Óleo na engrenagem

"Maior trabalho de gabinetes do STF é com casos que o ministro não vai julgar"

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2 de julho de 2015, 7h20

[Esta entrevista foi publicada em duas partes. Clique aqui para ler "O grande papel do Judiciário é a proteção dos direitos fundamentais das minorias"]

Por mais de 30 anos, a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil de número 37769-RJ foi a principal identificação de Luís Roberto Barroso. Em 2013 ela foi cancelada, quando o constitucionalista mais badalado do país passaria a atender como ministro Roberto Barroso, o então mais novo integrante do Supremo Tribunal Federal — posto do qual só foi destituído em maio deste ano, com a nomeação do ministro Luiz Edson Fachin.

Gervásio Baptista/SCO/STF
Gervásio Baptista/SCO/STF

Barroso mudou de lado do balcão e perdeu o controle que tinha sobre a própria agenda e, principalmente, deixou de escolher os temas que vai estudar, como fazia quando advogado ou professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “É o único emprego em que se você diz para a sua mulher que vai trabalhar e ela pode confirmar pela televisão”, brinca.

Se perdeu o controle sobre a agenda, o ganhou sobre os rumos do país, como, por exemplo, no Recurso Extraordinário 580.252, no qual ele propôs que, em vez de uma indenização em dinheiro, os presos submetidos a condições degradantes em presídios superlotados sejam compensados com remição de suas penas. Ou ainda na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.081, quando o Plenário do Supremo seguiu seu voto para mudar entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral e declarar que a perda de mandato por infidelidade partidária não vale para quem ocupa cargos majoritários, como é o caso dos senadores.

Como advogado, Barroso era o defensor das grandes causas. Atuou no caso em que o STF declarou a constitucionalidade da união estável homoafetiva e autorizou a pesquisa com células-tronco. Já como ministro, parece ter feito do aprimoramento da corte sua principal meta. Foi dele a ideia de se transferir para as turmas a competência de julgar as ações penais e o recebimento de inquérito nos casos de réus com prerrogativa de foro. Na opinião de Barroso, um passo importante para que o Plenário siga no caminho de se transformar uma corte constitucional.

“As mudanças são elaboradas em conjunto”, comenta Barroso, para dizer que não se joga sozinho no Supremo. De toda forma, foi dele também a sugestão para que os ministros circulem seus votos antes da discussão do tema em Plenário.

Questionado sobre o próximo grande caso do Supremo, o ministro aponta, com brilho nos olhos, a ação em que um partido propõe a rearrumação do sistema penitenciário brasileiro. Segundo ele, será uma chance para o Supremo exercer “grande papel do Judiciário” de proteção dos direitos fundamentais e, sobretudo, dos direitos fundamentais das minorias. “Os presos são uma minoria invisível, inclusive porque não têm acesso ao processo político majoritário, pois não votam”.

O ministro recebeu a ConJur em seu gabinete na semana em que completou dois anos de Supremo  — a mesma em que organizou sua primeira audiência pública  como ministro, sobre ensino religioso em escolas públicas.

A entrevista será publicada em duas partes. A primeira, mais voltada para o papel da Justiça e do Supremo. A segunda, com foco em votos do ministro Barroso.

Leia a primeira parte da entrevista abaixo.

Clique aqui para ler a segunda parte.

ConJur —  Após dois anos de Supremo, qual é a maior diferença que o senhor sente entre a vida que levava como advogado e a que leva como ministro?
Luís Roberto Barroso —
Além dos honorários [risos] — uma diferença que merece destaque, mas evidentemente eu vim pra cá numa fase da minha vida em que essas questões materiais já não eram decisivas nas minhas opções — como advogado eu escolhia as minhas causas e era o dono da minha agenda. Como ministro, eu não só não escolho as minhas causas, como tenho que julgar tudo o que chega. Às terças, quartas e quintas, preciso estar participando das sessões. É o único emprego em que se você diz para a sua mulher que vai trabalhar e ela pode confirmar pela televisão. A segunda diferença é que eu, hoje em dia, vivo com muito mais autocontenção. Como advogado e professor, eu tinha o papel de participar com grande liberdade do debate público,  sobre drogas, sobre o Supremo, sobre muita coisa. Um juiz tem limitações naquilo que ele pode falar e como ele pode falar. Quando eu era só um professor eu fazia uma resenha anual para o site Consultor Jurídico, inclusive com comentários críticos das decisões do Supremo. Eu, agora, não faço mais isso, eu tenho por princípio não comentar e menos ainda criticar as decisões dos meus colegas.

