Previdência e trabalho

Novas MPs trazem “tempo de vacas magras”

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2 de janeiro de 2015, 13h32

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou!
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível,
Não voam, nem se pode flutuar
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!

(Admirável Gado Novo, Zé Ramalho)

Não se assuste, pobre leitor. Não se cuida de um ensaio veterinário. Trataremos dos bovinos, sim, mas para uma dupla observação. A disparidade entre discursos de campanha e de governo e os efeitos da “neomaldade” anunciada, convertida em Medidas Provisórias com efeitos permanentes sobre as relações de trabalho, tanto privadas quanto públicas.

O que é um discurso de campanha política e o que é a realidade prática das ações dos eleitos?

Na verdade, vê-se com nitidez que há quase uma indistinção entre propostas e partidos no que tange à administração da economia. Uma pasteurização da política partidária e econômica, assim como do leite, hoje homogeneizado antes da venda ao público. Fosse um ou outro o eleito, estaríamos a lamentar senão os mesmos atos, medidas de distinção cosmética, apenas.

Corria o dia 17 de setembro de 2014. Dilma Vana Rousseff estava em Campinas, no estado de São Paulo, em plena campanha eleitoral para reeleição. Como candidata, então, disse, textualmente: “Nós não vamos mexer em direitos trabalhistas nem que a vaca tussa.”

Triste sina, a da vaca! Dilma sequer tomou posse e a vaca já tossiu.

Os bovinos, provedores de leite, couro, carne, tutano, fezes convertidas em adubo, chifres e berrantes, são inúmeras vezes injustiçados. Seus gases são supostamente culpados pela destruição da camada de ozônio da terra. Infectados por agentes biológicos cuja propagação deve-se atribuir ao ser humano, já foram vítimas da “doença da vaca louca”. Expressões e mais expressões invocam as inocentes vacas.

A começar do Gênesis, primeiro livro do Velho Testamento que, no Capítulo 41, descreve o sonho de José do Egito, faraó que viu vacas gordas e magras pastando ao longo das margens do Nilo. Seu sonho foi interpretado como anúncio de tempos fartos seguidos de privações. Vacas gordas e magras que se sucederam, invocando a lição divina do planejamento.

Como aqui não se planeja, mas se remedia, agora, os “proto-neo-ministros”, mãos de vaca com trabalhadores e pródigos em juros, juram que vão economizar R$ 18 bilhões, ou 0,3% do Produto Interno Bruto com a redução de benefícios sociais.

Foi anunciado um pacote de maldades que faz picadinho de direitos previdenciários e reflete largamente nas relações de trabalho, atingindo não apenas empregados como empregadores. Esse pacotinho, “embrulhinho pós-natal”, converteu-se nas Medidas Provisória nº 664/2014 e 665/2014, publicadas em edição extra do Diário Oficial da União de 30 de dezembro de 2014.

É impressionante como se legisla nos estertores de dezembro de cada ano.

As primeiras vítimas são os chamados cônjuges supérstites, ou, no linguajar popular, viúvas e viúvos de trabalhadores, cujas pensões estão insuportáveis aos cofres da Viúva, no dizer do jornalista Elio Gaspari.

Morreram trabalhadores demais nos últimos anos. Entre 2006, quando se gastava cerca de 39 bilhões de reais por ano com pensões, e 2013, houve um salto para 87 bilhões. Muito dinheiro para os mortos.

Mais urgente que reduzir as mortes, a equipe econômica entende que é preciso diminuir o valor com as despesas dos mortos.

Só que as pensões não vão para os mortos. Cuidam dos vivos!

O artigo 1º da MP 664, de 30 de dezembro de 2014, logo avisa a alteração da Lei 8.213/1991, instituindo carência de dois anos para pensão por morte, que não tinha previsão de qualquer período de carência para que o direito se viabilizasse.

Insere-se no artigo 25 da Lei 8.213 um novo inciso, IV, que diz “pensão por morte: vinte e quatro contribuições mensais, salvo nos casos em que o segurado esteja em gozo de auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez”.

Mulheres e maridos: cuidem para que seus maridos e esposas não morram nos primeiros vinte e quatro meses de contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social. Se tiverem que morrer, que seja em gozo de auxílio doença ou aposentadoria por invalidez.

Nesse período de carência, a morte está à solta e só terá cobertura em caso de acidente típico ou doença profissional ou do trabalho. Se a morte for natural, morreu, fedeu.

