Propostas incompletas

Relatório final da CNV: É melhor uma Justiça tardia que nenhuma Justiça

Autores

  • Kai Ambos

    é catedrático de Direito Penal Direito Processual Penal Direito Comparado e Direito Penal Internacional na Georg-August Universität Göttingen (Alemanha) além de diretor do Centro de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Latino-americano da universidade e juiz do Tribunal Provincial de Göttingen.

  • Eneas Romero de Vasconcelos

    é mestre em Direito pela Universidade de Brasília (Unb) ex-bolsista CAPES/DAAD doutorando na Universidade de Götttingen na Alemanha pesquisador e Secretário Executivo do Centro de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Latino-Americano (CEDPAL) e Promotor de Justiça no Estado do Ceará.

24 de janeiro de 2015, 15h32

Depois de quase 30 anos do fim da ditadura militar brasileira (1964-1985), a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, com dois anos e sete meses de atividade (05.2012-12/2014), emitiu em 10.12.14 o seu relatório final. São 3 volumes e vários tomos (cerca de 4.400 p.) em que a Comissão, composta inicialmente por 7 Conselheiros (dentre juristas, professores e uma psicanalista)[*] e uma equipe de mais de 200 assessores, pesquisadores e colaboradores (217 trabalharam nela em todo o período), descreve detalhadamente as violações aos direitos humanos cometidas no período de 1946 até 1985, apresenta quatro conclusões e vinte e nove recomendações. O relatório foi dividido em três volumes.

Panorama
No primeiro volume, de autoria de todos os conselheiros, dividido em 18 capítulos, a CNV cumpre a sua finalidade de descrever as graves violações aos direitos humanos ao elencar os fatos (que por sua “crueza” contribuem para a memória à verdade histórica) cometidos pela ditadura, especialmente no período de 1964-1985, quando o Brasil foi governado por militares depois do Coup d’État de 1964. A CNV descreve o funcionamento da estrutura burocrática da ditadura (e dos diversos órgãos de repressão que criou, como CIE, OBAN, DOI-CODI, CISA, CENIMAR e o SNI, o Serviço Nacional de Informação, órgão de inteligência vinculado diretamente à Presidência e com enorme poder) e o importante papel desempenhado pela Polícia (Civil, Militar e Federal) para o cometimento sistemático de graves violações de direitos humanos. A CNV também descreve a repressão aos opositores como parte de uma cooperação internacional no contexto da guerra fria por intermédio da denominada “operação Condor” (cooperação entre as ditaduras da América do Sul: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, ver capítulo 6 do relatório) e o treinamento de militares brasileiros pela United States Army School of the Americas. A CNV revela (na Parte III desse volume) as 4 principais modalidades de violações cometidas sistematicamente pela ditadura: 1) a detenção ilegal ou arbitrária; 2) a tortura sistemática tanto física (de diversos modos e com uso variado de instrumentos como choques, palmatória, pau de arara, cadeira do dragão, afogamento, telefone, corredor polonês, produtos químicos, soro da verdade, sufocamento, enforcamento, geladeira, animais, coroa de cristo etc.) quanto psicológica (ameaças e ameaças a parentes e amigos) praticada  comprovadamente contra pelo menos 1.843 vítimas (embora com estimativa muito maior de cerca de 20.000 vítimas) e por intermédio de crimes sexuais; 3) execução sumária, arbitraria ou extrajudicial ou outras mortes impostas ao Estado; 4) desaparecimento forcado e ocultação de cadáver.

O , uma contribuição individual de conselheiros e equipe, revela as violações aos direitos humanos contra grupos de pessoas e instituições, como militares, trabalhadores, camponeses, igreja cristã, indígenas, na universidade, os homossexuais e a colaboração dos empresários com a ditadura.

O , com vários tomos, de coautoria dos conselheiros e segundo a própria CNV de “enorme significado histórico”, é dedicado integralmente às 434 vítimas de morte e desaparecimento forçado (191 mortos, 210 desaparecidos e 33 desaparecidos com paradeiro posteriormente localizado) entre o período de 1946-1985 e relata a vida e as circunstâncias da morte das vítimas dos crimes cometidos pelo Estado e pelas forças armadas em violação sistemática aos direitos humanos como política de Estado.

