Sem anistia

Itália julga acusados de cometer crimes durante ditaduras latino-americanas

Autor

  • Samanta Midori Takahashi

    é mestranda em Direito Romano e Sistemas Jurídicos Contemporâneos na Universidade de São Paulo e doutoranda em Direito Constitucional e Direito Público em geral na Universidade de Roma La Sapienza.

17 de janeiro de 2015, 7h33

Conhecida como "Operação Condor", a aliança estabelecida nos anos 1970 entre seis países sul-americanos (inicialmente Chile, Paraguai e Uruguai, com posterior adesão de Brasil e Bolívia) tinha como objetivo reprimir os opositores aos regimes instituídos e, para isso, contava com a participação do serviço de inteligência estadunidense.

Em 1992, no Paraguai, foram descobertos pelo advogado Martin Almada (torturado pela ditadura de Stroessner) cerca de 700 mil documentos, posteriormente denominados de "arquivo do terror"[1], que revelaram importantes aspectos sobre a operação. O arquivo foi objeto de análise pela Comissão da Verdade brasileira, sendo também utilizado nas investigações ocorridas por mais de uma década em solo italiano.

Calcula-se que, entre 1973 e 1980, ocorreram cerca de 400 mil prisões, 30 mil assassinatos e 50 mil desaparecimentos como resultado das ferozes opressões ocorridas nos seis países.  Entre as vítimas figuram 23 cidadãos italianos (incluindo duas mulheres grávidas), alguns deles presos durante a tentativa de fuga para a Itália.

A averiguação teve início em 1998, após a imputação realizada por familiares de italianos desaparecidos entre 1973 e 1978. A investigação, encerrada há três anos, elencava inicialmente 140 envolvidos (dos quais 59 argentinos, 11 brasileiros e 06 paraguaios). Entre os brasileiros listados estavam o ex-presidente Ernesto Geisel e seu sucessor João Figueiredo, além de dois generais e um delegado.

Em razão de problemas burocráticos e do falecimento de envolvidos, a imputação realizada pelo Ministério Público italiano em 2013 prosseguiu com relação a apenas 35 deles (2 bolivianos, 12 chilenos, 4 peruanos e 17 uruguaios, todos com idade entre 64 e 92 anos).  Após mais de uma década de apuração, o documento final comporta 179 mil páginas sobre as atrocidades cometidas no período.

Em outubro de 2014, durante a audiência preliminar realizada em Roma, o magistrado Alessandro Arturi acolheu as pretensões formuladas pelo promotor Giancarlo Capaldo. Na ocasião, foram excluídos do processo três dos imputados, falecidos durante as apurações (entre eles o general chileno Odlanier Mena Salinas, que cometeu suicídio em 2013 durante uma permissão de saída do presídio onde estava detido desde 2009).

Outros nove pretendiam a exclusão em razão de terem sido processados e definitivamente condenados nos países de origem, o que não convenceu o ministro da Justiça Andrea Orlando. Nos termos do artigo 11 do Código Penal italiano, ele procedeu à requisição de novo julgamento na Itália. Segundo a sua decisão, "numerosas pessoas, mesmo pelo simples fato de serem suspeitas de militar no ‘partido por la victoria del pueblo’ ou de terem com os militantes uma relação de parentesco ou amizade eram presas sem nenhum procedimento proveniente de uma autoridade legítima, submetidas a detenção ilegal e tortura e depois assassinados nos modos mais atrozes".

Neste momento figuram no processo 21 réus, de nacionalidade boliviana, peruana, chilena e uruguaia. Entre eles estão o ex-presidente da Bolívia Luis García Meza Tejada e seu ministro do Interior, general Luis Arce Gómez; o general Francisco Morales Belmudesh, ex-presidente do Peru, e o ex-premiê peruano Pedro Richter Prada. Entre os cinco uruguaios figuram o ex-ditador Gregorio Conrado Álvarez Armelino e o ex-ministro das Relações Exteriores Juan Carlo Blanco e, entre os chilenos, Juan Manuel Contreras, ex-dirigente do serviço secreto de Santiago (DINA) e mentor da Operação Condor, e Sergio Arellano Stark, escolhido por Pinochet para liderar a "caravana da morte".

São acusados de homicídio qualificado, sequestro e chacina ("strage"). Foram excluídos os crimes de desaparecimento forçado e tortura, pois, apesar de serem previstos no Estatuto de Roma (responsável pela criação do Tribunal Penal Internacional, do qual a Itália é signatária) não foram ainda tipificados no ordenamento. Daí por que alguns juristas veem nesta uma ótima oportunidade para efetuar as adequações necessárias no Código Penal italiano[2].

A audiência inaugural está designada para o dia 12 de fevereiro e será realizada no âmbito da Corte d’assise de Roma.

As primeiras iniciativas nessa direção foram realizadas pelo juiz espanhol Baltasar Garzón que em 1998 decretou a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet em razão do assassinato e morte de cidadãos espanhóis durante a ditadura chilena.

O fato de o Uruguai ser designado no litígio como parte prejudicada produz relevante perspectiva. Segundo declaração realizada pelo advogado Fabio Galiani, seu representante: "ser reconhecido como parte prejudicada significa delinear claramente a fronteira existente entre a responsabilidade daqueles que então desenvolviam ilegitimamente funções públicas em nome do Estado e a comunidade civil que foi vítima. A participação ativa do Uruguai é útil porque lembra aos cidadãos que o Estado são eles, fator essencial em um momento em que, um pouco em todo o mundo, se assiste a uma crescente insatisfação com relação à ‘res publica’"

O julgamento italiano, tal como outras iniciativas realizadas nos últimos anos com o objetivo de aclarar o obscuro período das ditaduras latino-americanas, assevera acima de tudo que, para a história, não haverá anistia.

 


[1] Os arquivos foram publicados em 2009, no governo de Fernando Lugo, e estão disponíveis para consulta através do site http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB239c/index.htm

[2] No Brasil está em trâmite o Projeto de Lei 6240/2013, que acrescenta o artigo 149-A ao Código Penal, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoa. Atualmente na Câmara dos Deputados, pode ser acompanhado através do link http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=589982

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