Liberdade assegurada

Liberdade do humor é séria, mas não se pode levar a sério o que é mero humor

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8 de janeiro de 2015, 10h31

O humor é livre no Brasil. A dignidade constitucional do humor, como legítima manifestação da liberdade de expressão e de criação artística, foi recentemente afirmada com todas as letras pelo nosso Supremo Tribunal Federal.

Com a ADPF 130, relatada pelo ministro Carlos Ayres Britto, a Suprema Corte já consagrara a ampla liberdade de imprensa e de informação jornalística, encerrando o período de eficácia da antiga e superada Lei de Imprensa.

Na feliz expressão do ministro Gilmar Ferreira Mendes, “a liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos”.

A consagração expressa do sarcasmo como expressão legítima da liberdade de expressão e de criação artística, protegido tanto pelo artigo 5º, como pelo artigo 220 da Constituição de 1988, viria a ocorrer na liminar concedida em setembro de 2010 na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451, que ficou conhecida como a ADI do Humor.

A ação apontava inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Eleitoral que restringia tratamento humorístico envolvendo políticos e candidatos, mas a discussão em Plenário abrangeu a questão do humor de maneira muito mais ampla.

 O ministro Carlos Ayres Britto, que relatou a matéria, invocou de memória a definição do escritor Ziraldo, para quem  “Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir. Isto pode ser chamado de comicidade ou qualquer outro termo equivalente. O humor é uma visão crítica do mundo e o riso, efeito colateral pela descoberta inesperada da verdade que ele revela.”

Destacou ainda o ministro Ayres Britto a importância social do humor: Toda a imprensa brasileira noticiou a passeata, no Rio de Janeiro, de pessoas que profissionalmente se dedicam ao humorismo televisivo e radiofônico no Brasil e que se sentiam constrangidas nessa atividade de humor eminentemente crítica e artística, sabido que o humor tem, de fato, essa compostura. Ele traduz informação, opinião crítica e, ao mesmo tempo, revela tiradas de espírito, revela talento criativo e isso já faz parte da atividade artística propriamente dita.”

Embora ressalvando as possíveis agressões à honra, a notável decisão fixou os marcos de uma garantia constitucional do humor, enquanto legítima atividade de criação e de livre expressão. Tal orientação transparece ao longo de toda a rica discussão:

“Mas, olha, quem muito me impressionou nessa matéria foi o ministro Peluso. Vossa Excelência vai me permitir uma quase inconfidência. Quando eu falei ao ministro Peluso da minha preocupação com esse inciso II, o ministro Peluso disse: "Mas, vedar o humor? Isso é uma piada."

O ministro Ricardo Lewandowski – Nós vamos liberar o humor.” 

A eminente ministra Carmen Lúcia, por sua vez, invocou “a liberdade de manifestação artística, porque a comédia, a sátira, o humor, desde a antiguidade, é uma das manifestações do teatro e é uma manifestação artística que encontra respaldo, a meu ver, com o núcleo intocável no artigo 5º. Por isso mesmo acho que não pode ser, definitivamente, de alguma forma, tolhida. Vossa Excelência fez uma citação há pouco e lembrava até a referência do ministro presidente de que impedir esse humor seria uma piada, cito no meu voto uma passagem de Machado de Assis, que diz: "A liberdade, antes confusa, que nenhuma. A liberdade não é surda-muda, nem paralítica. Ela vive, ela fala, ela bate as mãos, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida.".

O debate chegou a examinar a questão da degradação ou ultraje que não poderiam ser tolerados, quando ressaltou o eminente relator, ministro Ayres Britto: “Estou aqui procurando, eu selecionei um caso da jurisprudência norte-americana interessantíssimo, que a palavra era ultrajar. E a Corte norte-americana disse que é próprio do humor provocar o motejo, o sarcasmo e que era muito perigoso eliminar da possibilidade do humor um programa que levasse alguém a se considerar ultrajado, porque é muito subjetivo; em última análise, julgar-se ultrajado termina sendo, digamos assim, um critério subjetivo, exclusivamente dependente daquele que se sentiu ultrajado, aquele que se sentiu ofendido. E eliminou, não considerou como constitucional essa proibição. Pelo contrário, afastou a proibição. A palavra era ultrajar.”