Avaliação da CNV
Embora louvável por revelar publicamente o contexto histórico, a estrutura do Estado ditatorial (inclusive com organograma), a institucionalização da tortura, as vítimas e os autores das violações e ouvir mais de 1.000 testemunhas e promover ou apoiar 80 audiências públicas, o trabalho muito pouco teve de original. A escassez de documentos novos trazidos pelo Ministério da Defesa (que muitas vezes respondia que não tinha informações ou mandava informações já conhecidas) e a pouca disposição para colaborar dos militares contribuíram muito para essa limitação. Essa limitação revela outro fato mais grave: a CNV é uma Comissão da Verdade da impunidade já que limitada pelo tempo (a demora de quase 30 anos) e condicionada à impunidade reconhecida pela Justiça (em face da lei de anistia aprovada na ditadura e declarada constitucional pelo STF).

As forças armadas até hoje se recusam a reconhecer oficialmente as violações aos direitos humanos. A CNV é o mais amplo reconhecimento público e oficial das violações estatais contra os direitos humanos no Brasil, até então apenas analisados parcialmente pelo Estado ou por particulares. Alguns Militares, contudo, não aceitam a CNV e a criticam severamente, inclusive em depoimentos perante a Comissão, como ocorreu com os coronéis reformado Ustra, Moézia de Lima e o general reformado Álvara Ribeiro. Alguns vão ainda mais longe ao denominar o golpe de 1964 de revolução, exigir que a CNV investigue novamente os crimes dos opositores do regime (ver críticas do Clube Militar) e até tentar impedir, judicialmente, a instauração da CNV e a divulgação do relatório final. Nem mesmo o fato de os três últimos presidentes do Brasil (Fernando Henrique Cardoso, 1995-2002, Lula, 2003-2010, e Dilma 2011-2018, essa inclusive presa e torturada) terem sido vítimas da ditadura militar foi suficiente para superar plenamente o passado.

O relatório da CNV contribui, tardiamente, para a superação do passado autoritário e para o direito à verdade em um foro (político) mais apropriado para essa revelação do que um processo penal. A CNV também atua politicamente para pressionar o sistema judicial, especialmente o STF, para que os militares suspeitos dos crimes sejam investigados, processados e punidos, ao concluir que houve: [1] Comprovação das graves violações de direitos humanos; [2] Comprovação do caráter generalizado e sistemático das graves violações de direitos humanos [3] Caracterização da ocorrência de crimes contra a humanidade; [4] Persistência do quadro de graves violações de direitos humanos. É contraditório, contudo, que medidas tradicionais na Justiça de Transição, como lustrações, não tenham sido expressamente incluídas e que aposentados e pensionistas que praticaram graves violações contra os direitos humanos continuem recebendo proventos do Estado.

A CNV vai mais longe e nomeia individualmente os 377 (dos quais 196 estão vivos com idade média de 82 anos) suspeitos de crimes (denominados erroneamente de autores, porque o reconhecimento como autores de crimes dependeria de um julgamento com trânsito em julgado em processo penal, conforme o art. 5º, LVII da CF) contra os direitos humanos (definição à p. 843), inclusive os 8 ex-Presidentes da República  da ditadura (Castelo Branco, 64-67, Costa e Silva, 67-69, membros da junta militar que governou de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969, Lyra Tavares, Rademaker Grunelwald e Souza e Mello, Medici 69-74, Geisel, 74-79 e Figueiredo 79-85), todos mortos, e Ministros das Marinha, do Exército e da Aeronáutica. No relatório individual de um dos membros, dedicado aos Civis que colaboraram com Regime Militar (no volume 2), empresas e empresários que colaboraram com o regime militar também são nomeados. Nomear e envergonhar é um primeiro passo, embora tímido. A recomendação para que fosse revista a lei de anistia e responsabilizados penalmente os autores em consonância com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH) no caso Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil ainda encontra obstáculo no STF, que reconheceu a constitucionalidade da lei da anistia. O esforço empreendido pelo Ministério Público Federal e por alguns juízes federais para processar o crime dos militares será limitado e inócuo se não houver uma mudança do STF em sua jurisprudência. Recente resolução que supervisiona o cumprimento da sentença CtIDH reconhece que o acordão internacional não vem sendo devidamente cumprido em relação as obrigações internacionais decorrentes da CADH no que tange à responsabilidade penal dos autores de graves violações, embora o seja em outros aspectos, inclusive com o trabalho da própria CNV (§§ 131-134). A recomendação da CNV é importante enquanto instrumento para nomear e envergonhar os responsáveis (name and shame), uma medida tradicional no marco da justiça de transição, mas a mudança depende mais nos votos dos juízes do STF que substituíram os que se aposentaram ou dos que mudarem de opinião e da superação de importantes entraves jurídicos penais e processuais penais contrários (p. ex. anistia, legalidade, prescrição) do que de pressão política sobre a Corte.

