Senso Incomum

O fim do Exame da OAB, o olho do Eike e o juiz dirigindo o Porsche

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26 de fevereiro de 2015, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]No final, entenderão como isso tudo está ligado!
Vamos voltar a um tema “grenalizado” (para falar da rivalidade entre Grêmio e Internacional nas terras gauche, que corresponde ao Fla-Flu, Atletiba, Cruzeiro-Atlético, Corinthians e Palmeiras…). É o Exame da OAB. Há poucos dias ele voltou à ribalta das notícias, com os projetos que estão sendo desarquivados na Câmara dos Deputados, uns extinguindo o Exame e outros dispensando juízes, promotores e delegados, uma vez aposentados, do respectivo exame. Sobre essa última questão nem vou falar. Afinal, primeiro teremos que definir se defensores e procurador — advogados públicos — devem se inscrever na OAB. Se sim, juízes, promotores e delegados devem fazer o Exame quando saírem da função e forem advogar. Se não, então obviamente estarão dispensados. Simples assim.

Poderia discutir também a questão atinente à fiscalização da OAB pelos Tribunais de Contas. Primeiro, parece engraçado esse súbito encantamento pelos Tribunais de Contas. Ali é que estaria o nirvana da transparência…. Graças a isso que a Petrobras, fiscalizada pelo TCU… Bom, o resto todos sabemos. Mas não quero, com isso, justificar uma não fiscalização. Trata-se de definir se legal e constitucionalmente, a OAB deve ser fiscalizada pelos TC’s. Não interessa o que eu quero. É o que está na CF. Ah, está ambíguo? Somos juristas e vamos debater isso em juízo. E ver o que o STF diz. E vamos fazer os devidos constrangimentos epistêmicos junto ao STF. O resto é torcida a favor e contra. Que não é o meu caso. A OAB necessita mudar em muitas coisas. Mormente na transparência, certo?

Vejam a bizarrice: Sócio de empresa de advocacia, tive que levar cópia autenticada de minha carteira… da própria OAB que me havia sido entregue dias antes. A OAB não pode se transformar em um grande cartório ou uma corporação de ofício. E ela deve se definir: ou faz política e, portanto, os que são da oposição oabediana esperam a sua vez quando assumirem o poder ou deve permitir mais acesso aos cargos e comissões da corporação para o resto da malta. E façamos eleição direta para presidente nacional. Voltarei a esses assuntos no futuro.

Porque agora quero falar do Exame da Ordem que querem extinguir. Isso parece uma discussão rasa. A própria Constituição faz a diferença entre bacharéis e advogados. Para chegar ao quinto constitucional,  por exemplo, não basta ser bacharel. Quem não for advogado público ou privado ou membro do MP não vai ao quinto. Pode até ir para o STF… mas aí já é outro papo (o que é isto  notório saber e conduta ilibada?). Ora, extinguir simplesmente o exame de ordem é cair em um estado de natureza pré-moderno. Até porque, sem exame, não há controle. E a própria OAB fica sem razão de existir.

Portanto, a OAB é importante. Fundamental. Por isso, não vamos atirar a água suja com a criança dentro. Salvemos o rebento, pois. E isso se faz promovendo alterações no famoso Exame de Ordem. Que não deve continuar como é hoje: um lugar para promover meia dúzia de livros de resumos e resuminhos que condensam a matéria que cairá na prova. Para ser mais claro: mude-se o Exame e mudaremos o ensino jurídico. Temos de ter coragem de assumir uma verdade: as faculdades alteraram seu ensino para se adaptarem à ditadura do Exame da ordem e seus quiz shows de baixa densidade epistêmico-jurídica. Basta ver que há poucos dias a Justiça Federal anulou a questão da Ladra Jane, que furtou um carro em Cuiabá, blá, blá e blá, questão que Cesar Bitencourt e eu detonamos aqui na ConJur. Ridícula, não a Jane, mas a questão, como tantas outras. Ou, por vezes querendo sofisticar, os arguidores da prova da OAB perguntam bobagens sobre Kelsen ou Recasens Siches, sem que os perguntantes (e nem os fazedores da prova) tenham lido tais autores.

