Observatório Constitucional

Ministro Moreira Alves deixou legado de discrição e independência para o STF

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21 de fevereiro de 2015, 7h00

Spacca
O estudo da atividade da jurisdição constitucional apresentou desenvolvimento doutrinário curioso no Brasil. Com a Constituição de 1988, o Direito Constitucional ressurge no Brasil com as promessas de realização da justiça social e da democracia. Seu tom é renovado, já que precisa incorporar em seu discurso o potencial valorativo diluído no texto constitucional pelo momento psicológico e sentimental criado com a Constituinte entre 1987 e 1988. Os estudos teóricos e acadêmicos se proliferaram alimentados pela descoberta do caráter principiológico da Constituição. A busca pela melhor metódica de decisão constitucional passou a ditar os objetivos de nossos doutrinadores. Com a “ajuda” da teoria estrangeira, passou-se a falar de princípios e métodos de interpretação, argumentos de decisão e, com isso, alicerçou-se cientificamente o ativismo político do Tribunal dos últimos 10 anos.

O tempo mostrou que esse formato de discussão das questões constitucionais encontraria algum tipo de esgotamento, seja por conta das impossibilidades de realização prática das promessas, seja porque a lógica de uma teoria geral dos direitos fundamentais ou da jurisdição constitucional rapidamente mostraria suas óbvias incoerências internas.

O fato é que aparentemente encontramo-nos agora em um ponto de encruzilhada para o estudo da jurisdição constitucional no Brasil. Dentre estudiosos e doutrinadores, há colegas que ainda acreditam que vivenciamos nos últimos anos um problema de “boa teoria” ou de “boa metodologia” e, assim, nosso desafio agora é refazer novas tentativas acadêmicas para uma formatação, por assim dizer, mais prática das propostas a partir de diagnósticos mais claros do que “realmente” acontece no STF. Enquadram-se nesse ambiente de preocupações, os trabalhos e pesquisas que se focam hoje no estudo dos processos de decisão colegiada e nos instrumentos de argumentação plenária e de diálogo entre os Ministros da Corte. Também estão aqui os trabalhos e levantamentos que buscam as estatísticas e os números que explicariam o Tribunal.

Por outro lado, a decepção com as possibilidades da “teoria geral” do STF trouxe também um segundo grupo de pesquisadores e estudiosos que apresentam como preocupação principal uma espécie de resgate da história do próprio Tribunal, na linha de uma tentativa de se entender como a Corte se colocou em momentos difíceis de sua experiência institucional, como foi seu passado jurisprudencial, como pensavam seus antigos componentes e, ao fim, como se deu a formação pouco linear de sua própria identidade.

Evidentemente, os dois grupos a que me referi não se excluem necessariamente, a não ser por uma questão de prioridade de estudo e, talvez, pelo estilo de pensar o STF. No que se refere ao estudo da historia da Corte, estamos ainda a nos debater em questões metodológicas centrais que, de alguma forma, comprometem nossas conclusões e turvam nossa visão retrospectiva.

Temos a tendência de ler o passado com os olhos e as referências do presente, achamos que os valores que nos são fundamentais hoje eram também para nossos antepassados, fazemos julgamentos morais da atuação do Tribunal, criticamos sua posição nesse ou naquele caso e costumamos resumir a história de um julgamento aos termos jurídicos plasmados em seu acórdão sem investigar o enredo politico em que se inseriam. Todas essas posturas “metodológicas” acabam por projetar visões maniqueístas e simplistas do passado do Tribunal e, com esses padrões rudimentares, equivocadamente classificamos facilmente as fases da Corte em retrógrada, covarde, hesitante, civilista, etc.

Talvez o exemplo mais claro da forma peculiarmente maldosa com que se lê o passado, seja a maneira genérica com que se rotula o STF no período militar (1964-1985) e se julgam os ministros indicados nessa época. Certamente o excesso de simbolismo e “estórias” desse período reforça a projeção pouco realista que ainda se nutre daquele Supremo Tribunal Federal[1].