ConJur — E o que mudou para melhor?
Luís Roberto Barroso —
Primeiro, a sensação de você poder servir ao país. Estar aqui tem uma evidente dimensão de patriotismo e de idealismo. Eu estudei em escola pública a maior parte da minha vida, de modo que eu me sinto como uma pessoa que deve muito ao país e aqui é uma oportunidade de retribuir o muito que eu recebi. A outra coisa boa é que, embora eu tenha limitações no que eu possa dizer, participo do debate público com mais visibilidade e até com um pouco mais de poder. Porque o seu voto faz diferença na definição de temas importantes para o país. O contraponto disso é que para eu conseguir que qualquer ideia minha chegue ao mundo real eu preciso convencer mais cinco, que é também uma sensação nova.

ConJur — Qual é a maior dificuldade nesse ponto de convencer outros ministros?
Luís Roberto Barroso —
Esse é um lugar em que todo mundo pensa pela própria cabeça, com suas convicções, e, por isso às vezes é difícil formar consensos. Mas ao contrário do que algumas pessoas imaginam, aqui não é um serpentário, onde vivemos às turras. É exatamente o contrário, as relações são cordiais, e, em alguns casos, até afetuosas. O sistema de trabalho, no entanto, faz com que o Supremo funcione como um arquipélago: um conjunto de ilhas isoladas, como é lugar comum se dizer.

ConJur — Há necessidade ou vontade de mudar isso?
Luís Roberto Barroso —
Eu gosto desse sistema em que as votações não são discutidas anteriormente, que os votos não são combinados. Mas sou a favor da distribuição dos votos, ou pelo menos da ementa ou da conclusão alguns dias antes da sessão, para que cada um possa se preparar ou para concordar ou para divergir, o que diminuiria drasticamente os pedidos de vista. Uma prática que eu tenho procurado desenvolver e aplicar é, se for para acompanhar o relator, dizer apenas “acompanho o relator”. No máximo com uma frase complementar, sem precisar ler o voto integralmente.

ConJur — Há pouco tempo, o Supremo modulou a decisão sobre uma lei que concede benefício de ICMS do Paraná. Para especialistas que acompanham o assunto, isso aponta como o STF se comportará em todas as decisões sobre guerra fiscal. O senhor acha que essa modulação se aplica a outras decisões?
Luís Roberto Barroso
As decisões em matéria de guerra fiscal caracterizam o que um americano chamaria de "no-win situation" (situação em que ninguém sai ganhando). Não há como produzir a solução ótima. Nesse caso do Paraná, o relator se aposentou e passaram-se muitos anos de vigência do benefício. O que se considerou ali majoritariamente era que dar efeito retroativo a essa declaração de inconstitucionalidade obrigaria as empresas a recolherem — subitamente, se tornariam devedoras de cinco anos acumulados de tributos dos quais elas haviam sido isentadas. A solução que eu propus foi modular neste caso e, nos novos casos, os relatores darem a medida cautelar suspensiva da lei imediatamente. Com isso, resolve-se o problema pra frente. Neste caso, o Supremo entendeu de modular, mas eu não saberia dizer se é um indicador de que se vá modular sempre. A modulação funciona, de certa forma, como um incentivo à prática da guerra fiscal, que é inconstitucional. Qualquer pessoa que dê incentivo fiscal ilegítimo, sem aprovação no Conselho Secretário de Fazenda (Confaz), hoje em dia, já sabe que está praticando uma inconstitucionalidade e o beneficiário já sabe que está sendo beneficiário de uma inconstitucionalidade. Acho que daqui pra frente não haverá dúvida.

