Ciclo completo

Não há sistema único de segurança sem compartilhamento de responsabilidades

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20 de janeiro de 2015, 13h01

[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta terça-feira (20/1)]

As mazelas da violência, os índices de criminalidade, associados à baixa elucidação dos delitos, e a recorrente letalidade associada ao trabalho das polícias tornaram-se cantochão entoado em todo o território nacional, e de há muito, sempre para denunciar que o Estado brasileiro tem sido incapaz de garantir a prestação do essencial serviço de segurança pública. E agora se fala que o governo federal vai patrocinar proposta de emenda relativa à segurança pública na Constituição da República.

O constituinte acertou no tratamento de alguns temas, como ocorreu com a saúde e a assistência social. Mas no capítulo da segurança pública foi tímido, não inovou e as tentativas que se sucederam foram ainda piores, como a rejeitada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que pretendeu a inconstitucional reserva de mercado do poder investigatório. Na ocasião denunciávamos não ser essa a reforma necessária; a PEC era inconstitucional e a sua impertinência fica a cada dia mais evidente.

Os debates legislativos desde 1988 ficam restritos aos interesses das corporações ou a propostas de mudança da legislação penal ou processual, que também não serão capazes de alterar o modo de atenção do Estado. Teremos mais ou menos crimes previstos e todos com grande possibilidade de não serem elucidados, seguindo o Estado brasileiro sem a definição de uma política nacional para o enfrentamento da criminalidade.

Há contribuições acadêmicas e práticas que devem servir de suporte para a iniciativa do governo federal, algumas já sugeridas no passado, e há aspectos que necessitam ser considerados: a segurança como serviço público, a universalidade desse serviço, a repartição de competências entre todos e a consequente criação de um sistema único. Tudo para que ocorra a evolução do conceito de segurança pública. Foi o que se deu no capítulo da educação a partir de reformas debatidas sob o pálio da convergência política e que aprimoraram o tratamento da matéria.

No campo da saúde pública, da assistência social e da educação, a definição da universalização como pressuposto para a regulação e prestação dos serviços, fixando a garantia de acesso universal (a quem deles necessitar), além do regime de compartilhamento de responsabilidades, exigiu a atuação cooperada e conjugada e o Estado avançou, com resultados mais favoráveis.

Segurança pública não é mais do que dever próprio do Estado e não é menos do que direito fundamental comum a qualquer ser vivente. Em tempos de normalidade democrática, o dever do Estado radica na prevenção e repressão dos delitos, fundado no respeito aos direitos humanos, e obriga à efetiva aplicação da lei penal para todos. Atua pela ótica da prevenção, afugenta preconceitos e não discrimina aqueles que merecem atenção. Tem sempre a função pacificadora, mas necessita ser capaz de efetivamente prevenir e reprimir a prática de delitos. É essencialmente mediadora de conflitos e deve ser eficaz a ponto de reduzir o apelo aos recursos bélicos. Valoriza as instituições e os seus profissionais, qualificando os seus serviços, elevando a sensação de segurança.

O enunciado da universalização não é retórico, mas é o princípio regente que garante a todos o acesso às ações e aos serviços públicos, uniformizando a atenção do Estado. E dele resultará a obrigatoriedade de criação de um sistema único de segurança e do ciclo completo de segurança e justiça penal, a reger por completo a atuação das polícias e do setor privado (em regime complementar) — da prevenção e repressão à elucidação dos delitos.

Todavia não há sistema único sem o compartilhamento de responsabilidades — na atualidade, aos Estados resta o improvável trabalho, os municípios pouco podem realizar e a União é a mais distante da realidade cotidiana, mera coadjuvante. O sistema único não obriga a junção ou extinção de polícias (Civil, Federal, Militar) nem a subtração do controle pelos Estados-membros e suas instituições, porque é possível a conservação das organizações, especialidades e carreiras, impondo-se, por lei nacional, as diretrizes da política nacional, das formas de organização, de gestão e de custeio para que todos tenham meios para cumprir seus deveres.

O sistema único (que já foi debatido) deve enunciar os pressupostos do ciclo completo de segurança e justiça penal: da compreensão do fenômeno social da criminalidade, passando pela formação de agentes, pela obrigatoriedade de bancos de dados decifráveis a induzir o planejamento, até os meios de controle social. Ciclo completo exige que o Estado seja capaz de prevenir e de apurar os delitos, atuando para a real aplicação da lei penal, sem patrocinar experiências que desprezem, por exemplo, a atuação conjugada com outros atores (Ministério Público, Defensoria, polícias, etc.). Na regência deve figurar a lógica de que o dever do Estado é o de atuar com capacidade técnica — para prevenir e apurar os delitos, reprimindo-os — e sempre a partir do respeito aos direitos fundamentais.

Somente pela via da inovação o Estado conseguirá, de fato, induzir políticas capazes de refrear a criminalidade a índices razoáveis. A experiência paulista de aproximação com a União, com o Ministério Público e outras instituições na criação da agência de atuação integrada, que foi pautada pelo diálogo prévio e não desprezou atribuições próprias, como os centros de comando criados por ocasião da Copa do Mundo de 2014, já demonstrou ser possível (e desejado pelos profissionais) a atuação cooperada. E os resultados só confirmam a possibilidade de um sistema nacional a inspirar o tratamento uniforme.

Resta levar adiante o debate, resistindo à manutenção do status quo ou ao desejo de imposição de vontades próprias, não raro idealizadas com elevado grau de amadorismo.

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