Ideias do Milênio

Maior adversário da democracia hoje, e do Estado de Direito, é a violência

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3 de julho de 2015, 15h27

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Yves Leterme [Reprodução]Entrevista concedida pelo diretor do IDEA e ex-primeiro-ministro da Bélgica, Yves Leterme, ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio — um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

O voto livre é a mais poderosa arma da democracia e a eleição limpa e transparente pode ser definida como o grande momento de um processo que mais do que qualquer outro já experimentado legitima a escolha de governantes pelos cidadãos. Mas nem a democracia é ainda um consenso planetário e em pleno século XXI, junto com os processos eleitorais democráticos, convivemos ainda com regimes absolutistas, ditaduras totalitárias e sistemas de partido único. No entanto, para muitos estudiosos não é a ideologia a grande inimiga da democracia hoje, é a violência em suas mais diversas formas. E para garantir eleições que reflitam a vontade popular, é preciso antes de tudo ter paz e reforçar a atuação de autoridades locais, das instâncias regionais, governos nacionais e organizações multilaterais. É aí que entra o IDEA, Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral. Essa organização intergovernamental com sede na Suécia atua hoje em quase 30 países e logo terá o Brasil entre seus integrantes. Por meio de acordos com as autoridades e a sociedade civil, desenvolve um trabalho complementar no planejamento e na realização de eleições, que lhe valeu inclusive um posto de observador nas Nações Unidas. Diretor geral da organização, o ex-primeiro-ministro da Bélgica Yves Leterme esteve em Brasília para um congresso internacional sobre financiamento eleitoral e democracia, promovido pelo Tribunal Superior Eleitoral, e conversou com o Milênio na sede do TSE.

Marcelo Lins — O que o senhor aprendeu ao longo da sua carreira política, que pode utilizar agora. E o que descobriu agora que poderia ter alterado de alguma forma a sua vida política?
Yves Leterme — O fato de ter sido candidato em 20 eleições mais ou menos, de ter feito campanhas eleitorais, dirigido campanhas para o meu partido também, dá uma visão prática da coisa. Na Bélgica tivemos crises envolvendo o financiamento político, escândalos muito graves, principalmente nos anos de 1990. Aí chegamos a um consenso em relação a uma legislação muito dura, que limita os gastos. Tanto no que diz respeito ao volume quanto aos tipos de instrumentos que podem ser utilizados na campanha. Ao mesmo tempo, limitamos não apenas os gastos, mas também as possibilidades de se obter recursos. Acho que é uma experiência muito útil para este momento, em que devemos, em nome da organização colocar à disposição dos países, de todos os países que trabalham com isso, as melhores práticas. Porque nem a Bélgica e nem a Europa têm o monopólio do que é feito de melhor a esse respeito, e acredito que é importante haver uma plataforma internacional, como IDEA, onde os Estados membros têm uma troca das melhores práticas, como é o caso deste evento em Brasília. A maioria das grandes democracias do mundo tem problemas com a interação entre o dinheiro e a política, e acho que precisamos chegar a uma nova geração de legislação, e sobretudo de aplicação das leis.

