Trabalho escravo

Direito não tolera imposição de pena por meio de portaria

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25 de fevereiro de 2015, 7h15

O Brasil figura entre os países que possuem dívida histórica com o princípio moral e jurídico de liberdade para o trabalho: por séculos admitiu a escravidão, deu porto à receptação de seres humanos traficados, e retardou quanto pode a abolição em nome da “preservação das lavouras” e de nossas instituições.

Passado envergonhado que se prolongará no curso do século XX.

Décadas após a abolição ainda fingíamos desconhecer a mercantilização de seres humanos e sua escravização ilegais no Brasil. Somente em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu formalmente, em pronunciamento perante a nação, de forma também pioneira para comunidade internacional, a existência do trabalho escravo no país.

Logo em junho de 1995, por meio da Portaria 550, o ministro do Trabalho criou a “atuação fiscal móvel” visando “potencializar o combate ao trabalho escravo, forçado e infantil”; inaugurando um importante itinerário de políticas públicas voltadas à erradicação do trabalho escravo contemporâneo, entre nós.

O ano de 2003, início da gestão do presidente Lula da Silva, traria decisivas alterações no cenário jurídico. A mais relevante foi a alteração do artigo 149 do Código Penal. Com a Lei 10.803/2003 o tipo penal “redução a condição análoga à de escravo” passou a compreender outras formas de escravidão, além da clássica privação da liberdade de locomoção do trabalhador, realçando as políticas de combate ao trabalho escravo e lhes impondo, simetricamente, redobrada responsabilidade. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por sinal, ratificaria mais adiante sua pertinência e constitucionalidade, no julgamento do Inquérito 3.412-AL, relatoria da ministra Rosa Weber (29.03.2012).

No ano seguinte, por meio da Portaria 540, de 15 de outubro de 2004, do MTE, foi criada a “lista suja do trabalho escravo”, denominada “Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo”, previsto seu envio, pelo MTE, a diversos Ministérios e aos mais importantes bancos públicos do país.

A norma que rege atualmente a “lista suja”, repetindo o figurino da 540/2004, é a Portaria Interministerial 2/2011, do MTE em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos.

Ambas as Portarias (MTE 540/2004 e PI MTE/SDH 2/2011), por força da decisão monocrática de 27 de dezembro de 2004, na ADI 5209, tiveram sua eficácia liminarmente suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.

Em tese, a confecção e a difusão de uma “lista” contendo o nome dos empregadores, infratores da proibição de trabalho escravo, conferindo-lhes publicidade e tornando os delinquentes por ela nominados passíveis da restrição de crédito em bancos públicos, exclusão de licitações etc., constituiria (sanção) das mais inteligentes, potencialmente eficazes e bem-vindas por todo democrata de boa-fé.

O que os fundamentos do direito moderno e os preceitos do sistema jurídico brasileiro não toleram é a criação de figuras jurídicas destinadas à imposição aos infratores, pelo Estado, de sanção (pena), mesmo que de índole não criminal, por meio de “portarias”, “decretos” ou por quaisquer outras disposições administrativas.

O princípio é claro e de compreensão singela: somente lei autoriza a criação e a imposição de sanção! … E as autoridades prolatoras das citadas portarias conhecem-no muito bem; tão bem que insistem em justificar o recurso à “gambiarra” ao argumento de que “não se trata de sanção mas de ‘efeito’ derivado de sanção imposta pela fiscalização trabalhista”. Ocorre que inexiste lei, trabalhista ou não, que contenha, entre as modalidades de sanção, o lançamento do nome de empregadores infratores em “lista” pública, seja para lhes condicionar o crédito em banco público, seja para promover o prejuízo na sua imagem e reputação institucional.

No subtexto (não assumido) do discurso oficial murmuram-se velhos queixumes ao “conservadorismo” e ao “patrimonialismo” do nosso Congresso. A constatação “sociológica” não autoriza, porém, a escolha de “atalhos” no caminho da legalidade. Bem ao contrário: evidencia e enaltece a relevância política do princípio da legalidade.

Não se aceitam “atalhos” simplesmente porque o caminho da legalidade é exigência política imposta à democratização do poder do Estado. Não se confere ao agente político “cheque em branco” para a criação e a imposição de sanção aos administrados. Tal preceito, na democracia, não comporta exceção por orientação partidária, ideológica, moral; nem mesmo por “nobreza de propósitos”.

Gambiarras tornam a punição certamente mais fácil e atraente, ao mesmo tempo em que, pelos mesmos motivos, menos legítima, transparente e passível de controle público.

Agiu bem o Supremo, até aqui, ao reconduzir a matéria aos trilhos do Estado de Direito.

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