judicial) ou da coisa julgada (CPC, arts. 467 e 469), e usurpar a competência do órgão judiciário comum. Além disso, se não houve condenação no dispositivo do título judicial a Justiça Eleitoral estaria processando e julgando novamente pelos mesmos fatos, o que é vedado, inclusive, pelo artigo 474 do CPC, que trata da eficácia preclusiva da coisa julgada.

Dessa forma, é incabível que a Justiça Eleitoral faça um novo exame daquela causa para ampliar a condenação, interpretando a fundamentação do acórdão, dissociada do dispositivo, julgamento novamente os fatos e valorando as provas, com o objetivo de perquirir e afirmar que o réu na Ação de Improbidade Administrativa também praticou conduta da Lei 8.429/92 que não consta do dispositivo, a fim de reconhecer a causa de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, alínea “l”, da Lei Complementar  64/90.

Considerando tais questões, surge a terceira regra, relacionada a princípios constitucionais, porquanto não sendo observado o dispositivo do título judicial a Justiça Eleitoral viola os princípios da legalidade e da tipicidade (CF, art. 5º, II), do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV) e do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). Em suma: condena novamente com base nos mesmos fatos.

Nesse contexto, com o devido respeito, entendemos que a decisão do TSE no Recurso Ordinário nº 380-23 não observou tais princípios, e deveria ser coerente com o que foi decidido no Recurso Especial Eleitoral 154144 (Relatora Min. Lucia Lóssio. DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 168. Data 03/09/2013. Página 80), pois entendeu-se na ocasião que: "Não cabe à Justiça Eleitoral proceder a novo enquadramento dos fatos e provas veiculados na ação de improbidade para concluir pela presença de dano ao erário e enriquecimento ilícito, sendo necessária a observância dos termos em que realizada a tipificação legal pelo órgão competente para o julgamento da referida ação".

Também não é coerente com a conclusão tecida no Recurso Especial Eleitoral 20533 (Relator Min. José Antonio Dias Toffoli. DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 184. Data 25/09/2013. Página 67), segundo a qual, tratando-se da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, na alínea “g”, da LC 64/90, existindo uma análise exauriente pela Justiça Comum acerca das irregularidades apontadas e da conduta pelo juízo competente, não se pode mais fundamentar a inelegibilidade em uma análise superficial e em tese a ser realizada pela Justiça Eleitoral.

Portanto, considerando os princípios supracitados e o disposto nos artigos 467, 468 e 469, 474, do CPC, a Justiça Eleitoral não pode decidir novamente sobre os mesmos fatos que foram apurados e julgados na Justiça Comum, valorar a prova e incluir uma condenação não contemplada no título judicial oriundo do juízo/tribunal competente.

Cumpre frisar que, se os atos praticados também implicam outra conduta não prevista no dispositivo do título judicial, deveria o autor da Ação de Improbidade Administrativa ter se atentado para isso: ter requerido a condenação na petição inicial ou, se assim agiu e não foi apreciado pelo  órgão competente, ter embargado de declaração. O que não pode é a Justiça Eleitoral, incompetente para tanto, processar e julgar novamente, ampliando os termos da condenação oriunda da Justiça Comum, para fins de reconhecer a causa de inelegibilidade referida.