Outro exemplo eloquente desse reducionismo que prejudica a avaliação aberta e cuidadosa do passado é a já célebre diferença entre o atual STF e aquela composição que funcionou até 2002-2004. Para muitos, um novo paradigma de jurisdição constitucional surgiu após 2004 acompanhado por um evidente processo de renovação dos seus quadros.

Certamente depois de 2004 algo diferente passou a nortear os trabalhos da jurisdição constitucional no Brasil, talvez uma nova filosofia, um novo modelo de se pensar as questões constitucionais e, assim, ressignificar o papel político do STF. Após um período de deslumbramento com a figura onipresente e onisciente do STF, os problemas começaram a se apresentar – aliás, como é natural em qualquer modelo de posicionamento político.

O problema, entretanto, residiu no elenco de características adjetivadas que se costumou a levantar para opor o moderno, corajoso e ativista STF de hoje com o antiquado, hesitante e tímido STF de antes de 2002-2004. Diz-se que o de hoje assume o seu papel político, previsto na Constituição como guarda intransigente dos princípios; o de ontem era ortodoxo demais, pouco aberto às possibilidades axiológicas trazidas pela Constituição. Seria esse mesmo o nosso dilema?

Nesse quadro de redução de complexidades, têm-se promovidas verdadeiras injustiças nas análises que acabam por prejudicar a idoneidade do estudo. Um dos grandes exemplos é a forma pobre com que se avalia hoje o legado do ministro Moreira Alves e do que alguns chamam de a “Corte Moreira Alves”.

Para muitos pesquisadores, seu papel protagonista em determinado período do Tribunal (1975-2003) define, de fato, uma época e sua aposentadoria representou o fim de um ciclo[2]. Sua figura como inigualável jurista é inquestionável e, por isso, mesmo a referência à sua autoridade técnica vem repetidamente sendo lembrada, muito embora nem sempre como um elogio a um componente do STF, mas como um traço de certa incoerência para o perfil político ou ativista que hoje se espera de um juiz da Corte. Talvez os tempos sejam outros e sólida formação jurídica aliada a distanciamento político não sejam mais atributos que gostaríamos de ver em um Ministro da Corte… Certamente ele não teria lugar em uma “Corte abastada de realidade política[3].

Nesse contexto, em referência ao ministro Moreira Alves são comuns expressões como “um civilista na Corte Constitucional[4] ou mesmo o destaque às suas contribuições em matéria de controle de constitucionalidade como uma espécie de elogio de consolação.

Em realidade, o que se tem é o atordoamento pelo fato de que uma personalidade jurídica com o perfil intelectual e pouco afeita à autopromoção como o ministro Moreira Alves ter se tornado um dos principais artífices na construção da própria imagem institucional do STF e, assim, ter contribuído inestimavelmente para o próprio Direito Constitucional no Brasil. Como isso foi possível? Um civilista retrógrado tem tanta importância para a nobre ciência do Direito Constitucional?

Realmente, por meio de seus impactantes votos e sua lógica intransponível construída em ambiente de absoluto improviso moldou verdadeiras estruturas do pensar em Direito Constitucional que se firmaram como jurisprudências consolidadas do STF. Para tanto, utilizava-se da sofisticação do pensamento jurídico clássico e de um afiado senso prático e consequencial. Nunca esmiuçou a “teoria constitucional”.

Não há como ignorar que ele muito fez para a interpretação constitucional sem apelar para os doutrinadores de momento, sem compartilhar das referências bibliográficas que hoje costumam povoar nossos trabalhos doutrinários em Direito Constitucional. Isso não deixa de ser acintoso para aqueles que comungam da idéia de um novo Direito Constitucional, mais principiológico e menos tributário dos estudos da velha teoria geral do direito.

