Segunda Leitura

"Lava jato": Aspectos jurídicos da audiência com o ministro da Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

22 de fevereiro de 2015, 8h00

Spacca
A mídia noticiou, dias atrás, que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, recebeu o advogado Sérgio Renault, que defende os interesses da UTC, uma das empreiteiras acusadas de corrupção nas ações penais decorrentes da chamada operação “lava jato”. A visita teria sido intermediada pelo ex-deputado federal Sigmaringa Seixas, que tem livre trânsito na área política do Partido dos Trabalhadores.

O fato teve enorme repercussão. O ministro da Justiça deu explicações simplórias. Inicialmente, afirmou que teria recebido o advogado na antessala e incidentalmente, porque ele iria almoçar com Sigmaringa Seixas, que é seu amigo. Depois, afirmou que teria obrigação legal de receber advogados.

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, reivindicou a demissão do ministro da Justiça, por tentar influenciar o andamento das ações penais. Os partidos da oposição pediram investigação da Comissão de Ética e Disciplina da Presidência da República e manifestaram intenção de convocar o Ministro para comparecer ao Senado.

Expostos, sinteticamente, os fatos, façamos uma análise sob o ponto de vista jurídico. Mais razão, menos emoção.

O Ministério da Justiça tem suas atribuições reguladas pelo Decreto 6.061, de 2007. Entre elas, cabe-lhe zelar pela política indigenista, nacionalidade e imigração, política penitenciária, combate à lavagem de dinheiro e supervisionar a Polícia Federal.

O ministro da Justiça, no comando do ministério, chefia estas áreas de grande interesse para a nação. Porém não tem a mínima, a mais remota, interferência no Poder Judiciário. Ele não nomeia, não remove, nem promove juízes. Eventualmente ele exerce um papel importante na indicação de nomes para ministros dos tribunais superiores (STJ, TST, TSE e STM) e do Supremo. Aí exerce uma função política, recebe os candidatos e opina a respeito junto à Presidência da República. Mas, no que interessa à operação “lava jato”, o ministro da Justiça não tem qualquer acesso ou possibilidade de interferir nas decisões judiciais.

Superado este aspecto, vejamos a razão da audiência com o advogado Sérgio Renault. Segundo Raymundo Passos, na reunião “Cardozo fez algumas considerações sobre os próximos passos e, concluindo, desaconselhou a UTC a fechar um acordo de delação premiada”i. Teria, assim, dado uma orientação de como proceder.

O ministro Cardozo afirmou que é obrigado a receber advogados, por força de lei. Vejamos se assim é. O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, no artigo 7º, inciso VI, letra “c”, menciona ser direito do advogado buscar informação em qualquer repartição judicial ou pública na qual deva colher prova ou informação útil ao exercício de sua atividade. Nada mais lógico. Imagine-se, por exemplo, a necessidade de obter no Detran a cópia de um auto de infração. Óbvio que o advogado tem e deve ter este direito, porque representando o interessado ele age em seu nome e deve ser-lhe permitido acesso às provas ou informações.

Coisa totalmente diversa é um advogado pretender e ter direito de ser recebido pelo presidente da República, ou mesmo por um ministro de Estado. O artigo de lei citado fala em ser recebido por “qualquer servidor ou empregado” e obviamente aí não se incluem agentes políticos. Ademais, fere o bom senso que milhares de advogados fossem ao MJ pedir exame de situações individuais de seus clientes, por exemplo, cumprindo penas em presídios sem condições.

Obviamente, os chefes de Poder receberão os advogados para tratar de assuntos de interesse da classe. Por exemplo, o presidente nacional da OAB pedir uma audiência ao presidente da Câmara dos Deputados para expor uma preocupação da classe com um projeto de lei. Perfeito. O interesse é genérico e não individual.

Portanto, do ponto de vista legal, não havia nenhuma obrigação do ministro da Justiça receber o advogado.

Entretanto, após os questionamentos surgidos em razão da visita, afirmou o ministro Cardozo que o advogado teria ido reclamar de vazamento das informações sigilosas nos processos. Aí então haveria um nexo processual entre a audiência e as ações penais. Se foi esta a razão da visita, tudo indica que ela foi feita à pessoa errada. Os depoimentos sigilosos não podem ser divulgados, mas, se isto aconteceu, a reclamação teria que ser endereçada às Corregedorias do Ministério Público Federal ou do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. E se estes órgãos se omitissem, poderia ser feita reclamação ao Conselho Nacional do MP ou ao Conselho Nacional de Justiça.

A ocorrência deixa algumas lições que podem auxiliar na forma de proceder no futuro. A primeira delas é que as audiências das autoridades públicas merecem um estudo mais profundo, pouco se tem discutido a respeito. Rotineiramente elas são colocadas no site do ministério, mas, evidentemente, um ministro pode receber quem ele quiser fora da pauta. Basta que ele considere isto necessário. O que não pode é receber alguém com interesse direto em algo que o ministro possa influenciar ou mesmo que possa fazer supor que ele possa influenciar. A imagem perante a população deve ser resguardada, é um ônus do cargo. Aqui vale o mesmo rigor com que foi tratada Pompéia, a mulher de César, segundo o milenar dito popular: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer ser honesta”.

Por outro lado, audiências devem ser públicas, transparentes. Em um país no qual a população não crê em nada, em quase ninguém, o melhor a fazer é ser absolutamente transparente. Justificativas inconvincentes e frases evasivas induzem todos a crer que algo errado está se cometendo.

Esta é a primeira vez que o assunto é discutido por força da ação de uma alta autoridade do Poder Executivo. No Poder Judiciário, a discussão é antiga. O Estatuto da OAB permite ao advogado dirigir-se ao juiz (artigo 7º, inciso VIII). Em princípio, não há nada de errado nisto. Imagine-se, que um advogado procure o juiz pedindo preferência na liberação do FGTS de um cliente acometido de moléstia fatal. Todavia, se a ação for de grande complexidade ou envolva conflito de grandes proporções econômicas, sociais ou políticas, é de boa cautela o juiz receber o advogado na presença do advogado da parte contrária. Assim se procede, rotineiramente, na Justiça norte-americana.

Coisa muito diferente é uma audiência com pedido de interferência em troca de um favor de qualquer espécie. Há alguns anos um ministro do STJ foi aposentado pelo CNJ por fazer este tipo de solicitaçãoii.

Não se olvide que o tráfico de influências é crime previsto no artigo 332 do Código Penal, punido com reclusão de dois a cinco anos. No entanto, alterar este tipo de conduta depende mais de uma postura ética de cada um e da reação da sociedade diante do problema.

Finalmente, sempre vem à discussão como isto se passa em outros países. A resposta é simples. O grau será menor ou maior de acordo com os índices de corrupção existentes. Se tomarmos as estatísticas da “Transparência Internacional”iii, chegaremos à conclusão de que o tráfico de influência nem sequer é cogitado em países como Dinamarca, Finlândia ou Nova Zelândia. Mas, provavelmente, faz parte da rotina de países que ocupam as últimas posições, como Somália, Granada ou Afeganistão.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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