O relator acabou por localizar o caso: “Hustler Magazine v. Falwell – 1987. O Tribunal concluiu que a primeira emenda proíbe a responsabilidade dos meios de comunicação, baseada na responsabilidade pelo discurso ultrajante, pois ultrajante, na discussão de questões políticas e sociais, é tão subjetivo que o juiz pode julgar ilícita uma expressão simplesmente com base na sua versão – dele juiz – ao termo ultrajante.”

O eminente presidente César Peluso, por sua vez, trouxe à discussão Acórdão que proferira ainda no Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido da liberdade:

“Não há nisso, porém, nada de insólito nem de injurídico, porque toda a gente sabe que é da essência de caricatura, da sátira e da farsa operarem mediante deformações hiperbólicas da realidade, residindo nesse exagero ou distanciamento dramático em relação ao real, que pode ser tanto dos eventos histórico-sociais, como das pessoas ou das coisas o fator específico da identidade dessas formas de criação artística e da sua comicidade mesma, cujas manifestações, neste caso, constituem apenas o elemento alegórico de uma crítica severa, mas justa, inspirada por motivo de grande valor social.

(…)

Esta é, aliás, uma das funções do riso: "Le rire est, avant tout, une correction. Fait pour humilier, il doit donner à la persone qui en est l’objet une impression pénible. La société se venge par lui des libertés qu’on a prises avec elle" (Henri Bergson, "Le Rire", Paris, Lib. Félíx Alcan, 1938, p. 199-200).”

E ainda:

“Está visto, ao depois, que, em nome de suscetibilidades exacerbadas, não pode o ordenamento jurídico, comprometido com as liberdades civis e as chamadas garantias institucionais (Einrichtungsgarantien), cuja positivação é indispensável ao perfil de uma sociedade livre e democrática, reprimir aos humoristas profissionais e à imprensa, ainda quando demasiadas na forma e cáusticas no conteúdo, as expressões artísticas sob as quais exercitam o direito da crítica política ou político-social.

Não deixa de ser oportuno recordar, a propósito, a advertência que, num caso famoso, até levado à tela cinematográfica sob o título vernáculo de "O Povo contra Larry Flint", fez a Suprema Corte norte-americana, pelas mãos do Chief Justice Rehnquist, relevando, entre outros, o "cartoon portraying George Washington as an ass", dado o proeminente papel que de há muito ali desempenham os caricaturistas no debate público e político: "From the viewpoint of history it is clear that our political discourse would have been considerably poorer without them" (Hustler Magazine v. Falwell, 485 U. S. 46 [1988]). Deveras, castrar a imprensa e os humoristas profissionais, subjugando-os, no exercício da crítica social e política, a interesses pessoais subalternos, seria, quando menos, apreciável desserviço à vitalidade e à saúde democrática do país.” 

José Afonso da Silva ensina que “Censurar é opor restrições com caráter de reprimenda. Se são livres as atividades indicadas é porque não comportam restrições, e menos ainda qualquer forma de reprimenda em razão de seu exercício.” 

Vê-se, assim, que o direito ao humor adquiriu em nosso país dignidade constitucional, sendo afirmado pelo Supremo Tribunal Federal como legítima emanação dos artigos 5º e 220 da Constituição Federal, que garantem os direitos de expressão e de criação artística. Prefere-se, assim, a eventual demasia à censura ou repressão. É próprio do humor o exagero, a hipérbole. E o simples fato de alguém eventualmente se sentir ferido pelo humor não poderia restringir a atividade, por sua índole subjetiva.


 

 

 

 

 

 

Supostos limites do humor
Muitos objetam, porém, com os possíveis excessos do humor.

A jurisprudência brasileira claramente se inclina no sentido da liberdade garantida na Carta de 1988. Bem analisa o Professor Walter Ceneviva:

“A garantia primeira está no impedimento absoluto de qualquer censura (Constituição, art. 220, e, em particular, seu § 3º). Na dificuldade entre as alternativas possíveis, predomine a liberdade da comunicação social, por ser do interesse de todos.