ConJur — O que o Supremo pode fazer para evitar que novos casos como esse cheguem ao Judiciário?
Luís Roberto Barroso
Em alguns casos, tenho adotado uma posição doutrinária que se denomina de “diálogos institucionais”, que é uma interação entre o Judiciário e o Poder Legislativo, o chamado apelo ao legislador. Logo que eu entrei no Supremo houve um caso em que o Supremo condenou um parlamentar a uma pena elevada. Surgiu, então, a questão de saber se a perda do mandato se dava automaticamente pela condenação ou se a perda do mandato dependeria de uma deliberação do plenário da Casa legislativa. A solução ideal para os casos de condenação por crime grave é a perda de mandato pela decisão judicial, mas, infelizmente, não é o que diz a Constituição, que manda submeter ao plenário da casa legislativa. Ao votar, cumprindo a Constituição, eu fiz um apelo ao Congresso, no sentido de que mude o tratamento dessa matéria.

ConJur — Esse é um caminho do meio para o chamado ativismo judicial?
Luís Roberto Barroso
Acho que o diálogo institucional é uma alternativa à atuação expansiva do Judiciário. Nesse caso, já havia no Senado uma Proposta de Emenda à Constituição nessa linha, e posteriormente à decisão, a PEC foi aprovada. As pessoas fazem uma grande confusão entre judicialização e ativismo judicial. A judicialização no Brasil é um fato, que decorre da constitucionalização abrangente da Constituição de 1988. Com isso, há muitos temas que em outras partes do mundo são deixados para legislação ordinária, mas no Brasil são tratados na Constituição, de uma forma detalhada. Trazer uma matéria para a Constituição é, de certa forma, retirá-la da política ordinária e trazê-la para o mundo judicial. Então, na medida em que a Constituição tem regras sobre meio ambiente, sistema previdenciário, índios, criança e adolescente, administração pública, sistema tributário, ela potencializa o fato de que essas matérias podem ser trazidas para o Judiciário. E a Justiça não pode dizer que não vai julgar. Uma vez judicializada uma matéria, aí sim o Judiciário pode se comportar de uma maneira ativista, ou de uma maneira autocontida. Eu não gosto mais da palavra “ativista”. Ela perdeu o conteúdo e passou a ser uma forma de desqualificar o pensamento do outro. Prefiro classificar como “atuação expansiva” ou “atuação autocontida”.

ConJur — Quando o Judiciário deve ter uma atuação autocontida?
Luís Roberto Barroso —
Quando houver uma lei, uma decisão política do Congresso, ou nos espaços de discricionariedade administrativa do presidente da República ou da administração pública em geral. Nesses casos, o Judiciário só deve intervir se tiver havido violação do devido processo legal na produção daquela decisão, ou se ela for manifestamente incompatível com a Constituição ou irrazoável. Fora isso, o Judiciário deve agir com autocontenção, isso em relação a atos do Executivo. Em relação a atos do Legislativo, mesma coisa, o Judiciário deve agir com autocontenção em relação às leis, salvo se houver uma flagrante afronta à Constituição. Agora, quando o Legislativo ou o Executivo não atuam em situações nas quais deveriam atuar, porque exigidas pela Constituição, sobretudo quando em jogo a proteção de direitos fundamentais, aí o Judiciário, não é que ele possa, ele tem o dever de atuar para proteger o direito fundamental, se este direito fundamental estiver sendo afetado por uma omissão legislativa ou administrativa. Foi o que aconteceu no caso das uniões homoafetivas, por exemplo. Ou na permissão à interrupção de gravidez de feto anencéfalo.

Portanto, a judicialização é inevitável, ela é um fato. O ativismo judicial não é um fato, é uma atitude, é uma maneira mais expansiva de interpretar a Constituição, inclusive, levando-a a situações que não foram expressamente previstas nem pelo constituinte, nem pelo legislador.

ConJur — O Supremo tem discutido o tema do financiamento de campanha, em ação que é apontada por alguns como ativismo judicial. Como o senhor enxerga tal questão?
Luís Roberto Barroso —
O meu voto é distinto das duas posições que foram manifestadas pelo ministro Luiz Fux e pelo ministro Teori Zavascki.