Marcelo Lins — O senhor falava de boas práticas, já descobriu, nesse tempo em que está à frente do IDEA, práticas capazes de tirar um pouco do peso e das desconfianças que cercam o financiamento privado de campanhas eleitorais, que são frequentemente vistas como processo de endividamento dos candidatos que, mais adiante, deverão saldar essas dívidas com aqueles que os financiaram?
Yves Leterme — O que buscamos é chegar à integridade dos processos decisórios democráticos. Um jeito meio complicado de dizer que a tomada de decisões políticas deve ser feita em função do interesse geral, baseada em um programa, para atender ao interesse geral da população. Tudo o que tenta colocar em risco, ou coloca em risco essa pureza da tomada de decisões políticas precisa ser combatido. Dito isto, há uma gama enorme de instrumentos possíveis para lidar com isso. Acredito que para haver uma legislação, um sistema de controle, de gestão do problema do dinheiro na política, há cinco ou seis elementos a levar em conta: primeiro é preciso haver uma legislação, é necessária uma regulação e há muitas democracias mundo afora que não têm isso. Precisamos então de uma legislação, clara, sem equívocos, a mais clara possível, acessível a todos e que possa ser compreendida por todos. Em segundo lugar acredito ser preciso impor um limite nos recursos, nas possibilidades de financiamento, e, sobretudo do lado do setor privado, é preciso ser transparente. E acredito também, sobretudo no que diz respeito ao financiamento pela indústria, pelas empresas, pelos interesses privados, é preciso um certo limite, aí também com transparência. E no nível das despesas, terceiro elemento, aí também são necessários limites, tetos. É preciso também limitar os tipos de instrumentos que podem ser utilizados numa campanha eleitoral. Em quarto lugar, é muito importante não apenas ter uma legislação, não apenas limitar as fontes de financiamento e os gastos, mas também é preciso haver um sistema de controle. E é um sistema de controle que também deve ser compreendido pela população. Os ingleses dizem: “Justice has to be done.” As pessoas precisam ver a legislação sendo aplicada pra manter a confiança no sistema. Quinto elemento, é preciso também haver uma abordagem holística, o que quer dizer que não podemos ver o financiamento dos partidos políticos como algo isolado. Não, é uma prática que acontece numa sociedade, onde coisas boas têm lugar, coisas ruins também. Por exemplo aqui na América Latina e também nos países bálticos, fizemos recentemente, com o IDEA, pesquisas sobre a relação entre o financiamento dos partidos políticos e práticas ilícitas ou ilegais, como o tráfico de drogas, o tráfico de pessoas. Ou seja, é uma abordagem holística, tentando ver os partidos políticos em seu ambiente, e isso é muito importante. Sexto princípio, é preciso estar aberto a uma avaliação. É necessário que depois de cada eleição, depois de algum tempo, seja avaliado o que aconteceu. Porque há novas tecnologias sendo desenvolvidas, há novas formas de se fazer uma campanha e é preciso ver se a legislação e sua implementação está sempre atualizada. Último elemento, e aqui me coloco um pouco na pele do candidato individual, é preciso que essa legislação, que o controle, que a aplicação das leis sejam facilmente manejadas pelo candidato. A eficácia de uma legislação que limite as despesas se dá em função da facilidade dos candidatos de preencher os formulários, fazer declarações e, na verdade, de ter o controle sobre o que está sendo feito.

Marcelo Lins — Temos atualmente no país um intenso debate exatamente sobre financiamento da política, das campanhas nas eleições. O senhor já chegou a alguma conclusão a respeito? Porque os defensores do financiamento exclusivamente público dizem que no final isso sai mais barato para a sociedade. Os que defendem a participação do capital privado nesse financiamento, dizem exatamente o contrário: o contribuinte já pagou demais e não deve arcar com gastos de campanhas eleitorais. Pela sua experiência pessoal, o senhor tem uma conclusão sobre o que é mais caro ou mais barato para a sociedade?
Yves Leterme — Nossa vocação, enquanto organização intergovernamental não é a de encontrar o sistema ideal e de impô-lo. Não fazemos nada obrigatório. Não vamos dizer aos Estados membros o que eles devem fazer. Acredito, pessoalmente, em um sistema onde haja os dois elementos, parte do financiamento, com a possibilidade de financiamento privado, na minha opinião, limitada às pessoas físicas. Se houver empresas, pessoas jurídicas, que isso seja claramente limitado e definido. E de outra parte o financiamento público, mas condicionado. Acredito que a maior parte das democracias evolui para um sistema assim. Mas, mais uma vez não estamos aqui para ensinar o que deve ser feito. Isso fica para os Estados membros, os governos, o Brasil também, de forma soberana, decidirem, qual o melhor sistema para o país.

Marcelo Lins — Falando de bons sistemas para este país, temos aqui uma fórmula bastante específica, que é a de uma Justiça Eleitoral 100% dedicada a esse tema. Vocês estão presentes na Ásia, na África, na Europa, na América Latina, já se depararam com algo parecido com isso, uma justiça unicamente eleitoral, que funciona mesmo fora dos períodos eleitorais. O que o senhor pensa dessa instituição?
Yves Leterme — Pessoalmente, é algo bastante novo para mim. Falo francamente, só nos últimos quatro ou cinco anos conheci o fenômeno. No meu país as questões eleitorais são julgadas por tribunais e, como último recurso, é o Parlamento quem julga a elegibilidade e os problemas relacionados aos processos eleitorais. Mas acredito que o seu sistema é melhor. Nos tornamos sociedades bastante complexas, inclusive nos sistemas eleitorais, e isso demanda certo profissionalismo, pois chegamos a um grau de complexidade que requer uma certa especialização, até mesmo da competência jurídica. Por isso tenho admiração pelo Brasil e outros países que souberam, nas últimas décadas, construir sistemas de Justiça Eleitoral, especializada e independente. Acho que as democracias europeias poderiam aprender algo a partir dessas boas práticas.