A dificuldade na busca do equilíbrio é grande. Vivemos período de transição, no rumo de padrões radicalmente mudados, cuja avaliação ainda é confusa. O aparente tumulto no qual vivemos mostra tendências e gostos contraditórios, da burca e do véu ao uniquini e ao nudismo, marcados até por formas do conservadorismo rigoroso de associações religiosas do ocidente e de líderes político-religiosos do oriente.” 

O que já foi considerado como humor ultrajante e até culturalmente perigoso há décadas ou mesmo anos atrás por vezes emergiu como culturalmente vibrante e estimulante. Lenny Bruce foi preso por material que Chris Rock consideraria tépido, afirma o especialista Jack Marshall. Hoje, o programa Saturday Night Life é um exemplo cabal de humor bastante agressivo e irreverente.

Em matéria de humor, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão com clareza: “Não cabe aos Tribunais dizer se o humor praticado é ‘popular’ ou ‘inteligente’, porquanto à crítica artística não se destina o exercício da atividade jurisdicional.”

O voto da eminente ministra Nancy Andrighi é uma verdadeira aula a respeito da questão do humor. Tratava-se de ação de dano moral movida em função de publicação da revista humorística "Bundas", na qual constava reportagem que teria exposto ao ridículo o Barão Smith de Vasconcelos, chamado de "o Barão da Merda".

O pedido fora julgado improcedente, ao argumento de que é "(…) inadmissível impedir a ironia, a piada, a galhofa, o animus jocandi, próprio da criação artística, com o intuito apenas de fazer rir e não denegrir, desmoralizar, desacreditar ou conspurcar a imagem de quem quer que seja".

A decisão que negou provimento à apelação tem a seguinte ementa: "REVISTA DE HUMOR. Animus jocandi, para fazer rir, divertir, ironizar. Não se deve restringir a criação artística ou desestimular os grandes humoristas intelectuais. A matéria publicada não causa ‘lesão à alma’ ou ‘dano material’ ao castelo mencionado ou seus donos. Sentença confirmada, apelo desprovido".

O Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, deixou assentado, na feliz dicção da Ministra Nancy Andrighi:

“Em primeiro lugar, a conduta praticada não carrega a necessária potencialidade lesiva para causar a dor que as recorrentes desejam ver reconhecida, porquanto carecedora da menor seriedade a suposta ofensa perpetrada, estando o texto dentro dos limites daquilo que se entende por prática humorística e em veículo a tal destinado.

Em segundo lugar, conforme demonstrado, nada houve para além de uma crítica genérica de costumes pela reportagem; não houve um ataque pessoal à memória do Barão, porquanto a expressão tida por injuriosa pertence ao domínio público e foi utilizada em sentido meramente alegórico, em total coerência com as finalidades da publicação.

A questão paralela posta pelas recorrentes, a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico – apontado como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; a prestação jurisdicional deve se limitar a dizer se houve ou não ofensa a direitos morais das pessoas envolvidas pela publicação.

Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’.

Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas pessoas, categoria na qual as recorrentes expressamente se incluem logo na petição inicial do presente processo (fls. 05).

A tarefa de examinar aquilo que se poderia chamar de ‘inteligência’ do humor praticado cabe, apenas, aos setores especializados da imprensa, que concedem prêmios aos artistas de acordo com o desempenho por eles demonstrado em suas obras. 

Também merece destaque, nessa direção, a decisão do Tribunal Federal da 2ª Região que manteve sentença que julgara improcedente ação civil pública movida contra emissora de televisão, afirmando que:

“Ademais, partindo para o conteúdo propriamente dito da fita, detecta-se o indiscutível objetivo da programação, qual seja, fazer humor. Não com as enfermeiras, zombando delas, ofendendo-as, mas, sim, com a contextualização das cenas, envolvendo um sonho tido por um idoso (o grande ator Rogério Cardoso, já falecido), no qual também aparece uma enfermeira sensual. E ser sensual por si só não é algo ofensivo. Ao ver as cenas, de imediato, perguntamo-nos: Onde está a ofensa? Um senhor não pode desejar sexualmente uma enfermeira? E uma enfermeira não pode desejar um idoso? Onde está a ofensa a ensejar o ajuizamento de uma Ação Civil Pública?