ConJur — Ele foi contabilizado como acompanhando voto do ministro Fux…
Luís Roberto Barroso —
Foi e com acerto, mas a fundamentação é distinta. O ministro Luiz Fux acolheu o pedido, julgou procedente a ação, entendendo ser inconstitucional a participação de empresa no financiamento eleitoral. O ministro Teori votou considerando constitucional o financiamento por empresa no modelo que aí está. Eu entendo que a participação ou não de empresa no financiamento eleitoral é uma decisão política, a ser tomada pelo Congresso. Porém, a participação de empresa, se o Congresso entender que deva havê-la, precisa ter algumas restrições mínimas, sob pena de violar a Constituição. O meu voto propõe algumas restrições mínimas. A primeira é que a empresa não pode financiar todos os candidatos ou partidos, pois isso não é nem exercício de direito político, nem liberdade de expressão. Ou a empresa foi achacada para contribuir, ou ela está procurando comprar favores futuros. Em qualquer dos casos, a situação é péssima. A segunda restrição é que a empresa que financia o candidato não pode, logo em seguida, contratar com a administração.

ConJur — E aí o Congresso teria um período para fazer isso, no seu entendimento?
Luís Roberto Barroso —
Eu devolvo a matéria para que o Congresso disponha da maneira que melhor entender, respeitados esses parâmetros mínimos. Portanto, basicamente eu digo: "Congresso, é sua decisão. Apenas, ao disciplinar a matéria, a Constituição impõe estas restrições".

ConJur — O senhor acaba de ter sua primeira experiência com audiência pública no STF, não é?
Luís Roberto Barroso —
A primeira audiência pública a gente nunca esquece [risos]. Compareceram representantes da Igreja Católica, representantes dos protestantes das denominações tradicionais, protestantes neopentecostais, muçulmanos, umbandistas, espíritas, budistas e ateus. Além desses representantes, que eu mesmo convidei, abri para inscrições de quem quisesse participar. Houve 227 inscrições e eu selecionei cerca de 20 instituições, entre universidades, institutos, igrejas, associações… Estou fazendo um breve relatório com a posição de cada uma dessas entidades e pretendo elaborar o meu voto e pedir pauta para julgamento no segundo semestre. Quem faz a pauta é o presidente.

ConJur — Essa abertura do Supremo para audiências públicas é um movimento novo, não é?
Luís Roberto Barroso —
É relativamente novo. Eu participei de algumas como advogado e achei a experiência muito rica. Como advogado, eu participei da audiência sobre pesquisas com células tronco embrionárias, da audiência pública sobre anencefalia, e da audiência pública sobre a questão do fornecimento de medicamentos pelo Poder Judiciário. Neste caso do ensino religioso, a questão é saber se, em escolas públicas, o ensino pode ou não ser confessional —aquele que é ligado a uma determinada religião e que é ministrado por um representante desta religião. A Procuradora Geral da República que propôs a ação sustenta que nas escolas públicas o ensino religioso não pode ser confessional, porque o Estado é laico. Portanto, deve ser um estudo da história das religiões, da doutrina de cada uma das religiões, mas não o ensino de uma crença específica. É isso que o tribunal irá decidir.

ConJur — O senhor acha que cabe ao juiz, então, sair dos autos de vez em quando para ampliar a discussão?
Luís Roberto Barroso —
Acho que, às vezes, a interpretação constitucional pode ser uma atividade puramente técnica, mas, outras vezes, ela é uma atividade que deve, inevitavelmente, ser desempenhada auscultando-se o sentimento social. Sobretudo, questões que produzem impacto relevante sobre a sociedade. O juiz não é escravo do sentimento social e muito menos da opinião pública, mas deve olhar pela janela e saber qual é a voz das ruas.

