Retrospectiva 2014

Entre cartéis do Metrô e da Petrobras, Cade consolidou inovações

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3 de janeiro de 2015, 6h07

Spacca
2014 foi um ano desafiador para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Ao mesmo tempo em que caminhou para a consolidação das inovações legais e institucionais decorrentes da nova lei de defesa da concorrência (Lei 12.529/11), o Cade iniciou o ano tendo de lidar com um caso que ganhou ampla repercussão ainda em 2013, o suposto cartel dos trens e metrôs de São Paulo, e termina o ano com novo caso de um suposto cartel, dessa vez envolvendo compras feitas pela Petrobras.

Consolidação institucional
A consolidação do novo sistema brasileiro de defesa da concorrência ocorreu com notável êxito. O Cade conseguiu dar respostas rápidas aos receios do mercado e da comunidade antitruste em geral, notadamente no que pertine ao controle prévio dos atos de concentração, principal novidade da nova lei. Com o controle prévio, grandes empresas passaram a precisar do aval do Cade antes de consumar operações como fusões e aquisições. Receava-se que a autoridade antitruste pudesse ser responsável por atrasos indesejados na concretização de transações submetidas ao órgão. Hoje, passados mais de dois anos de vigência da nova lei, eventuais preocupações foram mitigadas. A Superintendência-Geral do Cade tem analisado operações simples no prazo de vinte dias, em média; operações mais complexas têm sido analisadas em mais tempo, mas, como regra, em prazos bem menores do que o previsto como máximo pela lei (240 dias prorrogáveis por mais 90 dias).

Novas resoluções
O Cade tem promovido esforços para a promulgação de resoluções que detalhem a disciplina de questões menos definidas e reduzam a incerteza existente. É devido o destaque à Resolução 9, que, dente outras questões, alterou a disciplina aplicável para a definição de grupo econômico em operações envolvendo fundos de investimento. A recente Resolução 11 também merece nota, pois inaugura um sistema de gestão eletrônica de processos que pode tornar os procedimentos mais céleres e menos custosos.

Por fim, a Resolução 10 é, possivelmente, aquela que traz o regulamento mais aguardado e discutido. Essa resolução disciplina as hipóteses de notificação de contratos associativos como atos de concentração. A partir de janeiro, contratos com duração superior a dois anos e em que houver "cooperação horizontal ou vertical ou compartilhamento de risco que acarretem, entre as partes, contratantes, relação de interdependência" deverão ser notificados ao Cade caso envolvam um grupo econômico com faturamento no Brasil de R$ 750 milhões ou mais e pelo menos outro grupo com faturamento no Brasil de R$ 75 milhões ou mais[1].

Cartéis
A investigação sobre o cartel em licitações de trens e metrôs foi um prólogo da tendência que marcou o Cade em 2014: o combate a cartéis. Além da instauração, em março, do Processo Administrativo do caso dos trens e metrôs, outros casos importantes foram instaurados, e outros tantos encerrados com condenação ou acordos. Alguns exemplos merecem destaque. Primeiro, as investigações do setor de autopeças que há alguns anos vinham ocorrendo na Europa e nos EUA têm reflexos agora no Brasil. Empresas como Robert Bosch assinaram acordos de leniência com o Cade admitindo a prática de cartel e dando início a investigações que podem levar à imposição de sanções severas contra outros fabricantes. Segundo, a expressiva condenação do cartel do cimento, que se encerrou com multas que, somadas, superaram o inédito montante de R$ 3 bilhões, reitera o compromisso do Cade com punições severas e que possam, efetivamente, dissuadir práticas futuras. Por fim, a conclusão de um Termo de Compromisso de Cessação com a General Motors para encerramento de uma antiga investigação evidencia a capacidade do Cade de identificar e lidar com situações particulares e que demandam soluções negociadas.

Identificamos ainda três pontos que sugerem novas tendências em casos de cartel.

O primeiro se verifica no próprio caso das cimenteiras. O Cade imputou às empresas condenadas não só pesadas multas, como também penalidades não pecuniárias, entre as quais destaca-se a obrigação de venda de participações societárias, com o fito de reduzir o nível de concentração de mercado e evitar riscos de novos conluios. Tal penalidade, embora prevista em lei, não é comumente aplicada pela autoridade, dado o grau de intervenção que enseja. 

O segundo pôde ser visto com mais clareza na última sessão de julgamento do Tribunal do Cade do ano, ocorrida no último dia 10. Em três casos distintos de cartéis em licitações, o Cade decidiu pela proibição da participação dos condenados em procedimentos licitatórios por cinco anos. Trata-se de clara sinalização do órgão de que não tolerará conluios responsáveis por fraudar licitações e gerar prejuízos aos cofres públicos e à coletividade.

O terceiro e último aspecto a ser destacado foi observado no caso ainda em trâmite do suposto cartel no setor de resinas. A investigação se iniciou com um acordo de leniência celebrado em abril com as empresas e alguns funcionários do grupo Reichhold. Embora a Superintendência do Cade ainda não tenha instaurado o processo administrativo, estando a investigação ainda em fase de Inquérito Administrativo, algumas das empresas investigadas já procuraram o Cade para negociar Termos de Compromisso de Cessação (TCCs). Na sua última sessão do ano, o Cade homologou TCCs com as empresas Ashland, CCP e Novapol. O TCC da Ashland foi o primeiro na história do CADE celebrado antes da instauração de Processo Administrativo, que é o momento no qual geralmente se esclarecem as acusações contra os investigados.