A propósito, nos diversos humorísticos, de toda e qualquer emissora, comediantes, com o indispensável animus jocandi, promovem humor a partir de quadros envolvendo determinadas profissões, o que, por si só, não nos permite concluir que a imagem dos respectivos profissionais seja atingida e humilhada pela programação. 

Aliás, apenas para exemplificar, basta lembrar das pilhérias envolvendo políticos, policiais, modelos, jogadores e técnicos de futebol, servidores públicos, atrizes, dentre tantos outros, o que, antes de configurar qualquer atentado à imagem e à honra dessas pessoas, revela que o tempo da censura está ultrapassado, sendo a livre manifestação do pensamento um direito assegurado constitucionalmente.

Até mesmo a figura do atual Presidente da República tem sido objeto de humor por parte de certo programa do mesmo canal de TV, o que nos faz lembrar do saudoso Bussunda.”

Vai mais longe o Acórdão, ao afirmar:

“O avanço da sexualidade vivenciado pelo mundo atual não pode ser desprezado pelo aplicador do Direito. Logo, inaceitável acreditar que tais cenas, dentro do contexto humorístico em que foram divulgadas, não sendo elas ofensivas, apelativas ou imorais, possam ser prejudiciais à imagem da categoria.

Somente para efeito de ilustração, o tipo penal previsto no art. 233 do Código Penal brasileiro em vigor (Crime de Ato Obsceno) deve ser interpretado à luz do sentimento reinante numa considerada sociedade, já que não será qualquer conduta, com ou sem apelo sexual, que terá aptidão para ofender o bem jurídico penalmente protegido (a moralidade pública). Portanto, citado tipo reclama uma leitura consentânea aos novos rumos, lição perfeitamente aplicável à situação sob comento.

Por conseguinte, nos dias atuais, não é descabido afirmar que muitos fetiches fazem parte da imaginação das pessoas, sendo que daí não se extrai qualquer aspecto vergonhoso, pecaminoso ou imoral, como outrora ocorria. Fazer humor a partir de fetiches, desde que dentro de um contexto cênico e jocoso, não pode ser interpretado como ofensa. Hoje, apenas aquelas pessoas dotadas de exacerbado puritanismo poderiam detectar, no quadro humorístico apresentado pela Apelada, qualquer ato ofensivo e humilhante à categoria.” 


 

 

 

 

 

 

O humor reprimido
Em todas as épocas e sociedades sempre houve quem se inclinasse por maior liberdade e quem se pautasse por maior restrição, quando não por rigorosa repressão. Todas as vezes em que a sociedade optou pela repressão, escreveu páginas trágicas e, na maioria das vezes, teve que pedir desculpas mais tarde.

A inquisição jogava os hereges na fogueira, a censura perseguiu escritores consagrados como James Joyce e D. H. Lawrence. No campo do humor, as charges de Maomé resultaram em condenação à morte e a irreverência na prisão de Lenny Bruce, famoso comediante norte-americano dos anos 50 e 60, cujo lema era “Não há palavras sujas, apenas mentes sujas”. Seu julgamento e condenação por obscenidade em 1964 levou o Estado de Nova Iorque conceder o primeiro perdão póstumo da história.

O semanário satírico Charlie Hebdo teve,  agora em 2011, sua redação atacada por coquetéis Molotov e incendiada, supostamente por “difamar” o Islã. A intolerância se manifesta em toda parte.

O humor incomoda, sempre houve tentativas de cercear sua atividade. Quem não se lembra da perseguição aos que ironizavam a ditadura? Na antiguidade a irreverência era tratada como crime de lesa-majestade. O Poder era alvo preferencial do humor, mas os reis e rainhas de hoje, que estão no centro das atenções, muitas vezes são os personagens do circo midiático, políticos, jogadores de futebol, cantores, participantes de “reality shows”. 

Elias Thomé Saliba, nas suas Raízes do Riso, destaca que “Essa suspeição social que parece pesar sobre aquele que se diz humorista (ou mesmo que chegou a nomear dessa forma sua produção marginal de escritor) ainda perdura por muito tempo na cultura brasileira, mesmo no período batizado e crismado com o gracioso epíteto de Belle Époque.” 

