Diário de Classe

Por que nos jogos processuais não
existe a natureza das coisas?

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17 de janeiro de 2015, 7h01

Spacca
É comum nos manuais se buscar, compulsivamente, a natureza das coisas. Em vão. Mesmo assim, as proposições sobre a natureza das coisas habitam os livros jurídicos e contribuem, no seu cúmulo, para o caos da hermenêutica jurídica inautêntica. Por isso, na tradição desta coluna Diário de Classe, pretendo enunciar algo sobre os jogos de linguagem de Wittegenstein. Pode ser interessante para se compreender as coordenadas paralelas da hermenêutica jurídica (Hermenêutica Filosófica).

Precisa-se recorrer ao ‘Tratactus Lógico-Philosophicus’[1] para se demonstrar a evolução do pensamento de Wittegenstein, eis que no Tractatus a proposição era considerada a partir de uma imagem estruturada e isomorfa dos fatos que representava a sua verdade, influenciada pela matemática, na qual a forma lógica era a garantia da possibilidade de se pensar e falar do mundo real. O sujeito seria plenamente consciente e não estaria inserido nas formas da vida, como quer ainda parte da epistemologia da modernidade. A relação era sujeito-objeto.

Nas Investigações Filosóficas[2], Wittegenstein muda o foco da abordagem. A proposição passa a ser apenas uma hipótese da representação, a qual demanda um processo constante de reformulação. Não se vincula mais a uma isoformia primeva entre a proposição e o fato representado, dependendo agora fundamentalmente das circunstâncias em que ela é manejada, conforme o contexto (o jogo). Não existe mais a prometida maneira formal de significação, uma vez que são as formas de vida que irão indicar o significado provisório, condicionado sempre ao decurso de tempo e aos contextos. Falar é só uma atividade humana, participante das ‘formas de vida’, tal qual comer, andar, argumentar, decidir, conversar e jogar. A relação passa a ser sujeito-sujeito.

Não tem mais sentido, pois, indagar-se qual o significado de uma palavra, já que a resposta estaria assentada na falsidade da premissa, ou seja, na (im)possibilidade de uma resposta definitiva e única[3]. Ela depende dos jogos da linguagem, da maneira dinâmica pela qual será empregada na práxis da linguagem, não se podendo mais se buscar significações cristalinas e ideais. As proposições, pois, não dão mais a segurança lógica da Matemática ou da Metafísica, estando desde sempre incluídas na linguagem, única via de acesso ao significado provisório e sujeito a modificações, havendo, assim, a necessidade de se buscar unidades de outra ordem, outros critérios, indicados como sendo os usos que se faz da linguagem nas diversas formas de vida. É no campo do uso da linguagem que a proposição ganha destaque e significado, não podendo residir numa aldeia ideal.

O significado das proposições, então, decorre dos usos que se realizam a partir deles próprios, tendo caráter fragmentário, aderidos ao ‘veja’, expressão que se refere à multiplicidade do mundo da vida, revés da consciência plena, do sentido pleno. Decorrência disto é que a linguagem vem superar a divisão entre mundo real e representação, tido o mundo real como referência de consistência lógica. Essa segurança desaparece pela mudança de perspectiva, agora restam opções de sentido. Não se trata mais de descobrir como funciona a linguagem, mas de como se emprega[4]. A retirada do referencial estático, eterno, modifica a maneira pela qual se pode significar, a despeito, pois, dos fatos. É na multiplicidade dos usos da linguagem que deverá se situar o mecanismo do referencial, não mais absoluto, mas no espaço/tempo, correspondendo aos usos possíveis. Em síntese: a linguagem declara sua independência em relação aos fatos, embora se articulem. Daí o perigo do conceptualismo.