A OAB não pode ficar refém de institutos ou empresas que elaboram os Exames. E as faculdades não podem ficar reféns dos Exames de Ordem. Bingo. E as Faculdades também não podem ser apenas um caminho inicial que necessita pagar pedágio para os cursinhos de preparação, indústria pesada que ganha milhões com a mediocridade do ensino jurídico. E o exame da Ordem faz a reciclagem disso tudo. E a indústria dos manuais e compêndios de mastigados, facilitados, twitados e resumidinhos, idem. A OAB, que vela pela democracia e pala ética  está nos seus estatutos  não pode sufragar um modelo que dia a dia estandardiza o ensino do direito. Sim, há que se colocar na conta da OAB também a culpa por isso-que-está-aí.

Por favor, não se faz faculdade de direito apenas com o objetivo de “passar no exame”. Estamos deixando de lado o principal para ficar com o periférico ou aquilo que é contingencial.  Em congresso no Superior Tribunal de Justiça, disse e está gravado à cúpula do Judiciário, que, alterassem as provas para ingresso na magistratura e em poucos anos mudaríamos o ensino jurídico.  O mesmo digo para a cúpula da OAB. Mas, atenção: Não deveria ser assim, é claro. As faculdades é que deveriam balizar os concursos e exames da OAB. E não contrário. Até o conselheiro Acácio sabe disso. Entretanto, em Pindorama, tudo vira do avesso.

A propósito, não estou falando que não devamos fazer perguntas objetivas. Com tanta gente, isso é inexorável. Não tem como escapar. Mas, por favor, não é necessário perguntar o que é rebimboca da parafuzeta ou qual é a tese que o professor de cursinho X desenvolveu acerca do princípio da primazia do consumo de pescoços de galos-índio... Ou fazer pegadinhas infames como a da ladra Jane que a Justiça anulou.

O modelo de ensino de direito de Pindorama hoje está voltado para concursos e Exame de Ordem. Não está voltado para a advocacia. Engraçado é que a OAB trata de advogados e de advocacia. Mas parece que o menos importa é que se formem advogados consistentes e não bacharéis que, como em uma corrida de cães, tem à sua frente uma lebre de mentira a incentivar o seu ímpeto.

Se acham que não estou falando a verdade, façamos uma vistoria, agora, no inicinho das aulas, por amostragem, em 50 cursos de Direito para verificar a bibliografia usada e indicada. E façamos uma visita aos cursinhos de preparação para ver qual é o método e a bibliografia utilizada. No horizonte: treinamento para adquirir informações. Como se informação fosse conhecimento, como se conhecimento fosse saber, como se saber fosse sabedoria. Observação: as grandes editoras não publicam e não querem publicar livros mais sofisticados. E sabem por que? Porque não são indicados nos cursos e cursinhos. Logo, não vendem. Direito em quadrinhos: eis o nirvana das editoras.

Portanto, é bisonha a discussão acerca da extinção do exame de Ordem. Mas é bisonha também a tese de que assim como está, está bem. Paremos de nos enganar. Quando[1] (a) um juiz faz duas audiências ao mesmo tempo, (b) os advogados são destratados nas audiências, (c) nos tribunais ninguém dá bola ao que o advogado escreve ou fala na sustentação oral, (d) um juiz diz que vai esmiuçar a alma do réu, (e) o meirinho grita no final da tarde “quem quer fazer acordo, lado direito…”, (f) petições “longas” são indeferidas, (g) manda-se que juízes só façam ou usem doutrina nas horas de lazer, (h) milhares de embargos de declaração são fulminados com a tese de que “não há obrigação de enfrentar todos os pontos”, (i) réus são condenados à mancheias por inversão do ônus da prova, (j) livros de baixíssima densidade podem ser vistos nas bancadas dos fóruns e tribunais e, pior, são citados em sentenças e acórdãos, (l) juízes ignoram o Código Civil em nome de pamprincípios, como se o judiciário fosse o superego da sociedade, tudo em nome de uma coisa chamada direito civil constitucional, (m) acórdãos sustentam que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é,  (n) o STF fica 8 meses com um ministro a menos e isso gera apenas um silêncio na comunidade jurídica, até porque ninguém quer se atritar com o establishment (o que inclui, por óbvio, a OAB), (o) ocorre uma “missa” para nomeação de cada ministro do STJ e STF, transformando um ato republicano em um périplo de beija-mão-de-empoderados-de-Brasília, (p) passam menos de 20% de candidatos na prova da OAB,   

será que nos damos conta de que essas pessoas passaram pelos bancos escolares, muitas delas fizeram cursinhos e leram essa literatura meia-boca que deveria ter uma tarja como nas carteiras de cigarro?

