Precarização das relações

Proposta de lei para regulamentar terceirização é inconstitucional

Autor

  • Marcelo Vieira de Campos

    é advogado. Foi assessor da subchefia jurídica da Presidência da República secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e secretário de Assuntos Jurídicos de Osasco (SP).

3 de julho de 2015, 6h34

A iniciativa de regulamentação do fenômeno da terceirização, definitivamente instalado nos meios de produção mundial, abrangendo mais de 12 milhões de trabalhadores no país, é bem-vinda, ante a reconhecida insuficiência de marco legal sobre o tema. A preocupação primeira, todavia, deve ser a estruturação de modelo legal que, sob pena de comprometimento de sua validade constitucional, aplaque a precarização das relações do trabalho terceirizadas.

Não por acaso, que uma comissão de juristas formada por magistrados, advogados, membros do Ministério Público do Trabalho e representantes das associações ligadas a Justiça do Trabalho, discutiu e ofertou em 2011, opções ao texto do projeto de lei aprovado recentemente na Câmara Federal, infelizmente não consideradas.

Comumente, aponta-se como escopo da terceirização a transferência de atividades acessórias ou secundárias a terceiros com a concentração no negócio principal; a especialização da atividade e, consequentemente, a melhor qualidade dos serviços; a redução do custo de produção e o aumento da lucratividade.

A par desses desejáveis objetivos, a prática tem evidenciado, com frequência cada vez mais constrangedora, a ocorrência de efeitos danosos, como o excessivo foco na redução dos custos com a mão de obra; a redução de garantias legais; a exigência de jornadas excessivas, quase sempre superiores aos limites legais; o descuido com o meio ambiente de trabalho; o distanciamento daquele empregado que ‘veste a camisa’ da empresa e que se envolve com sua atividade e busca melhorá-la; a dispersão e falta da representatividade sindical.

Segundo estudo elaborado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os trabalhadores terceirizados, que somam cerca de 12,7 milhões de indivíduos (6,8%) do mercado de trabalho, recebiam, em dezembro de 2013, 24,7% a menos do que os que tinham contratos diretos com as empresas, além de uma jornada semanal de três horas a mais e estavam mais suscetíveis a acidentes de trabalho[1].

Esse estudo, corroborado por vários outros, evidencia que os trabalhadores terceirizados, apesar de terem níveis de escolaridade semelhantes aos empregados diretos, ganham menos, trabalham mais, têm menos direitos e, principalmente, estão muito mais sujeitos a acidentes de trabalho.

A título de exemplo, no setor petroquímico[2], o número de acidentes fatais entre os trabalhadores terceirizados vem aumentando. Nos últimos dez anos cerca de duas centenas de trabalhadores morreram em acidentes de trabalho na Petrobras, sendo que destes mais de 85% eram terceirizados. Isto acontece porque, com frequência, os terceirizados ganham menos, têm jornada maior e não têm a mesma proteção.

O conceito da terceirização das atividades nucleares pela tomadora de serviços, a depender dos parâmetros e objetivos, pode contrariar a legislação laboral, artigos 2º e 3º da CLT, além de violar dispositivos constitucionais.

A Declaração da Filadélfia de 1944, a Declaração referente aos Fins e Objetivos da Organização Internacional do Trabalho, reafirma o primeiro princípio fundamental: “O trabalho não é uma mercadoria”.

Como se sabe, a relação de emprego perfaz-se a partir da coincidência dos conceitos de empregado e empregador, definidos nos artigos 2º e 3º da CLT:

“Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

Os doutrinadores tem entendido como funcionalidade do conceito de empregador aquele ligado à empresa como atividade que realiza o objeto social, admitindo, assalariando e dirigindo a prestação pessoal de serviço.

Por sua vez, o empregado é a pessoa física que presta serviço de forma  pessoal,  com onerosidade, não-eventualidade e subordinação.

Dessa forma, o sistema trabalhista — e a legislação correlata — define que o empregador deve contratar diretamente, ao menos, os empregados que serão responsáveis imediatos pela consecução do empreendimento econômico, ou seja, aqueles alocados na atividade-fim da empresa.