Marcelo Lins — O senhor já disse algumas vezes que vocês não procuram uma fórmula exata que possa ser aplicada em todos os países onde vocês atuam. Ao mesmo tempo, já li algumas críticas em relação às atividades de IDEA, que teria também um peso ideológico no trabalho. É correto dizer isso, há um peso ideológico? Ou existem práticas válidas para qualquer país. Não importa se há um governo mais à esquerda ou mais à direita, dá para ter práticas eleitorais transparentes que, essas sim, podem ser aplicadas em todo lugar?
Yves Leterme — Nossa ideologia é a ideologia da democracia. Para nós a democracia é um sistema onde cidadãos de uma nação, de uma comunidade, de um município, controlam as atividades daqueles que utilizam o poder, que executam o poder. O segundo elemento é que ao exercer esse controle, todos os cidadãos são iguais. Se é para falar em ideologia, esta é a ideologia de IDEA. Mas, de novo, junto com isso é preciso ver como esses princípios são aplicados. Muda de país para país. Sabe, a Bélgica, são 30 mil km² e 11 milhões de habitantes. Totalmente diferente de um país gigantesco como o Brasil. São enfoques diferentes. O que nos mobiliza neste momento, além dessa definição de democracia muito primária, e além do fato de disponibilizarmos as melhores práticas, sem julgar e sem impor, é o que chamo de “qualidade da democracia”. O fato da democracia ser mais do que um processo eleitoral, ser também uma participação inclusiva, onde todos, com facilidade, são encorajados a participar de um processo democrático. Não apenas no momento das eleições. A opinião das pessoas também é levada em conta entre uma eleição e outra. Com as atividades dos partidos políticos, dos movimentos sociais e onde a sociedade civil tem a possibilidade de interagir com as lideranças políticas. E a qualidade desse processo é muito importante também, então volto ao tema. Está claro que viabilizar o bom funcionamento, a qualidade de uma interação entre a população e as lideranças políticas através do dinheiro, de gente que é rica, empresas poderosas, e que podem nesse momento influenciar a agenda política, é uma evolução negativa. Você sabe, há uma grande democracia neste continente, os Estados Unidos, onde vemos claramente que o que chamam de “agenda setting”, a forma como são definidas as prioridades políticas, do debate político, está claro que isso se dá um pouco em função de certos interesses financeiros. Há potências financeiras que conseguem, com maior facilidade, atrair a atenção, conseguir ações do governo. E isso não é bom. É preciso, para a qualidade da democracia, essa igualdade. É preciso lutar contra um poder excessivo do dinheiro.

Marcelo Lins — O senhor acredita de verdade que é possível, com o trabalho do IDEA chegar a um equilíbrio mais sadio nas relações entre o que chamamos aqui de poder econômico, o poder do dinheiro de influenciar a vida política e os interesses da sociedade?
Yves Leterme — Certamente. E é necessário. Sabe, se me permite aproveitar um elemento do desenvolvimento socioeconômico deste continente, vocês tiveram um crescimento econômico muito grande. E ficamos todos, no mundo, para além desse continente, impressionados com o sucesso do Brasil, do Chile e de outros países. Vocês chegaram a um nível de desenvolvimento econômico realmente notável. O próximo estágio deve ser um estágio mais inclusivo, onde haja mais igualdade, onde a coesão social ganha importância. Onde a redistribuição do bem-estar, da riqueza do país esteja mais no centro da ação política. Para permitir isso, é preciso incluir a população no processo decisório. Todos precisam se sentir incluídos, como parte da sociedade e precisam ter confiança na aplicação das regras fundamentais. Devem ainda ter, não apenas a impressão, mas a certeza de que seu ponto de vista é levado em conta, por meio do processo eleitoral, por meio de um funcionamento de qualidade da democracia.

Marcelo Lins — E para esse bom funcionamento da democracia, não apenas nos países onde ela já existe, onde está mais forte a cada dia, mas também nos países onde ela começa a crescer agora, qual o papel e a importância do trabalho que vocês têm com a ONU? Vocês são observadores na ONU, têm uma parceria com a organização. Como é que isso funciona, num momento em que as instituições multilaterais são muito questionadas, postas em dúvida até algumas vezes?
Yves Leterme — Somos especialistas em democracia, governança, processos eleitorais, processos que levem a uma constituição. O ponto número um da ONU agora é a fixação das novas Metas do Milênio, novos objetivos de desenvolvimento sustentável. E nesse debate, nossa intervenção é no sentido de defender o que em inglês é chamado de “accountability”, que é o fato dos líderes políticos, todos os que exercem o poder, precisam prestar contas à população. Isso é muito importante. Em muitos países, isso ainda não foi desenvolvido, e nós acreditamos, estamos certos, de que quando chegamos a um desenvolvimento em que aqueles que exercem o poder prestam contas sobre a forma como utilizaram o poder para, por exemplo, garantir serviços públicos, organizar a educação, o abastecimento de água. Se temos isso, esse elemento da prestação de contas à população, temos mais garantias de que a política será de uma qualidade melhor, com uma boa implementação. Então esse elemento, dentro do sistema ONU, promover esse elemento, para que quem exerça o poder preste contas sobre a forma como são atingidos os objetivos, por exemplo, as Metas do Milênio, é um elemento muito forte, sobre o qual trabalhamos muito, no momento em Nova York, por conta da Assembleia geral de setembro, quando serão estabelecidas as novas Metas do Milênio, no que diz respeito à redução da pobreza, a gestão da política climática, etc…