Os exemplos se multiplicam quando se rememora a passagem desse gigante do STF. Seu “civilismo” e seu impressionante domínio do conhecimento jurídico tradicional trouxeram luzes ao Tribunal em diversos momentos. O voto no RE 94.462, julgado em 06.10.1982, tornou-se referência para os estudos de prescrição e decadência no direito tributário e consolidou-se na base do atual entendimento do STF sobre a questão. O entendimento exposto na ADI nº 493, julgada em 25.06.1992, no qual se fez a famosa distinção entre retroatividade máxima, media e mínima para se concluir que nenhuma delas se admite no Brasil, é uma impressionante contribuição à interpretação do artigo 5º, XXXVI, da Constituição. Já no RE nº 226.855, julgado em 31.08.2000, a lógica do Ministro Moreira Alves fez a fundamental diferença entre questão constitucional e questão infraconstitucional a partir da ideia de direito intertemporal, resolvendo assim, em definitivo, um estrutural problema de nosso sistema recursal e constitucional.

Em matéria estritamente constitucional, por assim dizer, a excelência do ministro já é conhecida, especialmente na construção de nosso modelo de controle de constitucionalidade. Foi ele um dos responsáveis por imprimir a correta leitura e compreensão dos institutos do controle concentrado em um momento dominado pelo desconhecimento e pela desinformação[5]. Se hoje alguma das bases do sistema de fiscalização abstrata de leis nos parece óbvia por demais, isso se deve ao magistério do Ministro Moreira Alves e aos seus impactantes votos.

Porém, suas contribuições não se encerram nesse ponto em matéria de teoria constitucional. É possível compilar um verdadeiro manual de interpretação constitucional com suas reflexões argutas quando examinou os problemas mais intrincados submetidos ao STF. Cito apenas três exemplos de um conjunto bem mais vasto de possibilidades jurisprudenciais.

É do ministro Moreira Alves o magistral voto proferido no MS 20.257, julgado em 08 de outubro de 1980, por meio do qual se criou a tese do direito público subjetivo do parlamentar, uma verdadeira revolução constitucional bem antes de 1988 e que serviu de base para a idéia de direito publico subjetivo das minorias no Congresso Nacional[6]. Um dos casos mais famosos do STF em matéria de ponderação de valores foi de sua relatoria quando se balanceou os valores da livre iniciativa e livre concorrência com a defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais na Questão de Ordem na ADI 319, julgada em 3 de março de 1993. Finalmente, no voto proferido na ADI 815, julgada em 28 de março de 1996, o ministro Moreira Alves enfrentou e resolveu a delicada questão da alegação de inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias, prestigiando a idéia de unidade da Constituição.

De fato, em lapidar referência ao antigo mestre, o Ministro Gilmar Mendes já identificara o ponto fora da atual curva que representou a passagem do Ministro Moreira Alves nos seus 25 anos de trabalho no STF: “… não deixa de ser perturbador para muitos o fato de que o desenvolvimento e significativas conquistas relacionadas com a jurisdição constitucional no Brasil estejam indelevelmente associadas a um nome que a imprensa cotidiana costuma classificar como prócer maior das ideias conservadoras no Supremo Tribunal Federal.”[7]

A contribuição do ministro Moreira Alves e a força de seu legado ainda está por merecer um tratamento mais honesto daqueles que hoje se debruçam no estudo da história do STF. Trata-se de uma contribuição que não se limita ao nosso sistema de controle de constitucionalidade e nem sequer à sofisticação técnica de suas posições nos mais variados temas do direito, desde a época em que o STF não se limitava a tratar dos assuntos de natureza constitucional.

Esse retrato do passado, que ainda merece ser aprimorado e limpo de nossos preconceitos simplistas, ainda ignora a figura única e genial do Ministro Moreira Alves também – e principalmente – na formatação do papel e da postura de um ministro componente do STF e, por conseqüência, da própria imagem institucional da Corte.

