Qualidade do ensino

BBB e OAB: E se o paredão dos críticos fosse refazer o Exame de Ordem?

Autor

  • Alvaro de Azevedo Gonzaga

    é livre-docente em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-doutor pela Faculdades de Direito da Universidade Clássica de Lisboa e pela Universidade de Coimbra doutor e mestre em Direito pela PUC-SP professor da PUC-SP tanto na graduação em Direito como na pós graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) e coautor da obra "Estatuto da Advocacia e Código de Ética e Disciplina da OAB comentados" 7ª ed. Rio de Janeiro: Método 2022.

27 de janeiro de 2015, 5h24

Recebi mais de uma dezena de mensagens de alunos, colegas e de meus novos leitores sobre o artigo que escrevi semana retrasada aqui na Revista Consultor Jurídico — Estudo mostra quem passa no Exame de Ordem. Esse texto, o mais lido da semana, trata de algumas considerações preliminares dos dados lançados pelo núcleo de concursos da FGV sobre algumas provas da OAB.

Passada mais de uma semana, meu artigo é comentado no mesmo portal jurídico. Nele, o articulista apresenta pontos divergentes e convergentes. Embora o que tenha motivado o autor do texto a elaborar seu artigo tenha sido uma afirmação que não se encontra em meu texto “o problema do Exame de Ordem é que os candidatos não sabem escolher sua área na segunda fase”, e que sua análise tenha focado apenas na primeira fase do Exame, suas afirmações são muito aquilatadas pelos argumentos apresentados e merecem algumas considerações.

Logo no início do artigo há uma crítica sobre a “gambiarra docente”, questão da qual não discordamos. De fato, temos uma “laje construída em terreno à beira de morros, rios e abismos (gnosiológicos)”. Quantos colegas não são chamados para lecionar em faculdades, das mais variadas, e “ensinam” fora de sua área de concentração?

Agora devemos criticar de maneira absolutamente ríspida os professores, que são produto do meio, ou os grupos educacionais que transformam o ensino e toda a sua relação de complexidade em simples relações econômicas? De fato, é preciso dialogar com o texto destacado pelo articulista: “Sorria, estudante de Direito, você virou recebível no mercado financeiro”.

Assim como o Direito vem sendo simplificado em resumos jurídicos, também o é na linguagem que aplicamos nesses artigos, por exemplo; mas devemos sempre ter como norte que a linguagem jurídica não pode deixar se seduzir pela linguagem jornalística, sob pena de perder sua complexidade. Mesmo assim, nos permitimos, pois sabemos que nossos trabalhos não se esgotam apenas em textos com viés jornalísticos. É preciso, para além disso, produzir e ler textos críticos e organizados que possuam a real complexidade que exige o Direito, como nos ensina o livro, recém-lançado no Brasil, do professor da Universidade de Coimbra, Dr. Rui Cunha Martins, intitulado A hora dos cadáveres adiados — livro que ainda não possui resumo na internet, o que nos convida mais ainda a lê-lo. Sim, um livro, mas, se quiser dois, poderá ler também O ponto cego do Direito, do mesmo autor, que nos ensina que quem fixa seu olhar crítico apenas, internamente, no Direito está fadado a não perceber este em todo o seu movimento — sim, eu sei, resumi o livro em duas linhas, mas quero advertir que ele é bem mais rico do que isso que escrevi, o que é apenas uma indicação bibliográfica.

Mais adiante, o articulista indaga: “o que o número de advogados terá a ver com isso — os baixos índices de aprovação?”. E afirma: “Ora, aumentou o número de faculdades, o número de alunos e, vegetativamente, o número de causídicos …! O que se queria? Uma diminuição?”. Parece-nos que na afirmação supratranscrita faltou apenas uma peça que foi criticada logo na abertura do texto, qual seja, o aumento do número de professores, muitos deles sem formação específica em suas áreas, e recebendo um valor de hora/aula que avilta a dignidade do ser humano e fere a proporcionalidade e a razoabilidade (e, mesmo que Alexy, Dworkin, Humberto Avila e tantos outros debatessem sobre o valor de hora/aula do professor brasileiro, diriam que é desproporcional e desarrazoado dentro de suas teorias do direito), e, com isso, temos um aumento do número de “desaprendizes” do direito que enfileiram as faculdades sem saber que estudam com um não especialista, que são pagos por grupos educacionais que pensam nos custos, e não no saber com sabor, como diria Pessoa.