Marcelo Lins — Vemos que uma organização como IDEA tem um grande interesse em construir uma fórmula, não mágica, mas com alguns pontos que poderiam ser respeitados ou pelo menos valorizados nos mais diferentes países do mundo. Gostaria de saber como a sua instituição é recebida em países tão diferentes, da África ou da Ásia, onde a democracia ainda não é um dado definitivo neste momento. E quais são os planos para o futuro, vocês vão crescer, estar presentes em mais países?
Yves Leterme — Nós estamos crescendo e estamos felizes com o fato do Brasil se juntar aos Estados membros de IDEA, é realmente uma boa notícia. O que queremos é progredir, ampliar nosso conhecimento e disponibilizar ao máximo esse conhecimento, mas sempre deixando muito claro. Quando chegamos em um país, o que fazemos é trabalhar com as autoridades locais, com os responsáveis da sociedade civil, para colocar à disposição o que for possível, para ajudá-los a, de forma local, baseado na prática e nas escolhas políticas locais, colocar em prática um bom sistema democrático. Hoje trabalhamos em 26 países, estamos presentes em 26 países da Ásia, da África e da América Latina. E todas as vezes, nesses países, chegamos com o nosso conhecimento, com o conhecimento, as melhores práticas utilizadas nos países membros, nas democracias consolidadas, e colocamos à disposição das pessoas que organizam a democracia, ou que estão elaborando uma nova constituição, ou que estão reorganizando seu país. Disponibilizamos esse conhecimento. Para dar dois ou três exemplos, acabamos de iniciar um grande programa em Myanmar, para estabelecer um processo eleitoral que dê chances a todas as forças democráticas. Acabamos, esta semana, de decidir pelo começo de iniciativas na Ucrânia, onde depois do cessar-fogo será necessária uma nova constituição. Trazemos a nossa experiência, aos processos constitucionais, como escrever uma constituição, como ter uma certa adesão da população ao processo de redação dessa constituição, como fizemos na Tunísia, por exemplo, depois da Primavera Árabe. Ou seja, nesses países distintos o que  fazemos, é sempre a partir de um acordo com a sociedade civil, com os políticos locais, para chegar à disposição as melhores práticas e o conhecimento que é compartilhado por todos os países membros junto à instituição.

Marcelo Lins — Quais os principais obstáculos nesse processo de fazer aumentar a transparência e de fazer da democracia um valor realmente absoluto e mundial. E também, quais são as experiências e os exemplos que alimentam as suas esperanças de atingir esses objetivos tão grandes?
Yves Leterme — Acredito que o maior adversário da democracia hoje, e do Estado de Direito, é a violência. Falemos dos países da Primavera Árabe, 20, 25 países, atingidos pela violência, pelo extremismo fundamentalista, isso é realmente um obstáculo a ser superado e não apenas pela democracia. Precisamos de uma situação de paz para que se consiga instaurar um processo de democracia inclusiva. Mas há também sinais de esperança. Eu citei a África, o norte da África, onde temos dramas profundos. Mas felizmente temos o bom exemplo da Tunísia. Mas tomemos, por exemplo, Burkina Faso, onde em dado momento a liderança do país resolveu confrontar a constituição, para se manter no poder, contra as regras fundamentais escritas na constituição. Vimos a reação da população, e esses são sinais de esperança. Em Burkina Faso, ou quando há uma transição pacífica, como por exemplo na Nigéria. Como no Senegal, onde já foi diferente. Mas vemos que as pessoas aceitam o processo democrático e que os presidentes que saem aceitam suas derrotas e facilitam a sucessão. Esses são sinais de esperança. Acredito então que a democracia avança, mas este é um trabalho de todos os dias, para garantir um funcionamento de qualidade. E acho uma ótima notícia para a comunidade internacional, que o Brasil tenha decidido unir forças e trabalhar para este progresso.

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