Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (Parte 19)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

1 de julho de 2015, 18h26

Spacca
O professor de Direito
A docência jurídica na Inglaterra e no País de Gales não é tão relevante quanto sua homóloga nos países europeus continentais já estudados nesta série de colunas. Para além dessa diferença, que é bastante em si mesma, há outras características da profissão que a tornam bem peculiar em comparação com sua equivalente no resto da Europa. Uma delas é a abertura para estrangeiros, o que se justifica pela universalidade do idioma inglês e pela diretriz das instituições britânicas de seguirem o modelo norte-americano de diversidade étnica e geográfica em seus corpos docente e discente. Segundo dados do Instituto Universitário Europeu, em 2007, na LSE – London School of Economics, uma das mais prestigiadas escolas do mundo, 47% dos professores eram de origem não britânica.[1]

Não se limitando apenas à Inglaterra e ao País de Gales, mas a todo o Reino Unido, pode-se também afirmar que há uma política de incentivos remuneratórios e de financiamento de pesquisas mais próxima do que se pratica nos Estados Unidos, com ênfase em controles de mérito acadêmico por meio de publicações em revistas indexadas, participação em eventos internacionais e parcerias com o setor privado. Esse “novo caminho” do ensino universitário britânico em geral não tem passado incólume a críticas internas. A transformação da universidade em um espaço com objetivos, metas e governança típicos de uma empresa não é algo aceito de modo silencioso. A cultura do fordismo ou do controle de resultados acadêmicos – qualificação que pode variar conforme sejam defensores ou críticos do modelo – instalou-se de modo firme nas universidades.

A autonomia universitária permite que se encontrem diferenças na estrutura da carreira docente, mas, em linhas gerais, é possível identificar esta escala: a) assistente de pesquisa (com grau mínimo de doutor e geralmente em estágio pós-doutoral); b) Teaching Fellow; c) Research Fellow; d) Lecturer A; e) Lecturer B; f) Senior Lecture ou Reader; g) Professor.[2]

Note-se que a idade média para se doutorar no Reino Unido é bem mais baixa  que no continente: 26-27 anos. Desse modo, a carreira de alguém interessado na docência começa relativamente mais cedo. Outro aspecto digno de nota é que a falta de familiaridade dos brasileiros com os títulos universitários britânicos. É bem comum confundir-se um Fellow ou um Research Fellow com um professor no sentido usado na Europa Continental ou mesmo com um professor submetido ao regime estatutário brasileiro, o que não é correto. Essa confusão de nomes têm levado algumas universidades a adotar a nomenclatura norte-americana: Assistant Professor, Associate Professor e Full Professor. O peso da palavra “professor” é a razão dessa mudança.

A evolução na carreira não se dá de modo maquinal ou “controlável” por meio de decurso de tempo. Faz-se necessário um estágio pós-doutoral para se chegar ao estágio de  Lecture A. A depender das qualificações, o candidato pode saltar diretamente para o cargo de Lecture B. Atingir a condição de Professor é algo de depende das regras da instituição e pode-se dar por diferentes modos: a) concurso para uma vaga aberta por morte, aposentadoria ou remoção do titular para outra universidade; b) indicação dos titulares das unidades acadêmicas, o que pressupõe um excelente currículo e, segundo as más línguas, ótimas conexões políticas; c) participar de uma seleção interna, de acordo com as regras de cada universidade, para progressão na carreira.

Aspecto interessante é que não existe a figura da defesa de uma tese de cátedra (titularidade) e outra de livre-docência, como se dá nas universidades estaduais paulistas e em algumas federais brasileiras. Mas, entende-se que o candidato ao cargo de Professor deve ter publicado ao menos 2 livros em sua carreira.  É muito forte nas ilhas britânicas a figura da tomada de referências de um candidato. A instituição pede opiniões reservadas sobre a pessoa e a carreira do postulante a pessoas do meio acadêmico nacional ou estrangeiro. No Brasil, essas cartas de “referência” ou de “recomendação” transformaram-se em verdadeiros textos hagiográficos. No Reino Unido, são esperadas análises criteriosas e isentas por parte dos convidados a se manifestar, sem qualquer constrangimento em se expressar opiniões críticas sobre o candidato.

A exigência por produção de qualidade é determinante na promoção dos docentes. Há, no entanto, outra razão de ser para essa demanda: a maior parte dos docentes é vinculada à universidade por meio de contratos temporários renováveis. A tenure é um privilégio muito restrito e não há a cultura da “estabilidade” como se vê no Brasil. Tal circunstância torna a vida universitária bem mais competitiva e mais frágil a situação dos fellows, lectures e readers.  O sabático (um semestre ou um ano) é também uma instituição consolidada. O professor tem direito a esse período a cada 4 ou 5 anos de atividades.

Embora variável conforme as instituições e não se computando vantagens pessoais, a remuneração bruta do professor universitário da LSE é a seguinte: a) Assistente de Pesquisa:  3,520 €/mês; b) Lecturer A: 4,407 €/mês; c)   Lecture B: não há no quadro; d) Reader: 6.436 €/mês; e)  Professor: 9,780 €/mês.[3] Deve-se registrar que esses valores superam em até 20% o que é pago por outras universidades do Reino Unido. É também necessário informar que sobre a remuneração bruta incide uma alíquota de 34% em média. Finalmente, há uma política de negociação individual de valores além do salário nominal. Cada instituição tem regras sobre o exercício da docência em simultâneo com outras atividades profissionais. Nos últimos anos, em Direito, tem crescido o monoprofissionalismo, mas, como a centralidade das profissões jurídicas está na advocacia, é cedo para se afirmar que esse modelo prevalecerá.

