Casos internacionais

Reconhecimento italiano de jurisdição compulsória gera divergências

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

2 de janeiro de 2015, 9h01

 Em tempos de divergências nas relações diplomáticas entre Brasil e Itália no que tange às possíveis extradições de Cesare Battisti a Henrique Pizzolato, a República Italiana alarga a competência de um órgão jurisdicional internacional para resolver conflitos com outros Estados. Em novembro de 2014, a Itália depositou junto às Nações Unidas sua declaração reconhecendo a jurisdição compulsória da Corte Internacional de Justiça, a Corte de Haia[1]. Trata-se de declaração através da qual a Itália admite a possibilidade que a Corte poderá resolver qualquer conflito com outro Estado que tenha realizado a mesma declaração. Neste breve comentário, alguns aspectos desta declaração e de como ela se insere no feixe de relações jurídicas internacionais serão analisados.

Partindo-se do pressuposto de que todos os Estados são soberanos e não estão submetidos à superior autoridade, para que um tribunal internacional possa adjudicar um conflito faz-se necessária a existência de declaração de vontade reconhecendo a jurisdição deste. Esta declaração de vontade pode ser formulada de diversas maneiras e a questão da verificação da existência de jurisdição é fundamental no contencioso internacional[2].

A declaração reconhecendo a jurisdição compulsória da Corte — também chamada de “cláusula opcional” — vem prevista no artigo 36, parágrafo 2 de seu Estatuto[3]. Nas palavras da própria Corte, “[d]eclarações de aceitação da jurisdição compulsória da Corte são facultativas, compromissos unilaterais que os Estados são absolutamente livres para realizar ou não”[4]. Através deste dispositivo, um Estado declara que aceita a jurisdição da Corte para resolver controvérsias futuras que possam surgir entre Estados que realizaram a mesma declaração. Portanto, um regime de reciprocidade rege as obrigações desta obrigação[5]. Em termos práticos, significa dizer que a partir da data do depósito, todos os Estados que realizaram a mesma declaração sob o artigo 36, 2, do Estatuto poderão levar à Corte Internacional de Justiça uma controvérsia contra a Itália.

Apesar da engenhosidade, o artigo 36, (2), não é o principal método pelo qual a jurisdição da Corte é ativada.  Contudo, o mecanismo vem ganhando crescente importância. Nos últimos anos é possível verificar um aumento do seu uso por parte dos Estados que recorrem à Corte. Para citar um exemplo, o recente caso entre Austrália e Japão acerca da Caça às Baleias teve o artigo 36, 2, como base para a jurisdição da Corte. Além disso, basta apontar que a Corte terá de deliberar num futuro próximo a respeito de aludido dispositivo nas controvérsias movidas pela República das Ilhas Marshall contra Reino Unido, Índia e Paquistão acerca da corrida e desarmamento nuclear.

A declaração de jurisdição compulsória pode ser limitada[6], de maneira que os Estados são livres para impor restrições às controvérsias que podem ser submetidas a Corte; tal como fez a Itália em sua declaração. A primeira limitação à jurisdição que se extrai do texto da declaração é de natureza temporal vez que a Itália reconhece a jurisdição da Corte para todas as disputas surgidas após a declaração e “em relação a fatos ou situações posteriores à mesma data”.

A primeira reserva à declaração italiana[7] é relativa a qualquer disputa em relação à qual as partes tenham acordado resolver exclusivamente por outro método de solução de conflito. Trata-se de uma típica reserva que valoriza a vontade soberana das partes escolherem o método pelo qual resolverão suas controvérsias – um basilar princípio jurídico insculpido no Capítulo VI da Carta das Nações Unidas. Sua intenção é mormente voltada a evitar que Estados membros da União Europeia se abstenham de se utilizar mecanismos intra institucionais de solução de controvérsias.

A segunda reserva à declaração italiana[8] é de maior complexidade, sobretudo sua interpretação. Divide-se em duas restrições. Através da primeira fica estabelecido que a Itália não aceitará a jurisdição da Corte para resolver uma controvérsia em que qualquer das partes tenha aceitado esta declaração unicamente para os fins daquela disputa. Na segunda, coloca um limite temporal de que só aceitará disputas de Estados que realizaram sua declaração por período superior a doze meses. O objetivo desta reserva é claro: respeitar a dialética confiança que os Estados membros da cláusula possuem; evitando aceitações momentâneas da jurisdição da Corte unicamente para fazer causa a um Estado que da cláusula participa. O problema se encontra em comprovar que um Estado realizou uma declaração unicamente para fazer causa a outro Estado. Aqui elementos textuais em relação à formulação da declaração, as reservas optadas e o tempo de depósito são elementos importantes para esta verificação; nesse sentido, a limitação temporal de doze meses auxilia nesta interpretação.

Apesar destas duas reservas, a declaração italiana é bastante ampla. Isto se verifica sobretudo quando é comparada com reservas a declarações realizadas por outros Estados, em particular àquelas que limitam a jurisdição da Corte materialmente. O exemplo paradigmático neste sentido é a reserva realizada pela Índia que limita desde a possibilidade de conflito entre Estados membros da Commonwealth, situações de conflitos armados, Estados com os quais a Índia não possua relações diplomáticas e a chamada cláusula Vandenberg, a qual exige que se a obrigação em questão seja objeto de um tratado multilateral, todos os membros deste tratado devem aparecer perante a Corte – o que praticamente inviabiliza, por exemplo, obrigações oriundas da Carta das Nações Unidas.