Condutas unilaterais
O Cade manteve seu foco em investigações de condutas unilaterais envolvendo direitos de propriedade industrial e o direito de petição (casos de sham litigation). Investigações envolvendo esses tópicos foram iniciadas e outras tiveram seguimento ao longo deste ano.

Contudo, dado a se destacar é a ocorrência de casos envolvendo pessoas físicas em condutas unilaterais. Processos contra pessoas físicas no Cade são mais comuns em casos de cartel, em que a ilicitude da prática é bem definida e é possível ver com mais clareza a participação do indivíduo na concretização da prática anticompetitiva. Dado que a definição do que é ilícito depende, em condutas unilaterais, de condições específicas e de difícil aferição — inclusive para a própria autoridade antitruste — executivos que tenham idealizado ou implementado essas práticas não vinham sendo alvo de investigações. Afinal, ao contrário da prática de cartel, caso os executivos tenham receio de punições ao idealizarem estratégias de concorrência, poder-se-ia desestimular práticas lícitas e pró-competitivas.

Por essas razões, dois casos recentes em que executivos foram investigados merecem atenção.

O primeiro foi a celebração de TCC com pessoas físicas investigadas em decorrência do caso Tô Contigo. Esse caso, que jugou e puniu em 2009 um programa de fidelidade da Ambev considerado anticompetitivo, encerrou-se com uma recomendação de que fosse aberta investigação contra seis pessoas físicas responsáveis pela elaboração e implementação do programa. Tais indivíduos optaram por não enfrentar um julgamento do Tribunal do Cade. Em julho, celebraram um TCC por meio do qual se comprometeram a pagar contribuição que somou R$ 2 milhões.

O outro caso envolveu as condutas de fixação de preço de revenda e influência de conduta comercial uniforme. Em novembro, a distribuidora de combustíveis Shell Brasil (atual Raízen) e dois gerentes comerciais da empresa foram condenados, por maioria, pelo Tribunal do Cade.

O Cade mostra com isso que as pessoas físicas, inclusive em casos que não se enquadram nos tipos clássicos de coordenação horizontal, como cartel, poderão ser investigadas e eventualmente punidas por infrações concorrenciais praticadas. Essa tendência deve ser observada com cuidado para que não haja excesso na aplicação da lei concorrencial (overenforcement), de modo a reduzir o vigor da concorrência entre empresas.

 

Atos de concentração
A autarquia tem se mostrado cada vez mais atenta a potenciais efeitos anticompetitivos dos atos de concentração. Alguns casos importantes que passaram pelo Cade esse ano ilustram isso: em abril, o Cade determinou a diminuição da participação societária da Companhia Siderúrgica Nacional na Usiminas, em virtude do alto grau de concentração no setor de aços planos; em maio, aprovou a fusão entre Anhanguera Educacional e Kroton Educacional com restrições, impondo, entre outras medidas, a venda de ativos; em agosto, impôs restrições à criação do Conselho dos Produtores e Exportadores de Suco de Laranja (Consecitrus), que reuniu associações de agentes da cadeia da laranja e gerou preocupações concorrenciais; em novembro, reprovou a aquisição da Solvay Indupa pela Braskem, dado que a operação uniria as duas únicas produtoras de PVC do Brasil, líder e vice-líder do mercado sul-americano, gerando forte concentração.

Por fim, a Superintendência acaba de impugnar junto ao Tribunal do Cade a fusão entre ALL e Rumo/Cosan. Dessa forma, o próximo ano já se inicia com a análise de uma operação relevante e que tem impactos sobre a infraestrutura ferroviária do país.

Agenda para 2015
Alguns desafios se colocam ao Cade nesse momento, inclusive envolvendo a própria composição do órgão. No início de 2015, deverão ser nomeados três novos conselheiros (e um quarto deverá ser nomeado no segundo semestre, com o fim do mandato da conselheira Ana Frazão em agosto), e novo Superintendente-Geral deve ser indicado (ou simplesmente confirmado). Além disso, acreditamos que alguns pontos devem ser prioritários na agenda:

1) Munir o órgão de mais sofisticação analítica e especialização setorial para lidar com casos complexos envolvendo condutas unilaterais e fusões em mercados dinâmicos e envolvendo infraestrutura;

2) Promover mais integração com Controladoria-Geral da União, Ministérios Públicos (federal e estaduais) e Polícia Federal, com vistas a obter evidências de práticas cartelizantes e realizar ações conjuntas;

3) Proferir decisões claras em casos envolvendo contratos associativos, de modo a se constituir um corpo de precedentes envolvendo a aplicação da nova Resolução 10;

4) Debater e examinar com cuidado os diversos casos envolvendo direitos de Propriedade Industrial e os casos envolvendo o exercício do direito de ação, para que seja constituída uma jurisprudência consistente com outras políticas públicas e que não desencoraje práticas lícitas e investimentos em inovação.

 


[1] Para fins da Resolução, presume-se relação de interdependência quando houver (i) “cooperação horizontal” em que a soma das participações de mercado das partes envolvidas no contrato for igual ou superior a 20%; e (ii) “cooperação vertical” em que pelo menos uma das partes envolvidas no contrato tiver participação de mercado de 30% ou mais em algum dos mercados verticalmente afetados pelo contrato, desde que (a) o contrato estabeleça o compartilhamento de receitas ou prejuízos entre as partes e (b) do contrato decorra relação de exclusividade.

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