"Eufemismo que cega"

Não há presos provisórios, cautelares ou preventivos; há presos inocentes

Autores

  • Victor Martins Pimenta

    é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental no Ministério da Justiça.

  • Tatiana Whately de Moura

    graduada em Ciências Sociais na PUC-SP é mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Desenvolve pesquisas na área de segurança pública e é Assessora do Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.

31 de janeiro de 2015, 7h48

Quando uma pessoa, geralmente mulher, muitas vezes mãe, é obrigada a tirar toda sua roupa, fazer agachamentos, saltos, submeter-se ao toque íntimo ou ter objetos introduzidos em suas cavidades corporais, para fazer uma visita a um parente que está custodiado em uma prisão, nós não dizemos que houve revista íntima. Dizemos que houve mais uma inaceitável revista vexatória.

Quando um empregado desempenha suas funções em situações incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, em violação de direitos fundamentais que coloquem em risco sua vida e saúde, não dizemos apenas que são condições degradantes de trabalho. Dizemos que há trabalho escravo.

Disputar conceitos é importante. O poder simbólico da narrativa, da forma como se nomeia determinada realidade, pode ser crucial para nosso sucesso ou insucesso em transformá-la. Com Bourdieu, vimos que a linguagem não é somente um instrumento de comunicação, mas também um instrumento de ação e poder.

A revista íntima era um procedimento burocrático de segurança difundido acriticamente pelos milhares de estabelecimentos prisionais no país. Já a revista vexatória está no centro da crítica de militantes de direitos humanos e vem sendo progressivamente abolida. O trabalho exercido em condições degradantes pode ser invocado pela direita liberal mais radical como exercício da liberdade individual do trabalhador em prover seu sustento conforme as condições que livremente pactuou. Já o trabalho escravo é indefensável e todos – ao menos publicamente – querem sua abolição.

Daí que precisamos revisitar a narrativa e passar a nomear adequadamente a situação das mais de 240 mil pessoas que se encontram, hoje, presas sem que tenham contra elas sentenças penais transitadas em julgado.

Hoje os chamamos, comumente, de presos provisórios. Dizemos que houve uma prisão cautelar ou preventiva. Nos habituamos tanto a essas palavras que perdemos a capacidade de estranhamento frente a elas. Quase esquecemos que se tratam de eufemismos, cirurgicamente construídos para a naturalização da barbárie – o que chamamos hoje medida cautelar, os nazistas diziam internação especial, tratamento especial ou limpeza, conforme nos adverte Zaffaroni.

Precisamos aprender a dizer que não existem presos provisórios, cautelares ou preventivos.

Porque de provisória essa prisão não tem nada. Ela geralmente dura anos e, muitas vezes, por mais tempo do que a própria pena aplicada ao final do processo. Mais de 80% das pessoas presas em flagrante permanecem presas até o julgamento da ação, conforme pesquisa do Instituto Sou da Paz.

De cautelar essa prisão não tem nada. Estudo recente do IPEA indica que 37% dos réus presos durante o processo não foram condenados à prisão. Outra pesquisa, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e da Pastoral Carcerária, aponta que apenas 1 em cada 10 acusados pela prática de crimes não violentos tiveram pena tão gravosa quanto a medida cautelar a que foram submetidos. A prisão cautelar busca assegurar o cumprimento de uma pena que, ao final, não é aplicada – com um custo social e financeiro que, por cautela, deveríamos questionar.

De preventiva essa prisão também não tem nada. Seu uso indiscriminado, sobretudo contra parcela específica da população que povoa os cárceres (os jovens negros), revela que a prisão não busca garantir a ordem pública, econômica, a instrução do processo ou a aplicação da lei penal. Ela busca, pura e simplesmente, saciar nosso punitivismo e nossa falsa percepção de que a prisão deles nos torna mais seguros, acalmando nosso medo.

Como mencionado, disputar conceitos importa. Para reconhecermos nossa barbárie, precisamos nomeá-la, desnudá-la, trazê-la ao sol. Assim, se a nossa Constituição é expressa ao dizer que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não faz o menor sentido nos contentarmos em nomear as prisões que escapam a esse preceito como provisórias, cautelares ou preventivas.

São antes de tudo, pela sua natureza que esquecemos de invocar, prisões de inocentes. São presos inocentes que, apesar da presunção inscrita no castigado inciso LVII do artigo 5º da Constituição, permanecem atrás das grades aguardando o julgamento do processo, sem perceberem que já foram considerados culpados e cumprem pena por antecipação, independente da sentença futura que venha a absolvê-los, arbitrá-los penas alternativas ou, enfim, condená-los à prisão que já os abriga.

Pode fazer diferença a forma como os denominamos. Um preso provisório que é absolvido após aguardar por anos ao julgamento do processo atrás das grades, com alguma lógica jurídica (ainda que classista) e muito malabarismo ético, tem negado o direito à indenização pela família destruída, pelo trabalho perdido, pela vida adiada. Ninguém lhe pede desculpas, "a prisão era justificável à época do juízo cautelar". Não sabemos – mas nos parece que seria mais difícil negar esse direito a um preso inocente.

Podemos dizer que há um 'sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão de inocentes pelo sistema de justiça do país'. Dizer que 'a prisão de inocentes só deve ser admitida em casos excepcionais previstos na legislação'. Que 'conforme os dados de dezembro de 2013, há mais de 240 mil presos inocentes no país', sendo um dos países cuja taxa de presos inocentes mais aumenta no mundo.

A Constituição nos autoriza a chamá-los assim – não o fazemos por opção política. Porque o eufemismo nos cega. E dar o nome adequado à nossa barbárie pode, quem sabe, contribuir para nosso processo civilizatório, nos fazendo enfim enxergá-la.

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    é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental no Ministério da Justiça.

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    graduada em Ciências Sociais na PUC-SP, é mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Desenvolve pesquisas na área de segurança pública e é Assessora do Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.

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