Contas à vista

Assim é se lhe parece, a cor do gato chinês e o planejamento financeiro no Brasil

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

24 de fevereiro de 2015, 10h50

Spacca
Está coluna circula na semana após o Carnaval, quando se convencionou dizer que o ano novo começa no Brasil. Claro que se trata de um gracejo, mas tem seu fundo de verdade. No âmbito político já tivemos a posse dos chefes dos poderes executivos da União e dos estados, bem como dos membros dos poderes legislativos desses entes federados. Também ocorreu a indicação e nomeação para os ministérios e secretarias nos estados. Houve também a eleição dos chefes dos poderes legislativos da União e dos estados, sendo que no âmbito federal, que é bicameral, as duas casas elegeram como Presidentes políticos do PMDB — um razoavelmente alinhado com a Presidência da República no Senado, e outro francamente contrário às suas posições políticas, na Câmara.

Toda essa movimentação acima descrita lembra um jogo de xadrez. O tabuleiro está armado, mas o jogo começa mesmo nesta semana. O que esperar do Brasil este ano?

Penso que revelações da operação "lava jato" devem deixar o meio empresarial e político em suspenso por todo o ano. A economia vai andar de lado. O mundo jurídico vai acompanhar com bastante atenção seus desdobramentos, tendo os advogados criminalistas já relatado os muitos abusos vêm sendo cometidos pela Polícia Federal e pelo Poder Judiciário. Vamos ver como se posiciona colegiadamente o STF — que deve ter um novo ministro indicado nos próximos dias, na vaga de Joaquim Barbosa, que renunciou há meses. Os debates sobre corrupção vão invadir todas as searas, das penais às financeiras, envolvendo desde o Poder Judiciário até as decisões empresariais de investir, passando pela análise dos Tribunais de Contas.

As grandes linhas do grande debate financeiro vão se dar no âmbito congressual. O ano se iniciou com a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, o que ocorreu com certo atraso. E até hoje continuamos sem o Orçamento de 2015, o que é uma lástima (o Projeto de Lei foi enviado mas não foi votado). E deve ser enviado ao Congresso o Plano Plurianual do segundo mandato de Dilma Rousseff, válido para os próximos quatro anos. Tudo isso depende de votação no Congresso.

Teremos ainda os debates sobre a prorrogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU), o que desvirtua completamente a programação orçamentária, pois as receitas que são vinculadas tornam-se livres por este mecanismo, e passam a poder ser usadas de forma desvinculada pelo Governo, que alocará estas receitas sem a obrigatória destinação que lhes havia sido determinada pelo ordenamento jurídico, inclusive o constitucional. Esse mecanismo não é privilégio do atual governo. Quem inventou essa mágica orçamentária foi um Ministro da Fazenda chamado Fernando Henrique Cardoso (o que ocorreu através da Emenda Constitucional de Revisão 1, de 1994), posteriormente Presidente da República, e foi seguida pelos presidentes Lula e Dilma. O que deveria ser provisório tornou-se "definitivo a prazo certo", ou seja, renovado a cada punhado de anos. Uma provisoriedade que já dura 20 anos. Será que permanecerá por muitos mais? O que o Congresso decidirá?

Outro debate importante será o da definição do superávit primário que deveremos buscar em 2015. Depois do debate vazio do final do ano passado, que resultou na Lei 13.053/14, teremos outra batalha para estabelecer quanto deveremos poupar para pagar nossos credores, principalmente os internos. Depois dizem que as análises do economista francês Thomas Piketti estão erradas… Os credores determinam os rumos da política econômica nacional — o que é também uma cartilha seguida pelo Brasil desde o governo FHC, sem exceção. A distinção é que antes a maior parte da dívida era em títulos lançados no exterior, em dólar, e hoje é em títulos emitidos no Brasil, em reais. Porém, de ambas as formas, são os credores que dominam o cão, e não o cão que balança o rabo.

O fato é que o ano começa com o país dividido como sempre foi, sendo suficiente ler nossa Constituição, fruto das marchas e contramarchas em suas votações, e ver o esforço exegético que necessita ser feito para compatibilizar alguns de seus artigos e incisos. A última eleição para Presidência da República, tal como as mais recentes, demonstra a divisão política do país, que se aprofunda. E várias providências urgentes devem ser adotadas, em conjunto com o Congresso Nacional, e não há nenhuma previsão sobre seus desdobramentos. 

Luigi Pirandello, emérito dramaturgo e escritor italiano, prêmio Nobel de literatura, escreveu um livro cujo título foi utilizado nesta coluna: "Assim é se lhe parece", onde conta a história de uma pessoa que chega para morar em uma cidade e os mexericos ocasionados por sua presença, com várias versões sobre sua vida pregressa e atual. Um fato, várias versões. Cada qual lê como quiser, porém o fato não muda.

Isso vem ocorrendo no Brasil. Vejamos alguns exemplos recentes da divisão de percepção política que grassa pelo país. Para alguns a Presidente é corrupta e deve ser impichada do cargo; para outros ela é uma caçadora de corruptos, pois esta nódoa sempre existiu, e só agora é que está sendo colocada a nu e combatia devidamente no Brasil.

Para alguns analistas os trabalhadores do setor jurídico público estão muito mal remunerados, e devem receber aumentos através de honorários ou de gratificações/auxílios como o de moradia concedido ao Poder Judiciário. Para outros, trata-se de mais um exercício ilegítimo do poder de pressão que tem esses setores, o que só aumenta as desigualdades entre esse grupo de trabalhadores com o de outros setores no poder público — porque professores, médicos, engenheiros, contadores, policiais e outras profissões tem uma distância salarial tão grande em face dessas profissões jurídicas?

Para alguns, a infraestrutura brasileira está estagnada. Para outros existem inúmeras hidrelétricas sendo construídas, portos e aeroportos sendo modernizados, e diversas obras de infraestrutura vem sendo licitadas.

Estamos sofrendo o reflexo de uma grande crise econômica mundial ou se trata apenas das consequências de um governo imprevidente que se sucedeu na União e que está "pagando o pato" por sua má gestão?

Todas estas questões desembocam no Congresso Nacional recém eleito e que deve decidir sobre os grandes rumos financeiros do país, em conjunto com a Presidência da República. O mesmo se dá, em outro nível, nos estados.

Há um ditado chinês que diz que não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos. Estamos seguindo este ditado no Brasil? No caso, o "rato" é a ultrapassagem do subdesenvolvimento e a concessão pelo Estado de um mínimo de dignidade a todos, o que deve ser perseguido a qualquer custo.

Penso que nos falta um projeto nacional de desenvolvimento, que os diversos governos devam seguir, qualquer que seja sua cor. Sem este projeto nacional de desenvolvimento, através do qual a sucessão de governos deva se vincular, continuaremos a ser um país de um futuro que tarda a ocorrer para todos, embora permaneça brilhando para alguns.

(Dedico esta coluna ao meu amigo Hugo Moura, que estava ansioso por que faria 60 anos em 2015, no dia dos advogados. Não fará. Saiu para bailar na sexta-feira gorda).

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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