Passado a Limpo

Em 1923, União e Mato Grosso disputavam posse da Ilha Rasa

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

2 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em 1923 a União e o então estado do Mato Grosso disputavam o domínio de uma ilha, próxima a Corumbá, em interessante problema de ocupação e titularidade territorial, com indícios de conflito federativo. O parecerista chamou o feito à ordem, concluindo que a matéria era de definição legislativa. Não havia dúvida jurídica a ser enfrentada. Ao que consta, não se tratava — necessariamente — de uma zona de fronteira; Rodrigo Octávio, então Consultor-Geral da República, historiou a legislação fundiária brasileira e finalizou observando que o problema era de legística e que o Legislativo deveria fixar a titularidade da área disputada. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1923.

Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Marinha — Com o Aviso nº 415, de 20, de janeiro próximo findo, transmitiu-me Vossa Excelência para dar parecer o processo relativo às questões surgidas a propósito da Ilha Rasa, fronteira à Cidade de Corumbá, em Mato Grosso.

Sendo o domínio sobre essa ilha contestado, pois que o pretende o Estado, que em parte a afetou, por um decreto de 1915, ao rocio daquela cidade, o que este Ministério impugna sob o fundamento de que a ilha pertence à União, é indispensável resolver-se de um modo definitivo a questão em bem da harmonia que deve reinar nas relações da União com os Estados.

Como se evidencia pela inspeção dos mapas da região, notadamente do de Homem de Mello, o mais moderno deles, trata-se, Senhor Ministro, não propriamente de uma ilha formada no leito do Rio Paraguai, mas de uma considerável extensão territorial que é ilha porque de um lado a contorna esse grande rio e pelos outros lados é igualmente contornada por um braço desse rio que se denomina Paraguai-Mirim.

É preciso também ter em mente que essa porção de terra, que, no conceito geográfico, é uma ilha, não está situada em nossa fronteira. Nessa zona a fronteira do Brasil com a Bolívia é uma linha traçada além do Rio Paraguai, que aí corre todo dentro do território brasileiro. Só mais abaixo é que esse Rio entra a construir o limite dos dois países.

Não se pode, pois, estudar este caso tomando-se em consideração a situação jurídica das ilhas que se formam no leito dos rios, e a respeito de cujo domínio ou subordinação jurisdicional me ocupei no parecer de 25 de novembro de 1915, publicado a páginas 395 do tomo VII dos Pareceres do Consultor Geral. Este caso deve ser estudado no ponto de vista da situação dos territórios que constituem a faixa da fronteira do Brasil com os Estados limítrofes.

É essa uma questão que ainda não está resolvida entre nós. Salva a zona a que se refere o art. 3.º da Constituição, destinada à futura capital da União, o território nacional é constituído pela soma dos territórios de cada um dos Estados e do Distrito Federal, aos quais a União outorgou até a propriedade das terras devolutas existentes dentro dos seus respectivos limites, reservando-se apenas (art. 64) a porção de território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.

Ao tempo do Império, quando todo o território dependia diretamente do Governo Central, tendo as antigas províncias sua jurisdição limitada pelas leis constitucionais vigentes, e à Nação pertenciam as terras devolutas, o art. 82 do Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854, expedido em virtude de autorização expressa no art. 1.º da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, fixou uma zona de dez léguas contígua aos limites do Império com países estrangeiros, para, nas terras devolutas nela existentes, se estabelecerem colônias militares e se fazerem concessões gratuitas a colonos brasileiros.

É evidente que tais dispositivos visaram à defesa do país pelo incremento de população e cultura nas fronteiras. E além de que essas leis não se referem a toda essa zona, mas somente às terras públicas existentes dentro dela, não há dispositivo que afete essa zona à defesa das fronteiras; a lei só estatuiu que nessa zona de dez léguas, a) as terras públicas aí existentes pudessem ser cedidas gratuitamente a brasileiros, em vez de serem vendidas, como se estabeleceu como regra para as demais terras públicas, b) se constituíssem colônias militares.