É evidente que isso ampliará o trabalho do Judiciário Trabalhista, na medida em que o nexo de causalidade entre emprego e causa da morte será definidor do direito previdenciário à pensão. Mais litígios no país dos processos e onde ninguém paga ninguém.

Mas há outra circunstância a ser considerada. Pensão não é para a viuvez adquirida em casamentos breves. Teremos agora a carência do casamento, ou melhor, o período mínimo de casamento ou união estável para legitimar o candidato à pensão.

O novo parágrafo 2º do artigo 74 da Lei 8.213/1991, alterado pela MP 664/2014, estabelece que “o cônjuge, companheiro ou companheira não terá direito ao benefício da pensão por morte se o casamento ou o início da união estável tiver ocorrido há menos de dois anos da data do óbito do instituidor do benefício”.

Afora a dificuldade de compreender o que seja esse “instituidor do benefício”, expressão inédita na Lei de Benefícios da Previdência Social, é interessante o preconceito que subjaz à proposta.

É dizer: atenção senhoras e senhores golpistas do baú da Previdência Social. Não adianta casar com o(a) moribundo(a). É preciso aguentar dois anos o traste.

Incide aqui, contra os trabalhadores e seus cônjuges, a desconfiança de que as pessoas se unem em matrimônio apenas pelo portentoso patrimônio que implica ser segurado da Previdência Social.

Há a suspeita de que todo o casamento é simulado, até prova em contrário ou até que se completem dois anos, período de carência do casamento, ou carência temporal do fim da carência afetiva.

Mas a esse parágrafo 2º foram excepcionadas as hipóteses de que a morte do(a) companheiro(a) tenha ocorrido em decorrência de acidente posterior ao casamento. Em síntese, somente se o casamento recente for havido na constância de benefício em curso ou com doença ou acidente de trabalho já existentes é que haverá pensão. Esse passa a ser visto como um casamento potencialmente lesador da Previdência Social, até que se completem dois anos de padecimento do cônjuge.

Além de carência de dois anos para o benefício pensão por morte e a exigência de um casamento ou união estável de tempo contado de, no mínimo, um par de anos, há outras tungas.

É que a pensão por morte não será mais integral.

Segundo a redação que se empresta ao artigo 75 da Lei 8.213/1991, o valor mensal da pensão por morte corresponde a cinquenta por cento do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento, acrescido de tantas cotas individuais de dez por cento do valor da mesma aposentadoria, quantos forem os dependentes do segurado, até o máximo de cinco.

Em síntese: vá trabalhar, viúvo(a)!

A pensão corresponderá apenas a metade do que é hoje. Aqui reside a maldade econômica. É mais difícil morrer e deixar um legado da pensão. Mas, além disso, se você, trabalhador(a), conseguir morrer com uma pensão ao cônjuge que sobreviveu, este vai receber apenas metade do que você receberia.

Metade, na melhor das hipóteses, porque existem ainda outros redutores. E o mais absurdo é que a pensão por morte passa a ser temporária, segundo uma tabelinha macabra, bem própria de cérebros de planilhas que se põem como aptos a pertencer a equipes econômicas governamentais.

De acordo com o parágrafo 5º do artigo 77 da Lei 8.213/1991, cuja inserção se deve à nova Medida Provisória, o tempo de duração da pensão por morte devida ao cônjuge, companheiro ou companheira, será calculado de acordo com sua expectativa de sobrevida no momento do óbito do “instituidor” segurado, conforme tabela abaixo:

Expectativa de sobrevida à idade x do cônjuge, companheiro ou companheira, em anos (E(x))

Duração do benefício de

pensão por morte (em anos)

55 < E(x) 3
50< E(x) £ 55 6
45 < E(x) £ 50 9
40 < E(x) £ 45 12
35 < E(x) £ 40 15
E(x) £ 35 Vitalícia

Em resumo: quanto mais jovem a viuvez alcançar a sua vítima, menos a beneficiária recebe. Só terá pensão vitalícia quem tenha expectativa de sobrevida inferior a trinta e cinco anos. A partir daí, quanto mais expectativa de sobrevida tiver, menos receberá. Absorvi a mensagem, presidente: que a pessoa se vire para sobreviver!

E quanto mais velha fica, menor a chance de receber pensão.