ConJur — A opinião pública também reage fortemente a outro caso no qual o senhor atua, que é o chamado mensalão mineiro…
Luís Roberto Barroso —
Eu fui relator do caso no STF, mas não examinei o mérito dos dois casos. Com o meu voto, o tribunal determinou, por unanimidade, determinou a baixa. A questão do mensalão de Minas traz ao debate o foro por prerrogativa de função. Eu acho que é preciso, no Brasil, uma drástica redução do foro por prerrogativa de função, que deve ser basicamente reservado para os presidentes de poder e mais uma ou outra autoridade. Eu defendo que se deveria criar uma vara em Brasília especializada para julgar essas questões que hoje estão submetidas a foro por prerrogativa de função no Supremo e no STJ. O juiz dessa vara seria escolhido pelo Supremo para um mandato de quatro anos, ao final dos quais ele seria automaticamente promovido para o seu tribunal, para que tenha total independência e não dependa de favor político de ninguém. Caberia recurso da decisão dele para o Supremo ou para o Superior Tribunal de Justiça, conforme a autoridade. Em primeiro lugar, acabamos com o problema da ausência do duplo grau de jurisdição, que inclusive é exigida por tratados dos quais o Brasil é signatário. E a vara seria em Brasília porque a autoridade pública merece uma certa proteção institucional, e, também, porque assim evitamos tanto a perseguição da política local quanto do favorecimento da política local. Eu não tenho opinião sobre se essas pessoas do caso eram culpadas ou inocentes, mas posso dizer que, passado um bom tempo da baixa dos processos para a Justiça de Minas Gerais, nada aconteceu. Simplesmente não foram julgados. Portanto, o sistema na Justiça Estadual não funciona bem e isso gera impunidade, ou gera sensação de impunidade, gera prescrição.

ConJur — Falando em prescrição, o senhor votou pela prescrição do crime de quadrilha ou bando no caso da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Por quê?
Luís Roberto Barroso —
Acho que logo ali na esquina do tempo, passadas as paixões políticas, qualquer pessoa que examine com frieza e isenção esta matéria chegará a esta conclusão. Isso sem demérito a quem quer que pense diferentemente, mas ali havia casos, por exemplo, de pessoas condenadas por corrupção ativa cuja pena foi elevada em 18%, 20%, presentes as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal. As circunstâncias previstas no artigo são grau de culpabilidade, antecedentes, personalidade do agente e consequências do crime. E aí, quando analisou-se o crime de quadrilha ou bando, presentes as mesmas circunstâncias judiciais — os mesmos antecedentes, a mesma personalidade, as mesmas circunstâncias, as mesmas consequências — a pena foi majorada em 75%. Não há lógica que sustente isso.

ConJur — Mas, houve justificativa para essa diferença entre um e outro?
Luís Roberto Barroso —
Uma especulação possível é que isso foi feito para evitar a prescrição. Ou eventualmente assegurar que se condenasse alguns réus cumprissem pena em regime fechado. Mas, não é possível majorar artificialmente a pena aplicável para escapar da prescrição. Qualquer jurista dirá que isso não é legítimo. E, consequentemente, a minha convicção é que, aplicados os percentuais razoáveis de majoração da pena, o crime estava prescrito. Eu sei que a opinião pública toda esperava o contrário, porém ali talvez tenha sido o momento que definiu a minha vida como juiz. Qualquer pessoa, mas sobretudo um juiz, e mais ainda um juiz constitucional, deve fazer, na vida, o que é certo e, eventualmente, suportar as consequências. E elas foram muito penosas naquele momento. Porém eu me inspirava ali numa passagem famosa, atribuída a Sócrates: “É melhor sofrer uma injustiça do que cometer uma injustiça”.

ConJur — E o senhor sofreu uma injustiça por causa dessa decisão?
Luís Roberto Barroso —
Ah, fui massacrado pela imprensa. Mas, isso faz parte de quem escolhe atuar no espaço público. Foi um momento circunstancialmente muito difícil em que eu fiz o que considerava correto e, portanto, fiquei em paz comigo mesmo. A vida segue, tudo passa. E eu faria exatamente do mesmo jeito. Alguém algum dia vai escrever: que bom que se impediu que um caso emblemático, um verdadeiro divisor de águas, virasse um julgamento com teses ad hoc, contrárias à jurisprudência e ao senso comum. É quando as pessoas estão com raiva ou têm ódio de um determinado réu que se torna necessário um juiz com determinação suficiente para impor o governo da lei, e não das paixões.