E em tais condições, poder-se-á entender que essa zona de dez léguas ao longo das fronteiras, a que se refere a lei de 1850 e o Regulamento de 1855 seja a que pela Constituição foi reservada no art. 64 como a indispensável para a defesa das fronteiras?

Algumas vozes autorizadas têm assim entendido (A. Milton, A Constituição, do Brasil, 2.ª edição, página 337; Amaro Cavalcanti, Elementos de Finanças, página 110 e J. M. MacDowel, que, defensor eloquente do princípio, escreveu sobre ele uma monografia exaustiva, sob o título — Fronteiras Nacionais, 3.ª edição, Rio de Janeiro, 1922) .

Igualmente reconheceram a sobrevivência da legislação de 1850 o preclaro Juiz Federal no Paraná, Dr. Carvalho de Mendonça, na memorável sentença na causa de Domingos Barthe contra a União Federal, confirmada por seus fundamentos, pelo acórdão, do Supremo Tribunal Federal de 23 de maio de 1908.

O elemento histórico do dispositivo constitucional não me parece, entretanto, que conduza a essa interpretação a despeito da continuidade decretada pelo art. 83 para as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrário aos princípios consagrados na Constituição.

De fato. O Governo brasileiro, promulgando o Projeto de Constituição a ser submetido ao Congresso Constituinte, pelo Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890, aceitou o princípio de que, conservando a União a propriedade das terras devolutas, uma lei distribuísse aos Estados certa porção dessas terras fora da zona da fronteira da República (art. 63).

Posteriormente, em virtude das retificações a esse Projeto trazidas pelo Decreto n.º 914-A, de 23 de outubro de 1890, a expressão fora da zona da fronteira foi substituída por outra que rezava aquém da zona da fronteira.

Esses dispositivos evidentemente mantinham a legislação anterior sobre a propriedade das terras devolutas, e, portanto, a Lei de 1850 e o Regulamento de 1855, mas os princípios deles não foram aceitos pela Constituinte. A Comissão dos 21 propôs que esse artigo fosse substituído por outro que transferiria aos Estados a propriedade das terras devolutas, reservando para a União somente as que existem nas fronteiras dentro de uma zona de cinco léguas.

Logo, porém, em primeira discussão, já essa fórmula foi substituída por outra que, não fixando a extensão da zona, reservava para a União toda a porção de terras devolutas de que precisasse para a defesa das fronteiras, fórmula que na terceira discussão se converteu na mais restrita ainda, pela qual toda a porção de terra que a União precisasse ficou reduzida à porção de território que for indispensável para a defesa da fronteira (art. 64) .

Parece-me evidente da leitura desses textos que se os editados pelo Governo Provisório visavam manter a legislação anterior, os da Constituinte criaram positivamente direito novo e direito novo que ao Congresso ordinário cabia regular pela categórica disposição do art. 35, n.º 15, que lhe deu competência privativa para adotar o regime conveniente à segurança das fronteiras.

Acresce ponderar que o atento exame dos textos da lei de 1850 convence de que ela não pode ser alcançada pelo dispositivo revigorador do art. 83 da Constituição. Essa lei estabelecia o regime das terras públicas e regulava o modo de sua transferência. Ora, desde que as terras públicas passaram para os Estados, caducou inteiramente essa legislação geral a respeito, cabendo a cada Estado regular a matéria de acordo com seu interesse dentro de sua autonomia constitucional.

Nem outra interpretação se pode dar ao caso em face da autorização legislativa constante do Decreto n.º 2.543-A, de 5 de janeiro de 1912, por força da qual o Poder Executivo expediu o Regulamento das Terras Públicas da União, aprovado pelo Decreto n.º 10.105, de 5 de março de 1913.

Motivou esses atos a incorporação ao território nacional, por força da aprovação do Tratado de Petrópolis, do Território do Acre. Em consequência desse acontecimento, viu-se de novo a União proprietária de terras públicas: — as que existiam nesse novo território. Se se entendesse que vigoravam ainda a Lei de 1850 e o Regulamento de 1855, a conclusão seria que a matéria já estava regulada e não teria sido preciso promulgar novo regulamento, erro que as mesmas disposições do Regulamento de 1855 foram reproduzidas.

