Interesse coletivo

A desistência dos recursos especiais repetitivos e os julgamentos em tese

Autor

  • André Macedo de Oliveira

    é sócio do BMA - Barbosa Müssnich Aragão em Brasília. Doutor e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Professor adjunto da Faculdade de Direito da UnB.

19 de janeiro de 2015, 5h28

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão de ordem nos recursos especiais 1.058.114/RS e 1.063.343/RS, julgados em 17 de dezembro de 2008 (DJe 4.6.2009), colocou em discussão a possibilidade de formulação de pedido de desistência de recurso submetido ao rito dos recursos especiais repetitivos. Questionou-se o interesse entre o pedido de desistência recursal, consubstanciado no artigo 501 do CPC, e o interesse coletivo, que caracteriza o julgamento dos processos submetidos ao disposto no artigo 543-C do CPC, conforme redação dada pela lei 11.672/2008.

Destacou a ministra Nancy Andrighi, relatora da questão de ordem no STJ, que se está diante da sistemática da coletivização, “cuja orientação repercutirá tanto no plano individual, resolvendo a controvérsia inter partes, quanto na esfera coletiva, norteando o julgamento dos múltiplos recursos que discutam idêntica questão de direito”.[1] Caso atendido o pedido da parte no sentido de desistência do recurso, será atendido o interesse individual do recorrente e não o da coletividade, ou seja, de todos os demais litigantes em processos com idêntica questão de direito. Para a ministra Nancy, “a todo recorrente é dado o direito de dispor de seu interesse recursal, jamais do interesse coletivo”, por isso, propõe a homologação do pedido de desistência sem prejuízo da formulação de uma orientação quanto à questão idêntica de direito existente em múltiplos recursos.  Todavia, reviu a ministra Nancy o seu posicionamento dada a importância do julgamento dos repetitivos no STJ e, sobretudo, para os jurisdicionados.

Prosseguindo no julgamento da questão de ordem, a ministra Laurita Vaz, acompanhando a ministra Nancy, relatora, destacou o interesse coletivo, público, que deve preponderar sobre o interesse particular. Na mesma linha o ministro Luiz Fux votou para que fosse julgada a questão de direito do recurso especial e, “após o julgamento do incidente do recurso repetitivo”, fosse deferido o pedido de desistência para o caso concreto. O ministro Nilson Naves, na ocasião, lembrou aos ministros a alta missão do Superior Tribunal de Justiça, que “tudo pode na condição de último intérprete infraconstitucional – não somos finais porque somos certos, mas somos certos porque somos finais”. Para o ministro Ari Pargendler, “o interesse público ditado pela necessidade de uma pronta solução para essa causa”, não pode ser “obstado pelo interesse da parte”. Aldir Passarinho Júnior ponderou que o interesse existente na lei 11.672/2008 é o interesse público, ou seja, julga-se a tese, independente do interesse privado.[2]

A tese vencida, levantada pelo ministro João Otávio de Noronha sustentava a prevalência do interesse da parte em desistir do recurso, respaldado no artigo 501 do Código de Processo Civil que autoriza à parte desistir do recurso a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido. Entretanto, merecem destaque as ponderações feitas nos votos dos ministros Aldir Passarinho Júnior, Francisco Falcão, Eliana Calmon e Laurita Vaz, todos no sentido de se julgar o mérito e depois homologar a desistência do recurso, de modo a conciliar o interesse público do recurso especial repetitivo e o interesse particular.[3]

Em novembro de 2011, a 1ª Seção do STJ decidiu que os recursos especiais repetitivos possuem um “grau mínimo de objetividade” que os distancia do caso concreto para “firmar suportes fáticos hipotéticos (teses) que permitam abarcar situações semelhantes”. Esses parâmetros fixados, para o STJ, devem ser objetivos e não subjetivos, “muito embora tenha como ponto de partida sempre um caso concreto”.[4] Destacou o relator, em seu voto, que essa objetividade mínima foi constatada em julgamento da Corte Especial, em dezembro de 2008, no indeferimento do pedido de desistência de recurso ao fundamento da prevalência do interesse da “coletividade sobre o interesse individual do recorrente” nas causas submetidas ao regime do art. 543-C, do Código de Processo Civil.

“[…] O próprio art. 543-C, do CPC, invoca ‘idêntica questão de direito’ e não de fato, pois é a variação das circunstâncias fáticas que permitirá o enquadramento da situação concreta na regra ou na exceção componentes de uma só tese.