ConJur —  O senhor falou que o juiz tem que olhar pela janela para ver qual é a opinião pública. Isso significa também para ir contra ela?
Luís Roberto Barroso —
O juiz tem que saber qual é o sentimento social. E se ele puder decidir na forma da Constituição na mesma linha do sentimento social, é muito bom. Mas, sobretudo, quando exista um direito fundamental em jogo, mesmo que a maioria queira uma determinada coisa, se aquilo não for o certo o juiz tem o dever de ser contra-majoritário, e em nome da Constituição fazer o que é certo, mesmo contra a vontade da multidão.

ConJur — Quando o senhor entrou no Supremo, deu sua primeira entrevista para a ConJur, deixando clara a direção para a qual o senhor gostaria de conduzir sua atuação e a própria corte. Como podemos fazer um balanço de sua estadia no STF levando em conta esses planos?
Luís Roberto Barroso —
Desde que entrei, tenho participado de um processo de reflexão coletiva a propósito de avanços institucionais aqui no Supremo. Aqui não há propriamente autoria de ideias, nós aqui compartilhamos aflições e criamos coletivamente. Mas eu tenho me empenhado pessoalmente por algumas transformações. Entre as mudanças que eu destacaria primeiro, está o julgamento dos casos penais pelas turmas. Foi passado do Plenário para as turmas o recebimento de denúncia e o julgamento de ações penais. Isso desobstruiu a pauta.

ConJur — Desde o processo mensalão se mostrou muito urgente, não é?
Luís Roberto Barroso —
Isso. As turmas têm uma dinâmica muito mais ágil, nós já julgamos em um ano nas turmas mais de dez vezes o que se julgou no Plenário, em matéria de recebimento de denúncia e ações penais. Uma outra mudança, de cuja implementação eu participei, com a atuação decisiva do presidente Ricardo Lewandowski, é a de ao final do julgamento se definir a tese que está sendo aprovada.

ConJur — As ementas não eram obrigadas a trazer isso?
Luís Roberto Barroso —
As ementas eram muitas vezes a expressão da posição do relator. Agora, não: fica clara a tese jurídica que foi chancelada pelo tribunal. Isso muda a vida dos advogados e dos demais tribunais, que ficam sabendo com clareza com a posição do STF. Uma outra mudança da qual eu participei junto com outros colegas foi a da circulação prévia de votos.

ConJur — O senhor propôs também que o Supremo só aceitasse o que poderia julgar em um período específico…
Luís Roberto Barroso —
Eu acho que o Supremo não deve dar mais repercussões gerais do que possa julgar em um ano. E acho, veja, o Supremo é uma instituição tradicional, como o é a Igreja, como são as Forças Armadas. Nas instituições tradicionais, as mudanças são lentas. Mas eu tenho fé de que em breve vai prevalecer o entendimento que me parece relativamente óbvio, de que o Supremo não deva dar mais repercussões gerais do que possa julgar em um ano.

ConJur — Mas, o tribunal não conseguiria ver o que vai chegar a ele nos próximos meses, não é?
Luís Roberto Barroso —
A minha proposta é a de que a seleção seja feita por semestre. Terão repercussão geral reconhecida os principais processos distribuídos no período. Além disso, enquanto houver um estoque de mais de 300 repercussões gerais, elas devem ser reconhecidas com grande parcimônia. Essa parcimônia já tem se manifestado. No primeiro semestre, foram dadas menos de vinte repercussões gerais para serem julgadas em plenário físico. Isso é uma quantidade bastante parcimoniosa em contraste com o que ocorria anteriormente. Mas, na minha proposta, que ainda está em debate interno, a seleção deveria ser feita por semestre. Portanto, em junho nós selecionaríamos as matérias que vão ter repercussão geral dos processos ingressados no primeiro semestre. O mesmo se faria em dezembro. E o mais revolucionário é que as repercussões gerais selecionadas em junho passariam a ser julgadas a partir de janeiro seguinte, de preferência, com data marcada. Isso aboliria a necessidade de vista, porque cada juiz teria seis meses para entender a questão que está em discussão e os advogados saberiam quando aquilo entraria em pauta. É muito constrangedor — e eu já passei por isso como advogado — ver advogados virem uma, duas, três, quatro, cinco vezes para a sessão sem que o seu processo seja chamado.