De tudo se depreende ainda que não tem a menor procedência o argumento em favor dos direitos da União sobre a faixa de 10 léguas ao longo das fronteiras tirado desse novo Regulamento de Terras, de 1913. É certo que nesse novo Regulamento (cuja eficácia foi, aliás, suspensa pelo Decreto n.º 11.485, de 10 de fevereiro de 1915, enquanto não for decretada uma nova lei de terras), se reproduzem as disposições da lei de 1850 sobre a zona de 10 léguas ao longo das fronteiras. Mas tal regulamento apenas se refere às terras públicas da União e essas são apenas as do Território do Acre e não as existentes dentro dos limites dos Estados que não podem ser às terras públicas da União.

Quanto à zona da fronteira indispensável para a defesa nacional, ao Congresso Nacional cabe, nos termos do art. 35, n.º 15, da Constituição, adotar o regime conveniente.

Acorde com esse modo de ver, o Governo da República, pelo órgão do ilustre Presidente que acaba de terminar o tempo de seu mandato, enviou ao Congresso Nacional, em data de 15 de julho de 1922, uma Mensagem ao Congresso em que lhe pediu o uso dessa sua atribuição privativa, isto é, a regulamentação do art. 64 da Constituição, segundo o qual à União cabe a nesga de território indispensável à defesa das fronteiras, constituindo essa mensagem, nos próprios termos de que ela se serve, de sugestão ao Congresso Nacional da necessidade de uma lei que ponha fim ,ao condomínio ora existente entre a União e os Estados nos territórios que separam o Brasil das outras Nações.

Como seguimento a essa Mensagem do Executivo, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados lavrou um interessante e fundamentado Parecer, de que foi relator o ilustre Deputado Senhor Gonçalves Maia, e que concluiu com um projeto de lei por força do qual a área do território, a que se refere o art. 64 da Constituição para a defesa das fronteiras é de 66 quilômetros (10 léguas), que o Governo fará demarcar oportunamente.

Acresce recordar que já anteriormente fora aceito pelo Poder Legislativo e convertido em Resolução um dispositivo no qual se declarava que ficavam reservadas para a União, de conformidade com o art. 64 da Constituição, todas as terras devolutas nas linhas da fronteira do país em uma faixa de 66 quilômetros.

À resolução em que tal dispositivo se continha, porém, opôs veto o egrégio Presidente Prudente de Moraes, em 21 de junho- de 1896, com fundamento, aliás, em outras disposições da Resolução, e esse veto foi mantido em sessão da Câmara dos Deputados de 28 de junho do mesmo ano.

É opinião do Legislativo, pois, que a matéria não está regulamentada e a ele cabe fixar qual seja a zona a que se refere o art. 64 da Constituição, por força de cujo princípio a situação que decorre é a que a referida Mensagem classificou como de condomínio entre a União e os Estados.

E assim sendo, antes que o Poder competente delimitando a faixa da fronteira que cabe à União, discrimine o que pertence à União e o que pertence aos Estados, subsiste esta situação sob cujo império tanto a União como os Estados se devem abster de fazer alienações e concessões, em zona que possa ser considerada de fronteira.

Em face de tais considerações, achando-se o território que constitui a Ilha Rasa em frente da Cidade de Corumbá, dentro de uma zona próxima à fronteira do Brasil com a Bolívia, devem a União e o Estado de Mato Grosso chegar a um entendimento no sentido de aguardarem a solução que ao caso geral julgue acertado dar o Poder Legislativo, sendo de toda a conveniência, por motivos que são óbvios, que o Governo procure obter do Congresso a mais rápida solução desse tão importante assunto.

Submetendo ao elevado critério de Vossa Excelência estas considerações em solução a consulta que recebi, devolvo os papéis a Vossa Excelência a quem tenho a honra de renovar meus protestos de subida estima e mui distinta consideração.

Rodrigo Octavio

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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