Um professor em meio ao regime de tutorias
Restringindo-se novamente a análise à Inglaterra e ao País de Gales, volte-se para um tópico de grande interesse comparativo: a ministração das aulas. A lecture, ou uma aula magistral, ainda é o centro do ensino jurídico anglo-galês. Existem também os seminários, com apresentação de estudos pelos alunos.  No entanto, há uma característica bem própria do modelo inglês: as tutorias (na linguagem de Oxford) ou supervisões (na terminologia de Cambridge).  O tutorial system consiste no acompanhamento dirigido dos estudos de um grupo reduzido de alunos por fellows da universidade. Esse acompanhamento compreende leitura de textos, discussões, preparação para seminários, questionamentos e várias formas de estimular o aluno a pensar e defender suas ideias. Trata-se de um método bem original, aplicado em universidades de ponta e que depende  de um enorme número de fellows para realizar essa atividade e uma estrutura docente hierarquizada, que comete aos Professors a elaboração das grandes linhas do curso e a ministração das lectures, enquanto que o grande número de assistentes leva a efeito a tutoria.

No Brasil, só conheço um modelo parecido com o tutorial system, mas com a peculiaridade de contar com monitores (alunos de graduação e de pós-graduação) e não com fellows, que é o Grupo de Estudos de Direito Romano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, existente há mais de 30 anos e criado pelo então professor doutor Thomas Marky  e hoje liderado por seu discípulo o professor titular Eduardo César Silveira Vita Marchi. O já famoso “grupo de pesquisa de Direito Romano” tem sido o responsável pela formação de gerações de novos estudiosos de Direito Privado no país. Alternam-se as aulas magistrais, a leitura de textos e a discussão de casos, o que também é possível graças à coesão dos professores associados e doutores de Direito Romano e de História do Direito (Dárcio Roberto Martins Rodrigues, Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes e Hélcio Maciel França Madeira).

O ranking das faculdades de Direito
Favorecidas pelo idioma inglês,  grandes volumes de recursos e sua administração racional, abertura para docentes e discentes não nacionais, as universidades inglesas estão dentre as melhores do mundo, segundo variados rankings. Usando-se apenas o World University Rankings 2014-15, do Times Higher Education,  encontram-se as universidades de Oxford (terceiro lugar), Cambridge (quinto lugar) e o Imperial College London (nono lugar) nas 10 primeiras colocações internacionais.[4]

Como já salientado em colunas anteriores, a leitura isolada desses números é algo muito superficial, até pelos problemas  de se comparar instituições de grande porte com outras médias ou pequenas. No Direito, tal situação é ainda mais difícil ante as diferenças de modelos. Os ingleses e galeses estão mais próximos da realidade americana, salvo em questões como ser o curso de Direito – em regra – uma graduação e não uma pós-graduação.

Em outro ranking, do jornal The Guardian, exclusivo para cursos de Direito, assim estão colocados os melhores cursos: 1) Cambridge; 2) Oxford; 3) Queen Mary; 4) University College London; 5) LSE; 6) Durham; 7) Nottingham; 8) York; 9) King’s College London; 10)  The School of Oriental and African Studies – SOAS, University of London.[5]    

Algumas informações interessantes sobre essas universidades. Primeiro, é necessário dizer que todas são públicas. A SOAS é voltada  primordialmente para estudantes africanos e asiáticos. A University College London foi a primeira instituição laica do país e também a pioneira em abolir restrições étnicas, de gênero ou religiosas. O King’s College, que tem desenvolvido forte aproximação do Brasil nos últimos anos, alterou o nome de sua faculdade de Direito para The Dickson Poon School of Law. Esse nome tão diferente foi atribuído à faculdade em 2012 como uma forma de homenagear o milionário de Hong Kong Sir Dickson Poon, Cavalheiro do Império Britânico, que doou 20 milhões de libras esterlinas à instituição. Essa foi a maior doação privada individual da história do King’s College.

Conclusão
O ensino jurídico inglês e galês está a meio-termo dos modelos continentais europeus e norte-americanos. Colocado em uma realidade britanicamente peculiar, esse modelo não se centraliza na figura do docente e apresenta uma nítida divisão de tarefas formativas entre a universidade (de 1 a 3 anos, a depender do tipo de curso) e as corporações profissionais, estas últimas extremamente ciosas do número de ingressantes e de sua qualidade, o que se revela por cursos de ingresso próprios e pela força de seus órgãos de classe, a despeito de seu enfraquecimento no campo disciplinar nos últimos anos.

Com professores bem remunerados, o que deve ser visto também em termos, dado o elevado custo de vida nas ilhas britânicas, e com uma flexibilidade maior de carreira, o Direito é ensinado pelo método de tutorias, associado às aulas magistrais e aos seminários. A base da carreira é desproporcionalmente maior do que o topo, o que permite o emprego de muitos auxiliares de ensino e assistentes no tutorial system.

As universidades são majoritariamente públicas, embora haja também instituições particulares. Todos os alunos pagam os custos da faculdade, o que alimenta um mercado de “fundos educacionais” e um sistema de poupança familiar ou de endividamento pessoal.  Não há um sistema de exames de Estado, mas as corporações selecionam com rigor os advogados, que se dividem em duas classes tradicionais, com uma clivagem que hoje se atenuou, mas que permanece em torno do direito de atuar perante tribunais superiores e o contato com os clientes.

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Na próxima semana, atravessaremos o Atlântico e vamos para a América. Até lá!

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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