Sua seriedade, transparência e coerência no trato das questões do STF são notórias[8]. Moreira Alves é do estilo clássico de juiz: não falava com a imprensa, apenas se manifestava nos autos, nas turmas ou em plenário, julgava pessoalmente seus casos, pouco delegava internamente e nunca nas funções judicantes. Constrangia-se com homenagens e não eram raras as vezes que as dispensava. Entendia que o debate franco de ideias é que produzia, a longo prazo, um STF forte e respeitado e, por isso mesmo, gostava das discussões[9]. Talvez tenha sido o ministro que melhor incorporou a posição de decano da Corte, uma vez que funcionou destemidamente como defensor da jurisprudência do Tribunal e da qualidade de suas decisões.

Para ele não havia tese politicamente correta e nem a possibilidade de influência política. Sua independência sempre foi certeza para o jurisdicionado, testada repetidamente como no famoso MS 21.564, julgado em 23 de setembro de 1992.

Essa talvez seja um das maiores contribuições dadas pelo ministro Moreira Alves para a herança histórica do STF. Seu legado foi deixar para a nova composição que começou a se formar após 2004, um STF forte, discreto, independente, com autoridade institucional e respeito do jurisdicionado, um Tribunal que atua com unidade e bem administra as suas diferenças técnicas, teóricas e ideológicas. A cada geração de ministros essa responsabilidade se renova. No “romance em cadeia” da história do STF, o ministro Moreira Alves foi coautor de um dos capítulos mais importantes e menos lidos.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Toma-se como exemplo o chamado “caso das chaves” que teria sido protagonizado pelo então Presidente, Ministro Ribeiro da Costa, e o famoso episódio – ainda pouco esclarecido, mas muito lembrado – da “renúncia” do Ministro Adauto Lúcio Cardoso quando o plenário do Tribunal julgava a constitucionalidade do Decreto-lei nº 1.077 em 1971.
[2]Em entrevista concedida ao site ConJur em 7/6/2013, o então advogado Roberto Barroso, por exemplo, indicava, em determinada resposta, a aposentadoria do Ministro Moreira Alves como um dos marcos da mudança para o Tribunal que não impedia mais a realização das “potencialidades do texto de 1988” http://www.conjur.com.br/2013-jun-07/entrevista-luis-roberto-barroso-ministro-supremo-tribunal-federal
[3] A expressão é do próprio Ministro Moreira Alves e foi utilizada em entrevista concedida ao jornalista Juliano Basile em agosto de 2011. http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI139953,81042-Em+entrevista+Moreira+Alves+comenta+que+STF+se+tornou+outro+Tribunal
[4]FERREIRA, Siddharta Legale; FERNANDES, Eric Baracho Dore. O STF nas “Cortes” Victor Nunes Leal, Moreira Alves e Gilmar Mendes. In: Revista de Direito GV, vol. 9, nº 1, São Paulo, jan/jun de 2013;
[5]MENDES, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: C. Bastos – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, pág. 143;
[6] MS nº 26.441, relator Min. Celso de Mello, julgado em 25.04.2007;
[7]MENDES, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: C. Bastos – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000, pág. 144;
[8] Cito a referência feita recentemente por Luis Nassif que bem exemplifica a seriedade do Ministro Moreira Alves http://jornalggn.com.br/noticia/ives-gandra-nao-e-moreira-alves
[9] Em homenagem que recebeu por conta de seu “Jubileu de Prata” em 09.06.2000 o Ministro Nelson Jobim, que falou em nome da Corte, jocosamente brincou com essa sua característica ao dizer que: “Ele é o objeto do discurso. E terá que ficar só ouvidos. Não poderá apartear. Está fora da polêmica. Nada de palavras. Mudo. Talvez, posando de emoção. MOREIRA não poderá usar do gesto e da expressão conhecida: ‘tendo em vista a circunstância de que…’”

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