Por certo essa maleabilidade encontra-se, ainda, regulada por mecanismos imprecisos, indicados pela propriedade de semelhança de família, e inseridos nos jogos de linguagem[5], estatuídos a partir de semelhanças e diferenças. Mas os limites dos conceitos decorrem das relações derivadas da ação, dos usos, sendo impossível, salvo de maneira metafísica, a colmatação de conceitos eternos, acessíveis aos interlocutores. Decorrem do processo intersubjetivo de atribuição de sentido, despregado de um fundamento primevo. Logo, à pergunta: o que significa esta palavra? Responde-se: significa a explicação que se der de sua significação, advinda do seu uso. Esse ‘uso’, todavia, é regulado por instituições, regras de discurso não totais[6], semiologia e semiótica — não podendo ser considerado o ‘vale tudo’ relativista; rejeita-se, assim, o fundamento do fundamento, inexistente, de resto.

Assim é que o ato de falar está repleto de termos vagos que não delimitam precisamente a que se referem; busca-se, enfim, compreender e se fazer compreender, supondo-se, tão-somente, a possibilidade de distinção entre forma, cor, conjunto de objetos, sem que possam ser confundidas com regras de condução, mas que servem apenas como regras de orientação.

Por essa linha de raciocínio, pois, perdem sentido os aprisionamentos de significado eternos realizados pelo senso comum teórico (Warat), eis que esta atribuição é feita no espaço/tempo, sujeita aos participantes do processo intersubjetivo, situação destacada, dentre outros momentos, por Canotilho ao responder às indagações sobre sua concepção de ‘Constituição Dirigente’, cujo sentido semântico evolui[7]. As apreensões, pois, formuladas pelo ‘Monastério de Sábios’ enjeitam esta ausência de referente primeiro, tanto assim que é mais do que comum à busca metafísica das ‘naturezas jurídicas das coisas’ (ações, tipos penais), como se fosse possível. Não o é, definitivamente, por impossível, já que a premissa é equivocada.

Daí a importância da viragem linguística e dos processos cognitivos, sempre vinculados à tradição autêntica (Streck), cuja atribuição, por sua vez, precisa entender o jogo em que se articula. Quando, assim, sugiro a possibilidade de se entender o processo penal como jogo, longe de procurar essências, aceito, de bom grado, o plano pragmático da linguagem e seus riscos. Com ele posso entender, para poder rejeitar, os sentidos inautênticos, em desconformidade com a tradição autêntica. Não se trata de relativismo, nem de essência, mas de sua superação pela hermenêutica filosófica. Termino com a advertência de Wittegenstein: “Não diga: ‘Não há nenhuma última elucidação’. É exatamente o mesmo que dizer: ‘Não há nenhuma última casa nesta rua’; pode-se sempre construir mais uma.” Boa semana.


[1] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Lógico-Philosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora USP, 1993.
[2] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 25-206.
[3] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas…, p. 31: “Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: lá estão um martelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, pregos e parafusos. – Assim como são diferentes as funções desses objetos, assim são diferentes as funções das palavras (E há semelhanças aqui e ali). Com efeito, o que nos confunde é a uniformidade da aparência das palavras, quando estas nos são ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e na imprensa. Pois seu emprego não nos é tão claro. E especialmente não o é quando filosofamos!”
[4] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas…, p. 114: “Não podemos adivinhar como uma palavra funciona. Temos de ver seu emprego e aprender com isso. A dificuldade, porém, é vencer o preconceito que se opõe a este aprendizado. Não é nenhum preconceito tolo.”
[5] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas…, p. 35: “O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma atividade ou uma forma de vida.”
[6] WITTGENSTEIN. Ludwig. Investigações filosóficas…, p. 53: “Mas então o emprego da palavra não está regulamentado; o ‘jogo’ que jogamos com ela não está regulamentado. Ele não está inteiramente limitado por regras; mas também não há nenhuma regra no tênis que prescreva até que altura é permitido lançar a bola nem com quanta força; mas o tênis é um jogo e também tem regras.”
[7] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (Org.). Canotilho e a Constituição Dirigente…, p. 13-58.

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