Essa objetividade mínima já foi constatada por ocasião do julgamento de Questão de Ordem no recurso representativo da controvérsia REsp. n. 1.063.343-RS (Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17.12.2008) e do REsp. n. 1.111.148 – SP (Primeira Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 24.02.2010) onde foram indeferidos pedidos de desistência ao fundamento de que subsiste a prevalência do interesse da coletividade sobre o interesse individual do recorrente quando em julgamento de causas submetidas ao rito do art. 543-C, do CPC.

Também em razão dessa objetividade mínima, a Primeira Seção do STJ, no julgamento do REsp. n. 1.149.424 – BA (Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 28.04.2010), muito embora tenha reconhecido a ilegitimidade ativa da recorrente, apreciou o mérito do recurso representativo da controvérsia para fixar a tese aplicável por considerar que: ‘não é o reconhecimento, de ofício, da ausência de uma das condições da ação que impedirá a análise da matéria, tudo em nome da celeridade processual e da efetividade da prestação jurisdicional’.”[5]

Em maio de 2012, a ministra Nancy Andrighi, condutora da tese impeditiva da desistência, em julgamento da 3ª Turma do STJ, ao apreciar o REsp 1.308.830/RS, deliberou no sentido de não homologar pedido de desistência formulado pelo Google Brasil Internet em recurso especial, ampliando o entendimento da Corte Especial pela inadmissão de pedido de desistência formulado em sede de recurso especial repetitivo (art. 543-C do CPC). Segundo a ministra Nancy Andrighi, “numa reflexão mais detida sobre o tema”, vê-se que a premissa na realidade é válida de forma indistinta para o julgamento de todos os recursos especiais. Deve prevalecer, como regra, o direito da parte desistir do recurso, “mas verificada a existência de relevante interesse público, pode o Relator, mediante decisão fundamentada, promover o julgamento do recurso especial para possibilitar a apreciação da respectiva questão de direito, sem prejuízo de, ao final, conforme o caso, considerar prejudicada a sua aplicação à hipótese específica dos autos”.[6]

Recentemente, a 3ª Turma revisitou o tema, a partir de provocação do ministro João Otávio de Noronha, que havia sido vencido na Corte Especial na referida questão de ordem no REsp 1.063.343/RS (DJe 4.6.2009). O debate foi travado no julgamento do recurso especial 1.370.698/SP. A 3ª Turma deferiu a homologação do pedido de desistência, nos termos do voto do ministro João Otávio de Noronha, acompanhado pelos ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Maria Isabel Gallotti (convocada da 4ª Turma para desempatar o julgamento, em razão de impedimento do ministro Sidnei Beneti), no sentido do STJ julgar a tese e depois homologar a desistência do recurso no caso específico. O ministro Paulo de Tarso Sanseverino votou com a ,inistra Nancy Andrighi, que advoga tese contrária à homologação da desistência. Para a ministra, “o julgamento dos recursos submetidos ao STJ ultrapassa o interesse individual das partes, alcançando toda a coletividade para a qual suas decisões irradiam efeitos”.

A exegese do artigo 501 do CPC, segundo a ministra, “deve ser feita à luz da realidade surgida após a criação do STJ, levando-se em consideração o seu papel, que transcende o de ser simplesmente a última palavra em âmbito infraconstitucional, sobressaindo o dever de fixar teses de direito que servirão de referência para as instâncias ordinárias de todo o país. A função ‘nomofilática’ do STJ impõe-lhe o dever de não se limitar à mera condição de julgador de recurso como mais uma simples instância recursal”.[7]

Alinhado o entendimento do STJ, entende-se pela possibilidade de se julgar a ‘tese’ do recurso para, em seguida, homologar eventual pedido de desistência do recurso especial repetitivo, que é permeado pelo interesse público, ou seja, perpassa o interesse das partes. Com a homologação do pedido de desistência, atende-se à satisfação das partes (interesse privado)[8] e ao interesse público, possibilitando a apreciação da questão de direito (tese).


[1] QO no REsp 1.063.343/RS, rel. Min. Nancy Andrighi. Banco Volkswagen S/A vs. Luciana Maluche. Corte Especial, DJe 4.6.2009, pág. 7.

[2] QO no REsp 1.063.343/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJ 4.6.2009. Vencidos os Ministros João Otávio de Noronha, e, em parte, os Ministros Aldir Passarinho Junior, Eliana Calmon, Francisco Falcão e Laurita Vaz.

[3] DJe 4.6.2009, Corte Especial.