Regras de redução dos valores foram impostas aos benefícios pagos a título de auxílio doença. É que foi acrescido o parágrafo 10 ao artigo 29 da Lei 8.213/1991, o auxílio-doença não poderá exceder a média aritmética simples dos últimos doze salários de contribuição, inclusive no caso de remuneração variável, ou, se não alcançado o número de doze, a média aritmética simples dos salários de contribuição existentes.

O trabalhador, que tem no ambiente de trabalho de hoje uma das maiores fontes de doenças, passa a ter uma contingência não plenamente coberta: a enfermidade.

É óbvio que isso induz ao trabalho, ainda que o trabalhador esteja doente. E assim se dá o círculo vicioso que leva o enfermo a adoentar-se mais, a piorar e até morrer. Mas a Previdência fica com os cofres sadios. Não paga auxílio doença nem pensão.

Nem os empregadores estão felizes. Poderiam eventualmente entender que essa redução de benefícios sociais poderia contribuir com o “ambiente econômico”. Mas a previdência jogou sobre as costas de quem emprega parte de seus ônus.

É que, pela nova redação do artigo 43 da Lei 8.213/1991, os trinta primeiros dias da doença correm por conta do empregador. E aqui há um impacto direto de um direito trabalhista, consistente na estabilidade que o artigo 118 da Lei 8.213/1991 assegura.

Muitos dirão que somente depois de obtido o benefício previdenciário, agora dificultado pelo aumento do período de interrupção do contrato de trabalho (de quinze para trinta dias), e a alta médica, é que a estabilidade se deflagra como direito.

Tenho sustentado que a estabilidade do acidentado tem esse marco como termo inicial de sua contagem e não como condição de aquisição da estabilidade. E que, quando não houver afastamento previdenciário, a estabilidade se conta do retorno às atividades imediatamente depois da alta médica. Basta que a enfermidade física ou psíquica tenha como causa ou co-causa o trabalho.

No entanto, independentemente dessa discussão da natureza jurídica da alta previdenciária (se termo inicial da contagem do prazo de estabilidade ou condição desta), o fato é que haverá mais discussões e mais processos decorrentes dessa modificação de direito trabalhista, que não seria alterado, nem que a vaca tossisse.

A Medida Provisória altera, ainda, a Lei 10.876/2004, quanto aos peritos médicos da Previdência Social, a Lei 8.112/1990, o Estatuto dos Servidores Públicos e a Lei 10.666/2003.

Há a extensão de maldades aos pensionistas dos servidores públicos.

E, para quem acha pouco, temos também a Medida Provisória 665, de 30 de dezembro de 2014, que altera a Lei 7.998/1990, que regula o Seguro Desemprego, o abono salarial do PIS/PASEP e institui o “FAT” (gosto de pronunciar “fet”, tanto pela acepção em inglês do termo como pela aproximação fonética com a palavra fétido).

Ampliam-se as carências, reduzem-se as chances de alcance do primeiro seguro desemprego, até que o trabalhador tenha não um primeiro emprego, mas um primeiro emprego longevo, de mais de dezoito meses, nova carência para a primeira solicitação.

Depois, haverá mais carências de um ano, para a segunda solicitação e seis meses para as subsequentes.

Se nós temos muitos segurados em situação de desemprego, reduzamos não o desemprego, mas o seguro; essa é a lógica da “neoequipe” econômica.

O abono anual do PIS agora será proporcional ao período de trabalho e exigirá uma carência de 180 dias de trabalho e salários ininterruptos para a sua obtenção.

Por fim, o governo fisgou também os pescadores profissionais artesanais, reduzindo-lhes o seguro desemprego, pago durante o período em que lhes é defeso exercer a sua atividade, para a preservação das espécies piscosas.

O governo Dilma não condiz com a candidata Dilma. Mas dizer isso já é carne de vaca.

Fico a me indagar o que fazer do princípio do não retrocesso das garantias e conquistas sociais e da progressividade dos direitos humanos.

Aos trabalhadores ficou o amargo anúncio do tempo de vacas magras depois da promessa do tempo das vacas gordas. A vaca foi para o brejo. É isso que dá nomear ministros mãos de vaca: a vaca acaba tossindo. É preciso encontrar xarope para que a vaca deixe de tossir, coisa que não se vende, nem com marca de referência, nem como genérico.

Autores

  • Brave

    é advogado trabalhista, sócio de Moro e Scalamandré Advocacia, conselheiro e diretor da AASP, ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AAT/SP), Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT) e Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas.

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