A psicanalista Miriam Gorender destaca o caráter intrinsicamente subversivo do humor:

“Em Laughing: a psychology of humor, Holland afirma sobre o riso que nós não o compreendemos e não confiamos nele. Desconfiança esta presente desde a Antiguidade, já que os filósofos pré-socráticos afirmavam que gracejar é inconsistente com a piedade, preferindo esta última.

Mas o humor se constitui, em seu campo próprio, fenômeno tão rico e irrepresentável como o da arte. E não é por acaso que não confiamos no humor. Nosso riso é certamente subversivo. Ao rirmos, desafiamos as leis de homens e deuses.”

A liberdade no humor
A liberdade é essencial no humor. O próprio do humor é o contrassenso, o absurdo, o contrário de tudo que é tido como normal. “Parte da graça de um comediante é que ele pode dizer coisas que uma pessoa normal ou não pode ou não quer dizer” 

O fenômeno foi bem descrito pelo Professor Abrão Slavutzki:  

“O sentimento do contrário tão bem descrito por Pirandello é uma das essências do humor, que permite relativizar tudo e quebra toda seriedade teórica e prática seja do que for.”

“O humor não reconhece heróis; diverte-se em decompor, mesmo quando não seja um divertimento agradável. Parte do sentido em busca do nonsense, ao contrário da interpretação que parte do nonsense, para buscar um sentido. É um ato de desdobramento no ato mesmo da concepção; por isso, todo sentimento, todo impulso, todo pensamento que surge no humorista, se desdobra em seguida no seu contrário: todo sim em um não que assume o valor de sim.”

Freud, que dedicou mais de uma obra ao tema do humor,   destacava que “Entre as instituições que o chiste cínico costuma atacar, não há nenhuma mais importante e mais energicamente protegida por valores morais, porém nenhuma convida mais ao ataque do que o casamento, ao qual aliás se refere a maioria dos chistes cínicos. Não há exigência mais pessoal do que a de liberdade sexual, e em nenhuma outra parte a cultura tentou exercer uma sufocação mais intensa do que no campo da sexualidade”. 

A questão das fantasias foi dissecada por Sérgio Telles, “Um dos prazeres fornecidos pelo humor é sua capacidade de expressar, de forma socialmente aceitável, fantasias sexuais e agressivas que estão habitualmente reprimidas. A dimensão disruptiva do humor faz com que ele esteja sempre no fio da navalha, exigindo habilidade dos comediantes para não resvalarem para a franca agressão ou grosseira obscenidade…” 

Por sua vez, Umberto Eco, o celebrado filósofo e autor de O Nome da Rosa, tem um trabalho notável sobre as molduras da liberdade cômica, em que analisa a liberdade de transgressão e a suspensão temporária das regras usualmente aceitas durante o carnaval e no campo da piada. 

As questões que suscita o humor, quando analisado em profundidade, são infindáveis. O importante é que, como acima exposto, o Supremo Tribunal Federal consagrou a dignidade constitucional do humor como legítima expressão da liberdade de expressão e de criação artística.

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça deixou assentado que “Não cabe aos tribunais dizer se o humor praticado é ‘popular’ ou ‘inteligente’, porquanto à crítica artística não se destina o exercício da atividade jurisdicional.” e que não cabe reparação quando “carecedora da menor seriedade a suposta ofensa perpetrada, estando o texto dentro dos limites daquilo que se entende por prática humorística e em veículo a tal destinado”.

O debate do tema e sua análise pela opinião pública acabarão por servir de parâmetro para essa nova geração de humoristas que, por vezes, exageram num tipo de humor que brinca com fatos históricos ou com valores que nos são caros. 

 O clima de liberdade é essencial à própria discussão. Como observa Contardo Caligaris,  “a liberdade do vizinho (sobretudo se ele for muito diferente de mim) é sempre a melhor garantia da minha própria liberdade” 

A questão da liberdade do humor é séria. Não se pode é levar a sério o que é mero humor, produzido num contexto de humor, com a intenção apenas de fazer rir. Essa liberdade a Constituição assegura e nossos tribunais garantem.

Autores

  • Brave

    é advogado criminal. Foi Secretário da Justiça e da Segurança Pública no Governo Montoro, presidiu o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e foi Juiz efetivo do TRE-SP.

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