Sobre o neologismo “dificilómetro”, estilo de escrita que me lembra o saudoso professor Warat, o articulista indaga: “há algum estudo mostrando que o Exame ficou mais difícil?”. Nesse momento, lembro-me de ter feito estágio com o Dr. Cid Vieira que implementou o Exame de Ordem em 1979 — em moldes muito diferentes do que temos hoje; na época existia prova oral, o que parece amedrontador, mas nunca vi um advogado dessa época que tenha sido reprovado na avaliação oral do Exame de Ordem. Mais contemporaneamente, no ano em que prestei o Exame de Ordem, há pouco mais de dez anos, descobri em minha prova que existiam testes repetidos dos exames anteriores — isso mesmo, repetidos/iguais —, então bastava resolver as últimas provas para ter a surpresa de rever o teste da apostila. Um dos motivos que também levou o Exame de Ordem a ser nacionalizado foram diversas suspeitas, e fraudes comprovadas, em alguns Conselhos Seccionais.

Critica de forma aberta os cursos preparatórios, afirmando que: (sic) “aumentou incrivelmente o número de cursinhos”. Agora é minha vez de questionar: há algum estudo apontando o aumento de cursos, uma espécie de “cursômetro” que indica que estes cresceram incrivelmente? Confesso que não tenho esse dado, mas, valendo-me da técnica da observação (reconhecida pela sociologia), parece que alguns cursos aumentam em números de alunos, mas não em portas abertas de novos cursos. Seja como for, deve ser muito preocupante ver muitas instituições de ensino superior montarem, dentro de seus muros, cursos internos para o Exame de Ordem, como é o caso de faculdades renomadas que inclusive têm programas de pós-graduação stricto sensu reconhecidos e bem avaliados. No entanto, isso não significa que os professores que ensinam na graduação deverão benzer canetas ou vade mecum para a aprovação do candidato, como já se observou. O exame pode não ser bem feito, mas é cediço que as faculdades ao menos devem preparar os alunos para o “quiz da OAB”, e, caso não consigam, sequer médios “néscios” consegue formar.

O artigo nos leva à ilação de que todos os cursos preparatórios e seus professores têm seus saberes reduzidos a dançarinos do Direito ou comediantes da justiça, com a “pedagogia decoreba” e o “estilo autoajuda de ensinar”. Então, desembargadores, juízes, promotores, advogados públicos, pesquisadores e tantos outros que ensinam em cursos preparatórios são colocados em uma mesma vala como se o mundo dos cursos preparatórios se resumisse não só em simplificação de conteúdos, mas também em redução e simplificação de pessoas em standards confortáveis à sua argumentação. De fato temos professores que se encaixam nesse padrão apontado, mas não podemos reduzir os cursos preparatórios a isso.

No tocante à exigência de filosofia do Direito no Exame de Ordem, sou contra o modo como tal disciplina é exigida. Quando estudava filosofia na graduação, aprendia que o importante é a leitura estrutural de um texto. Na Faculdade de Direito, a grande maioria dos professores me ensinou uma leitura histórica, e eu optei por uma perspectiva heterodoxa e gestáltica, que me parece o caminho certo do conhecer. Quando se fala em filosofia no Exame de Ordem penso: Em prova objetiva? Qual doutrinador será eleito? Todos? Então vira surpresa, e não prova. Com apenas dois testes que podem exigir Paul Hazard em uma questão e Gioele Solari em outra, por exemplo, ou ainda Jean Thiry e Giovanni Tarello, enfim é um mundo infinito que não avalia conhecimento em 200 questões, o que dirá em duas.