Parece que não nos damos conta. Despreparados sempre são os outros. O inferno são os outros. Alienação. Alieno-a-minha-ação. Por isso uma pessoa alienada ali-é-nada!  Portanto, sejamos republicanos e pensemos no futuro da nação. Nem terminar com o Exame de Ordem, nem deixa-lo como está: (a) Tirar urgentemente o monopólio de quem faz os concursos; (b) mudar a composição de quem está nas comissões sobre a reforma do exame e do ensino jurídico; (c) são quase sempre as mesmas figurinhas carimbadas; (d) Há notáveis demais nesse país tratando da mesma coisa há muito tempo. 

A esse propósito, faço minhas as palavras de Otavio Luiz Rodrigues Junior, ao encerrar a série de colunas sobre o ensino jurídico na Alemanha e seu exemplo para o Brasil, quando ele concluiu que:

"A específica questão dos exames deveria, contudo, ser objeto de ampla discussão sobre sua metodologia, o tipo de conhecimento exigido e, acima de tudo, seria imperativa a existência de controles sociais sobre o processo. Não se poderia admitir a perpetuação de bancas, a ausência de critérios formais para sua composição e que a sociedade deixasse de fiscalizar suas atividades, como infelizmente se dá hoje em muitas provas de ingresso em carreiras jurídicas." (clique aqui para ler). 

Há algo de podre no nosso reino do direito. Assim como está, não pode continuar. Por isso, sempre se pode fazer uma boa limonada desse limão. Antes de malharmos os críticos do Exame de ordem, pensemos no sofrimento de quem é vítima de quiz shows que são-apenas-a-consequencia-desse-modelo-de-faculdade-que-é-consequencia-de…bem, o círculo parece bem tautológico.

Afinal, Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?

Post scriptum I. O juiz e a alma do Eike Batista. Tudo o que escrevi acima tem a ver com o que está na entrevista do juiz do caso Eike Batista (ler aqui). É o retrato do atraso filo-epistêmico do direito de terrae brasilis. Quando digo que estamos atrasados, que estamos em um paradigma ultrapassado, muitos não acreditam. Dizem que filosofia é perfumaria. Que só serve para “complicar”… Pois é. Faz escuro, mas eu filosofo.

E digo que a questão fulcral no direito passa pela compreensão do lugar de nossa fala. Pois o juiz do caso Eike, ao dizer que vai olhar no olho de Eike e vai descobrir a personalidade dele (sic), verbis: “Até pelas minhas práticas budistas, tenho muita facilidade de saber quando a pessoa está mentindo ou falando a verdade. Vou esmiuçar a alma dele. Pedaço por pedaço”. Ao dizer isso, o juiz  nada mais faz do que comprovar o que venho denunciando. Pergunto: É isso que é “o direito brasileiro”? É isso que as faculdades ensinam? E disso que os livros de direito estão tratando? Vivemos uma vulgata de voluntarismo-mixado-com-algum-psicologismo decorrente de um paradigma subjetivista mal acabado. E o mais não preciso dizer, bastando ler a Saga do Cego de Paris 1, 2 e 3, aqui da ConJur (ler aqui) e que estão no livro Compreender Direito II (RT, 2014), sexto lugar do Prêmio Jabuti-2014.  Falta só aparecer alguém e dizer que vai utilizar hipnose ou algo assim.

Post scriptum II. O juiz e o Porsche do Eike. Recebo, na última hora, notícia de que o juiz do caso Eike, esse-que-disse-ter-muita-facilidade-de-saber-quando-a-pessoa-está-mentindo-ou-falando-a-verdade, foi flagrado dirigindo um dos automóveis apreendidos do…mesmo Eike Baptista de quem ele-iria-esmiuçar-a-alma (ler aqui).

Não sou aproveitador de notícias ruins ou bizarras. Conheço a história do filme Os Abutres. Mas, cá para nós, vou refazer a pergunta: O Que é Isto – O Direito de terrae brasilis? O que está acontecendo com o nosso país? Esgarçamos tudo? Se eu fosse místico, indagaria: Terrae brasilis está sendo vítima de uma pegadinha de Deus? Estamos sendo testados?  

Sic transit gloria mundi.


[1] Os itens de (a) a (p) já foram, de algum modo, objeto de colunas que escrevi aqui no Conjur. Os temas são recorrentes. Pindorama é pródigo nisso. Por aqui se faz de tudo.

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