ConJur — E o tribunal julgará cada vez menos?
Luís Roberto Barroso —
Minhas propostas são para tornar o Supremo um tribunal que julgue com mais qualidade. Não é trabalhar menos. Eu trabalho aqui com muito gosto e quero trabalhar melhor. Tenho como proposta também um ponto que é praticado no mundo inteiro e que a gente vai ter que implantar aqui num futuro próximo. Quando um recurso extraordinário chega no Supremo, existem três possibilidades: 1) eu posso reformar a decisão de origem monocraticamente, porque ela contrariou a jurisprudência do Supremo; 2) eu posso propor que se dê  repercussão geral à matéria, submetendo-a ao plenário virtual — seja para reafirmar jurisprudência seja para que o tema seja levado ao Plenário físico; 3) eu posso manter a decisão da origem, seja porque o recurso é incabível seja porque a decisão está alinhada com o entendimento do STF.

Pouco mais de 5% dos recursos extraordinários são providos. Ou seja, em mais de 90% dos recursos extraordinários que chegam ao STF é mantida a decisão da origem — que já passou pelo primeiro e pelo segundo graus e, por vezes, pelo STJ.

ConJur —É um número muito alto, ministro.
Luís Roberto Barroso —
Isso significa que a maior parte do trabalho do gabinete é produzindo decisão nos processos que o ministro não vai julgar, ou seja, vai manter a decisão de origem. Isso não faz nenhum sentido. Acho que, em breve, nos casos em que seja para manter a decisão, não vamos precisar produzir uma decisão, ou bastará uma decisão simples, como “a decisão recorrida está alinhada com a jurisprudência do Supremo” ou “a decisão recorrida não envolve matéria constitucional”. E aí vamos deixar de atrasar o trânsito em julgado em anos. Isso me parece tão óbvio que não deve ser difícil conseguir consenso em futuro próximo.

ConJur — Isso é um trabalho que a equipe do gabinete pode fazer?
Luís Roberto Barroso —
O problema não é examinar, é ter que produzir uma decisão com relatório e fundamentação para dizer que a decisão da origem está correta. Nenhum tribunal constitucional do mundo faz isso. Todas as supremas cortes selecionam os casos que vão julgar. O resto transita em julgado.

ConJur — Na posse como presidente da corte, o ministro Lewandowski colocou como meta o aumento do número de súmulas vinculantes. E isso tem acontecido. O senhor acha que isso é um passo para diminuir o número de ações que chegam ao Supremo?
Luís Roberto Barroso —
Eu acho que o ministro Lewandowski tem esse ponto de vista e eu o apoio, como presidente, em tudo o que é possível. Ele conduz o Tribunal com grande fidalguia e eficiência. Sob a condução dele, julgamos uma grande quantidade de questões relevantes. Pessoalmente, acho que a súmula às vezes é útil, mas, às vezes, é uma fonte de novos processos, sobretudo, porque gera reclamações. Respeito o ponto de vista dele, apoio na medida do possível, mas nem sempre acho que a súmula vinculante seja o caminho.

ConJur — O senhor poderia exemplificar como é que ela se torna fonte de novos processos?
Luís Roberto Barroso —
Uma vez que se produz uma súmula vinculante, se alguém alegar que a decisão de origem está em contrariedade com a súmula, entra com uma reclamação, que é um processo ajuizado diretamente do Supremo. A parte pode chegar no Supremo com uma decisão de primeiro grau, dizendo "violou a súmula". Transfere para as reclamações parte do estoque do qual a corte se livrou nos recursos extraordinários. Portanto, a súmula vinculante é útil, mas tem essas implicações. Agora, a repercussão geral, que evita até mesmo que o processo suba, porque o filtro é feito na origem, eu acho que é extremamente valiosa.

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