Penso que, se quiser que o aluno leia um livro, se deve fazer como no concurso da defensoria de São Paulo, ou do Paraná, por exemplo, que nomeia estudiosos da filosofia (professores titulares de faculdades de prestígio, com pesquisas relevantes nacional e internacionalmente) que apontam alguns livros, no edital, de que o aluno deve ter conhecimento para responder às questões em todas as fases do concurso.

O autor finaliza o texto com suas considerações habituais em congressos, simpósios, textos e palestras, no sentido de que é preciso melhorar o ensino jurídico e que não devemos nos prender a resumos.

Achei muito interessante e irreverente o paralelo que o autor faz do programa BBB como a matéria mais lida na semana da ConJur, e dessa observação desdobro que é um cuidado que o Direito precisa ter, de não virar BBB, pois muitos dentro do Direito, como já disse, cedem ao BBB jurídico, estreitando suas relações com a linguagem jornalística a ponto de se afastarem do Direito.

Mesmo levando em consideração que as demais sugestões misturam-se em anoiéticas e dianoiéticas, concordo em muito do que é exposto:

  • Reformulação da grade curricular. Por exemplo, com um estudo de processo civil crítico, que me lembra o modo como ensinam o Professor Nelson Nery, Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro e tantos outros, por exemplo;
  • Mais filosofia do Direito com professores de Filosofia do Direito. Aliás, essa parte é quase que advocacia em causa própria;
  • Bibliografia de qualidade, e não só aquela que consta no conteúdo programático e tem na biblioteca;
  • Abandonar a postura do acadêmico consumidor;
  • Abandonar as muletas, buscando pesquisas com professores titulados, e, caso não seja possível, criar uma força de mobilização dos próprios alunos para conseguir produzir eventos científicos, como é o caso do “João XXXIII”, em que propus aos meus alunos do C.A. da PUCSP se juntarem aos alunos do XI de Agosto (USP) e do C.A. João Mendes Junior (Mackenzie) e organizarem eventos em que pudesse existir a troca de ideias entre alunos e professores destas e de outras instituições;
  • Aprender a usar a biblioteca. Inclusive em muitas faculdades existem visitas monitoradas que ensinam efetivamente o aluno a ter maior facilidade em acessar os livros; e
  • Ler livros de literatura. Dica imprescindível para enriquecer o vocabulário e se colocar em conflitos. Sugiro também música boa para alimentar a alma.

Falando em música, Chico Buarque diz em uma de suas letras: “Quem brincava de princesa acostumou na fantasia”. É exatamente isso: que como professor e palestrante, que convidam os alunos à reflexão para cursos mais aprofundados, devemos tomar cuidado para lembrar que a justiça é vendada não apenas para recair sua espada sem olhar em quem, mas também porque não pode aquele que julga buscar ser mais conhecido que suas opiniões.

Agrada-me saber que meu texto, direcionado aos estudantes que buscam sua aprovação no Exame de Ordem, tenha ocupado também aqueles que se preocupam com a qualidade do ensino jurídico brasileiro. Tenho, reconheço e aceito muitas das críticas elaboradas no artigo, e penso que dessa forma nos transformamos cada vez mais, evitando o solipsismo daqueles que se apaixonam pela própria voz.

Último parágrafo: Qual a lição que tive?
Temos que nos cuidar para não virarmos BBB do Direito. Devemos aceitar as críticas para compreendermos melhor os porquês das coisas. Entendendo isso, e com o número de neurônios suficientes para não fazer piada, nem ser preconceituoso, recebo as críticas e dialogo com o muito bem elaborado texto do articulista, considerando findo esse debate.​

Autores

  • Brave

    é advogado, é Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa e Universidade de Coimbra. Professor concursado da PUC/SP. Professor e coordenador da OAB no Curso Fórum.

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