Ação integrada

Há uma deficiência grave na garantia do direito à vida

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17 de janeiro de 2015, 11h42

[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo deste sábado (17/1)]

O primeiro direito reconhecido e proclamado na Constituição dita cidadã, de 1988, é o direito à vida, que no texto vem antes da liberdade, da segurança e da propriedade. Ora, o direito à vida tem, no mínimo dois lados: além do dever de não matar, que se impõe a todos (artigo 121 do Código Penal), o Estado assume a obrigação de garantir a segurança, de modo a que a vida das pessoas não seja exposta a perigo permanente e sistemático.

A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 já afirmava que a garantia dos direitos exige uma força pública, instituída para vantagem de todos, e não para utilidade particular. E transparência: a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.

As estatísticas estão mostrando um aumento grande no número de latrocínios (roubos seguidos de morte), de mortes no trânsito e de mortes no curso das ações policiais. Isso sem falar nos inadmissíveis homicídios e agressões a jornalistas. Não é difícil concluir, portanto, que há uma deficiência grave na garantia do direito à vida e que a força pública — polícia, no vocabulário moderno — não está dando conta da tarefa de garantir o mais essencial dos direitos.

A impunidade generalizada, talvez o maior fator de estímulo à violência, decorre da incapacidade do Estado, que não consegue imprimir a eficácia necessária aos serviços de prevenção, investigação, julgamento em tempo hábil e, ainda mais, administração penitenciária.

No futuro, vão olhar para o modo como lidamos com as prisões com o mesmo horror com que vemos as práticas do Brasil escravagista. Mesmo os que se mostram indignados com Guantánamo não se têm preocupado com Pedrinhas ou com os terríveis centros de detenção ditos provisórios, e ainda reclamam da Fundação Casa, que não seria suficientemente repressiva.

Meras trocas de secretários ou ministros não são suficientes para enfrentar a questão. Ao contrário, muitas vezes uma linha mais enérgica de ação policial acaba provocando um aumento inútil e desnecessário de confrontos e mortes, sem nenhuma contrapartida de redução da criminalidade violenta. Até para lidar com manifestações a oscilação dos governos acabou se traduzindo numa conduta inepta das polícias, ora brutais, agredindo e ferindo até repórteres, ora completamente omissas, assistindo impassíveis a saques e quebra-quebras.

A melhoria das condições de segurança, com mais garantia para a vida das pessoas, depende de uma ação integrada que envolve aspectos jurídicos, mas também aspectos sociais: melhor integração e circulação nas metrópoles, onde as pessoas não se conhecem, não se reconhecem e acabam não se respeitando; ações educativas e preventivas; mais atenção à juventude emergente e desiludida; ação cultural ampliada e melhor distribuição dos serviços públicos básicos, como saneamento, saúde e, com destaque, polícia educada e Justiça mais rápida e eficaz.

Vão dizer que é caro, que o investimento é muito alto, mas a vida das pessoas não tem preço. Não custa lembrar também que o exemplo que vem "de cima", com as práticas dos governantes que os jornais vêm retratando ultimamente, não tem sido muito edificante em termos de moralidade e eficiência. Sem um clima de respeito ao interesse público, ao bem-estar de todos, é difícil convencer as pessoas de que as leis são para valer e as coisas podem melhorar.

Quando Júlio Cortázar publicou em 1969 seu conto A Autoestrada do Sul, com pessoas presas por dias e dias em imenso congestionamento na volta a Paris depois de um feriado, a situação parecia surrealista. Em 2014 um paciente morreu por não ter conseguido chegar a um hospital na Avenida Paulista, congestionada durante manifestações. Ir e vir do trabalho, hoje, é um pesadelo e um risco em muitas cidades brasileiras. Muitos não querem mais ir a restaurantes com medo do arrastão. Alguns chegaram a levar 12 horas para chegar ao litoral, percurso em que até uma equipe de reportagem foi assaltada.

O Anjo Exterminador, filme de Luis Buñuel, mostra a aristocracia paralisada nas salas de uma mansão, após elegante jantar, com as convenções sociais sendo esquecidas e os instintos mais primitivos vindo à tona. Não é um pouco isso o que está acontecendo conosco?

2014 foi o ano em que os Estados Unidos confessaram o uso amplo da tortura no alegado combate ao terrorismo e, pior, as estatísticas mostram que a maioria dos americanos acha legítima essa barbárie. Após o ataque a uma escola em que mais de cem crianças foram cruelmente assassinadas, o governo do Afeganistão anunciou o retorno da pena de morte, notícia possivelmente recebida com alegria, dada a comoção provocada pela estúpida matança.

[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo deste sábado (17/1)]

Não é só a vida, portanto: os direitos individuais estão em baixa. A defesa da vida, da liberdade, e da própria democracia que as assegura, acaba dependendo da coragem de uma imprensa livre e de um Judiciário independente. É pelas investigações e denúncias da imprensa que as falhas, os "malfeitos", os grandes escândalos são descobertos, analisados e trazidos ao conhecimento de todos, evitando que sejam empurrados para baixo dos tapetes dos palácios.

As soluções dependem também do Judiciário. Temos visto um habeas corpus levar quatro anos para ser apreciado, transformando o mais belo remédio constitucional numa pilhéria. Ainda por cima, tenta-se restringir mais seu âmbito, agravando o problema da liberdade sem nenhum resultado positivo.

O clima dos direitos individuais no mundo não é favorável, mas o Brasil tem uma tradição de liberdade que precisa ser preservada e ampliada. E não é tarefa só de governo, as coisas só vão melhorar se assumirmos essa tarefa diária de vigilância, denúncia e reivindicação.

Nossa vida e nossa liberdade, indissociavelmente ligadas, são muito preciosas para serem deixadas na mão dos que nos governam.

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  • Brave

    é advogado criminal. Foi Secretário da Justiça e da Segurança Pública no Governo Montoro, presidiu o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e foi Juiz efetivo do TRE-SP.

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