A CNV propõe-se a fazer um legado mais amplo ao estabelecer recomendações que pretendem mudar a prática de violações aos direitos humanos. Para tanto, ela fez, ainda, três tipos de recomendações entre as 29 recomendadas: A) 17 Medidas institucionais B) 8 Reformas constitucionais e legais C) 4 Medidas de seguimento das ações e recomendações da CNV. Há ainda recomendações específicas no volume 2 do relatório, onde existem capítulos temáticos sobre assuntos como perseguição a religiosos e a indígenas.  Várias objetivam responsabilizar institucionalmente as forças armadas (R1) e os seus agentes autores de ilícitos civis, administrativos e especialmente os criminais (R2 e 3). Algumas recomendações não têm relação direta com a ditadura, embora com o respeito aos direitos humanos, e exigiriam uma ampla reforma jurídica e institucional, dentre elas a desmilitarização da Polícia Militar (R 20, sobre isso ver Declaração de Göttingen sobre Polícia e Investigação no Brasil), a reforma do sistema penitenciário (R12 e 13), o fortalecimento da defensoria pública (R 11) e a criação da audiência de custódia (R25). Outras recomendações são excessivamente vagas e correm o risco de se tornar letra morta, como a “criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura” (R8) e o “apoio à instituição e ao funcionamento de órgão de proteção e promoção dos direitos humanos” (R17).

Apesar de sua importância, é questionável se é papel da CNV recomendar reformas pontuais na legislação penal e processual penal e no sistema judicial. As reformas propostas foram, contudo, incompletas e escolhidas arbitrariamente já que outras igualmente ou mais importantes foram deixadas de lado. Não há referência, por exemplo, a reforma do Poder Judiciário e do Ministério Público para a proteção mais efetiva dos direitos humanos. Faltou ainda tratar, e. g., do controle externo da atividade policial, do aprimoramento do inquérito policial (ver sobre isso Declaração de Göttingen) e do problema da lentidão no julgamento dos processos.

Conclusão
No cômputo geral, o trabalho da CNV é louvável e contribui para mudanças importantes no pensamento autoritário no Brasil e para o fortalecimento das instituições democráticas. O fato de ter sido recomendada a proibição da comemoração do golpe de 1964 em eventos oficiais (R4) demonstra o quanto ainda é resistente esse pensamento. O relatório da CNV é um duro golpe para os saudosistas da ditadura e os defensores da tortura. A responsabilização penal e administrativa dos militares seria ainda mais. Verdade tardia ainda assim é verdade. Justiça tardia pode ser menos justa, mas é melhor uma justiça tardia que nenhuma justiça. 

*] José Carlos Dias, advogado, ex-ministro da justiça (1999-2000), José Paulo Cavalcanti Filho, advogado, Maria Rita Kehl, psicanalista, Paulo Sérgio Pinheiro, Professor de Ciência Política na USP, ex-secretário de Direitos Humanos (2001-2003), Pedro Dallari, Professor de Direito Internacional da USP, coordenador da Comissão desde novembro de 2013 até dezembro de 2014, assumiu a CNV em 2013 em substituição à Claudio Fonteles, Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, Gilson Dipp, ex-Ministro do STJ, membro afastado por motivo de saúde, Claudio Fonteles, ex-Procurador Geral da República (2003-2005), renunciou à CNV em 17 de junho de 2013.

 

 

Autores

  • Brave

    é Professor de Direito Penal, Processo Penal, Direito Comparado e Direito Penal Internacional na Georg-August Universität Göttingen, Alemanha. Juiz do Tribunal estadual de Göttingen (Landgericht) e Preside o CEDPAL - Centro de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Latinoamericano, do Instituto de Ciências Criminais da Facultade de Direito da Universidade Georg-August de Göttingen, e tem por objetivo promover a investigação de ciências penais e criminológicas na América Latina e fomentar o ensino e a capacitação nestas áreas.

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    é doutorando pela universidade de Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2000) e com Mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (2005), atua, como profissional e acadêmico, principalmente nos seguintes temas: direitos fundamentais, direito constitucional, direito penal e processual penal, improbidade administrativa e direito da infância e da juventude, teoria do direito e filosofia do direito.

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