Todavia, nem Battisti nem Pizolatto poderiam hoje ser objeto de uma controvérsia na Corte com base nesta declaração italiana porque o Brasil não aderiu à cláusula opcional. Mais precisamente, o Brasil aceitou a jurisdição da Corte Internacional por um período de cinco anos a partir de 1948 e não renovou a declaração[9]. De todo modo, as valorações quanto à aderência ou não do Brasil a esta cláusula permanece como uma questão de política internacional.

Imaginando-se o hipotético cenário em que o Brasil deposite hoje sua declaração aceitando como compulsória a jurisdição da Corte de Haia. No que se refere ao caso Battisti, a Itália não poderia valer-se desta declaração para acionar a jurisdição da Corte, porquanto os fatos relativos à disputa são anteriores à declaração realizada pela Itália. Contudo, no que se refere ao caso Pizzolato, caso haja uma decisão judiciária italiana denegando a sua extradição, o Brasil poderia então recorrer à Corte Internacional de Justiça considerando que esta decisão estaria violando o direito internacional (aqui abrir-se-ia a discussão de qual é o fato que origina a controvérsia e, talvez por isso, se poderia excluir a jurisdição da Corte) – e isto, naturalmente, deveria acontecer após expirado o prazo de doze meses da reserva de jurisdição italiana.

Ademais, o vínculo para que a Corte Internacional de Justiça possua jurisdição em controvérsias surgidas entre o Brasil e Itália já existe[10] e não segue o modelo de jurisdição compulsória do artigo 36, 2, do Estatuto da Corte. De qualquer modo, a resolução de problemas jurídicos oriundos da interpretação deste tipo de cláusula é importante no atual contexto de relações diplomáticas ítalo-brasileiras.

O cotejamento analítico da forma em que posta a mais recente declaração de reconhecimento de jurisdição da Corte – potencializado pela crescente importância da cláusula opcional como mecanismo de acesso à jurisdição da Corte para solução de controvérsias interestatais – é uma fotografia da dinâmica relação que rege o fenômeno jurisdicional internacional e serve de elemento de reflexão jurídica seja ao Brasil como a outros estados latino-americanos.


[1] A íntegra da declaração em inglês esta disponível em

https://treaties.un.org/doc/Publication/CN/2014/CN.744.2014-Eng.pdf.

[2] Neste sentido ver HAMBRO, Edvard. The Jurisdiction of the International Court of Justice.  Recueil des Cours 76, 1950, pp. 121–215, bem como TOMUSCHAT, Christian. Article 36. In: n: A. Zimmermann, Ch. Tomuschat and K. Oellers-Frahm, The Statute of the International Court of Justice: a Commentary, 2nd ed., OUP, Oxford, 2012, pp. 633-711.

[3] Lê-se na versão em português do Estatuto, o qual é anexo à Carta das Nações Unidas: “2. Os Estados partes no presente Estatuto poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória, ipso facto e sem acôrdo especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Côrte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto:a) a interpretação de um tratado; b) qualquer ponto de direito internacional; c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria a violação de um compromisso internacional;d) a natureza ou a extensão da reparação devida pela rutura de um compromisso internacional”. Insta anotar que esta fórmula complexa de reconhecimento de jurisdição foi formulada por um brasileiro, o diplomata Raul Fernandes, quando da fundação da Corte Permanente de Justiça Internacional no âmbito da Liga das Nações.

[4] Corte Internacional de Justiça. Case Concerning Military and Paramilitary Activities In and Against Nicaragua (Nicaragua v. United States of America), Jurisdiction, ICJ Reports 1984, pp. 392, 418, para. 59.

[5] Neste sentido ver LAMM, Vanda. Reciprocity and the Compulsory Jurisdiction of the International Court of Justice, Acta Jur. Hung. 44, 2003, pp. 45–6.

[6] A possibilidade de limitação da cláusula opcional vem expressamente prevista no artigo 36, 3, do Estatuto da Corte, somado à construção jurisprudencial interpretativa da Corte que alargou as concepções do texto normativo. Sobre esta questão ver TOMUSCHAT, Article 36, p.

[7] O texto em inglês dispõe que a Itália não aceitará a jurisdição da Corte relativa a “(i) any dispute [in respect of] which the Parties thereto have agreed to have recourse exclusively to some other method of peaceful settlement”.

[8] O texto em inglês dispõe que a Itália não aceita a jurisdição da Corte relativa a “(ii) any dispute in respect of which the other Party, or any other Party to the dispute, has accepted the compulsory jurisdiction of the International Court of Justice only in relation to or for the purpose of the dispute; or where the acceptance of the Court’s compulsory jurisdiction on behalf of any other Party to the dispute was deposited or ratified less than twelve months prior to the filing of the application bringing the dispute before the Court”.

[9] United Nations Treaties Series, Treaty Number I:237, Vol. 15, p.221.

[10] Através dos artigos IV e XVI da Convenção de Conciliação e Solução Judiciária entre Brasil e a Itália, qualquer dos países poderá reportar à Corte uma controvérsia caso não seja esta suficientemente resolvida através dos métodos de conciliação previstos na Convenção.

 

Autores

  • Brave

    é doutorando em Direito Internacional pela Università degli Studi di Macerata (Italia), bolsista CAPES, Mestre em Direito e Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina. É pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Internacional Ius Gentium. É co-organizador do livro “A Formação da Ciência do Direito Internacional”, recentemente lançado pela Editora Unijuí e possui uma série de publicações acerca da Corte Internacional de Justiça.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!