[4] Cf. EDREsp 1.213.082/PR, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, DJe 18.11.2011: “1) Não se pode olvidar que os recursos representativos da controvérsia possuem um dado grau mínimo de objetividade que os distancia em certa medida do caso concreto para firmar suportes fáticos hipotéticos (teses) que permitam abarcar situações semelhantes. A fixação de parâmetros de julgamento deve ser objetiva e não subjetiva, muito embora tenha como ponto de partida sempre um caso concreto. 2) A técnica de julgamento do recurso representativo da controvérsia não trata apenas do exame da admissibilidade do recurso, da amplitude de seu efeito devolutivo e da solução ao caso concreto, mas também de firmar objetivamente a tese vencedora de modo que sua aplicação seja possível aos demais processos sobrestados. Nessa toada, separar as hipóteses que constituem regra, das hipóteses que constituem exceção a uma dada tese se torna obstáculo intransponível ao exame dos recursos sobrestados, já que o usual é a parte sustentar o enquadramento de sua situação na regra ou na exceção, conforme sua conveniência.” Cf ainda o voto do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do AgReg em SE 5.026, Pleno e no julgamento do RE 388830/RJ, 2ª. T, j. 14.2.2006, rel. Min. Gilmar Mendes: “(…), é possível que o Tribunal analise a matéria com base em fundamento diverso daquele sustentado. A proposta aqui desenvolvida parece consultar a tendência de não estrita subjetivação ou de maior objetivação do recurso extraordinário, que deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva”.

[5] Merece destaque ainda: “[…] Sendo assim, a técnica de julgamento do recurso representativo da controvérsia não trata apenas do exame da admissibilidade do recurso, da amplitude de seu efeito devolutivo e da solução ao caso concreto, mas também de firmar objetivamente a tese vencedora de modo que sua aplicação seja possível aos demais processos sobrestados. Imaginar de forma diversa significaria sub utilizar o importante instrumento processual que foi criado justamente para multiplicar a velocidade de aplicação de uma tese jurídica sedimentada no Superior Tribunal de Justiça – STJ, imprimindo celeridade na prestação jurisdicional.”

[6] REsp n.º 1.308.830/RS, rel. Ministra Nancy Andrighi, Google Brasil Internet Ltda. vs Eduardo Bresolin. 3ª Turma, DJe 19.6.2012.

[7] REsp n.º 1.370.698/SP, Regina Célia Ribeiro Simões Apolinário vs Companhia de Bebidas das Américas – AMBEV, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 21.11.2013 e publicado DJe 1.4.2014.

[8] A passagem do voto do Ministro Luis Felipe Salomão no recurso especial 1.067.237/SP é oportuna: “Considerando-se que tanto o recurso especial como o recurso extraordinário (stricto sensu) são espécies do mesmo gênero de recursos (extraordinários latu sensu), não há razão, lógica ou jurídica, sobretudo após o advento da Lei nº 11.672 de 2008, para não se vislumbrar, em recursos especiais selecionados para o julgamento conforme o novel diploma, essa "dupla função", a de tutelar o direito infraconstitucional em tese e, apenas como via de conseqüência, as singularidades subjacentes. Essa é a genuína função das Cortes Superiores, sejam elas de jurisdição constitucional ou infraconstitucional. (…) A função precípua do STJ é a de ser o guardião do próprio Direito Federal. Portanto, desde que selecionado o recurso especial pelo relator, após observado o juízo de relevância peculiar ao procedimento, é de clareza meridiana a ocorrência de um "desprendimento" da controvérsia processual, abstratamente analisada, dos direitos subjetivos controvertidos no caso concreto.Tanto é verdade, que a simples seleção do recurso irradia efeitos a outros recursos que possuam ‘idêntica questão de direito’. Se é assim, tanto a desistência desmotivada do recurso, quanto a realização de acordo entre as partes, ou mesmo a desistência da ação principal, quando se tratar de agravo de instrumento, qualquer uma delas realizadas posteriormente à "seleção" do recurso especial, não têm a virtualidade de afastar a principal finalidade desse tipo de procedimento, que é a tutela do direito infraconstitucional objetivo, esse já desprendido do direito subjetivo dos litigantes”. REsp n.º 1.067.237/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, Alexandre Marinho de Paula vs. Caixa Econômica Federal – CEF, DJe 23.9.2009.

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    é sócio do Barbosa, Müssnich & Aragão (BM&A) em Brasília. Doutor e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Processual Civil do UniCEUB.

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