É dizer: não pode haver escolas sem professores, hospitais sem profissionais de saúde, bancos sem bancários, todos empregados do tomador dos serviços.

Além disso, ao contrair os “riscos da atividade econômica” o artigo 2º da CLT determina o risco do negócio não podendo ser repassado a terceiros, impedindo, assim, que a execução da atividade-fim, em outras palavras, seja transferida para a empresa terceirizada ou a seus prepostos.

O projeto de lei sobre a terceirização, não pode, ignorar essa realidade, que decorre da ordem natural das coisas, insuscetível de ser alterada ou criada, pelo legislador, sob pena de inconstitucionalidade por violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Ao violar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, por meio de uma lei civil, que tende a disciplinar as contratações, desnatura todo o arcabouço jurídico do Direito do Trabalho e os princípios constitucionais a ele inerentes.

Por esse comando, aplica-se ao caso o artigo 9º da CLT, que impõe a nulidade de preceitos tendentes a desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação das leis trabalhistas.

A Constituição Federal dispõe, no artigo 7º, inciso XXXII, a “proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 23, vai na mesma esteira, erigindo, expressamente, a ideia contemporânea de salário igual para trabalho igual:

“1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.”

Não é diferente a legislação ordinária nacional, ex vi do artigo 461 da CLT:

“Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.”

“Ficam assegurados ao trabalhador temporário os seguintes direitos:

a) remuneração equivalente à percebida pelos empregados de mesma categoria da empresa tomadora ou cliente calculados à base horária, garantida, em qualquer hipótese, a percepção do salário mínimo regional” (Lei 6.019/1974, artigo 12)

Assim, todo o ordenamento jurídico pátrio, bem como o internacional exige a isonomia de direitos entre os trabalhadores pelo trabalho igual executado.

Há vários pontos obscuros quando o assunto é terceirização.

Ora, mantidas todas as garantias entre empregados da tomadora e da terceirizada, aonde residiria o benefício a tal contratação? Qual vantagem e o incentivo terá a tomadora  quando deve-se observar a isonomia de direitos entre trabalhadores pelo igual trabalho executado?

Diminuição de gastos? Salários distintos? Horário distintos de todos trabalhadores da tomadora?

Nesse contexto, qualquer medida em que reduz a proteção social e favorece a precarização do labor humano, viola os artigos 1º, incisos III e IV, e 170 da Carta Magna, menoscabando a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.

O termo precarização do trabalho tem relação com um conjunto de mudanças econômicas e sociais no mundo do trabalho, geralmente caracterizado pela desqualificação nas relações entre trabalhador e empresa.

Nessa esteira, o disposto no artigo 7º, inciso I, da Constituição da República, onde confere dignidade constitucional à relação de emprego, formada pela incidência dos artigos 2º e 3º da CLT, tem respaldo Constitucional e sua não observância agride a determinação do Constituinte Originário. Assim, qualquer norma que venha a ameaçar tais proteções colidindo com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, deve preocupar-se com sua (in)constitucionalidade[3].


[3]“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PRINCÍPIO DA ISONOMIA SALARIAL. PRINCÍPIO DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO. TERCEIRIZAÇÃO. A contratação terceirizada de trabalhadores não pode, juridicamente, propiciar tratamento discriminatório entre o trabalhador terceirizado e o trabalhador inserido na categoria ou função equivalentes na empresa tomadora de serviços, nos termos dos arts. 7º, XXXII, e 5º, caput e inciso I, da CF.AIRR – 183040-80.2005.5.06.0013 , Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 04/06/2008, 6ª Turma, Data de Publicação: 20/06/2008, grifamos

OJ-SDI1-383 TERCEIRIZAÇÃO. EMPREGADOS DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS E DA TOMADORA. ISONOMIA. ART. 12, “A”, DA LEI Nº 6.019, DE 03.01.1974 – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei nº 6.019, de 03.01.1974.”

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