Segurança processual

STJ nega revisão criminal a ex-policial condenado por ato obsceno em 1959

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20 de fevereiro de 2015, 19h57

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, manteve uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, de ofício, alterou o resultado de julgamento de revisão criminal para indeferir a absolvição de um ex-policial condenado a seis meses de prisão em 1959 por ato obsceno contra uma criança de 11 anos dentro de um ônibus lotado na cidade de São Paulo.

O recurso especial interposto pela viúva e pelos dois filhos do ex-policial, que mais de 50 anos depois do ocorrido ainda tentam reverter a condenação, foi rebatido pelo ministro Rogerio Schietti Cruz, que proferiu o voto condutor da decisão da 6ª Turma.

O ministro afirmou que no julgamento da revisão criminal houve “fraude, engodo, ilícito que apontou, inclusive, para possível prática de falsidade ideológica”. Ele ressaltou que o acórdão que concedeu a absolvição, em sua integralidade, foi “manipulado de forma atentatória à credibilidade do Judiciário e à ética que deve permear todos os atos oriundos desse poder da República”.

Retratação da vítima
Como noticiado pela revista Consultor Jurídico em 2009, a viúva e os filhos do ex-policial condenado apontaram à Justiça, em 2007, e através de um pedido de revisão processual, uma retratação da vítima, à época já uma senhora sexagenária. Na retratação, ela afirmou que havia sido forçada a afirmar em juízo que sofrera abuso por parte do policial.

O Ministério Público apresentou um parecer afirmando que os fatos narrados não existiram. Segundo o procurador de Justiça Júlio César de Toledo Piza, a condenação teve como fundamento depoimentos falsos. Para o MP, seria preciso que o guarda civil estivesse louco para praticar o ato aceito pela Justiça.

Decisão de ofício
Mauro Henrique Queiroz, falecido em 1998, foi condenado em 1959. Morto em 5 de janeiro de 1998 de câncer no pâncreas, o ex-policial nunca se conformou com a condenação. Em janeiro de 2008, ao julgar a revisão criminal, o 3° Grupo de Câmaras Criminais do TJ-SP negou o pedido de absolvição por 11 votos a 2. Contudo, o acórdão publicado trouxe um resultado exatamente oposto, deferindo a revisão criminal e o absolvendo.

Em novembro de 2009, o tribunal paulista retificou o julgamento de ofício e inverteu o resultado, negando o pedido de absolvição. Essa modificação foi contestada no STJ pelo recurso especial da viúva e dos filhos do ex-policial.

Em 16 de setembro daquele ano, o caso de reparação de erro judiciário pelo TJ-SP foi citado durante o julgamento de um caso similar pelo advogado Daniel Bialski, conforme a ConJur noticiou à época. A absolvição chegou a ser festejada pela família Queiroz, mas chamou a atenção da Presidência do tribunal, que detectou o engano na publicação do resultado.

Segurança jurídica
Os parentes do ex-policial alegaram que, com a retificação, houve violação à coisa julgada e ofensa ao princípio da segurança jurídica. Para os recorrentes, o TJ-SP não poderia ter modificado sua decisão sem que houvesse a interposição de recurso, ainda mais porque já tinham se passado quase dois anos desde o trânsito em julgado.

Alegaram, também, que o Regimento Interno do TJ-SP prevê que a modificação de votos somente pode ser feita até a proclamação do resultado. Os familiares ainda apontaram que, na hipótese de ter ocorrido irregularidade ou erro, esses foram cometidos dentro do tribunal, sem nenhuma participação das partes e do advogado.

Gravidade
O ministro Sebastião Reis Júnior (foto), relator do caso, votou pelo

STJ
provimento do Recurso Especial para anular a retificação de julgamento e restabelecer o acórdão que concedeu o pedido de absolvição, sustentando que deveriam prevalecer a autoridade da coisa julgada e o princípio da inércia da jurisdição — que determina que só haja determinação de uma corte quando ela for provocada a se posicionar sobre um assunto.

Após ter vista dos autos, o ministro Rogerio Schietti se disse surpreso e preocupado com a gravidade dos fatos. Ele verificou que o acórdão da ação revisional, que fora negada pela maioria dos desembargadores, seguiu o voto do relator, vencido no julgamento, e deu como acolhido o pedido revisional. “Como compreender o desfecho do processo, tal como publicado?”, questionou Schietti, ao comentar que o julgamento se deu com ampla publicidade e participação das partes.

Reportagem esclarecedora
De acordo com o ministro, a resposta está no próprio processo, em despacho proferido no dia 5 de novembro de 2009 pelo desembargador Damião Cogan, então presidente do 3° Grupo de Câmaras Criminais do TJ-SP. Ele pediu vista dos autos após ler reportagem da Folha de S. Paulo, de 1º de novembro daquele ano, que revelava a existência de decisão que não era verdadeira.

O desembargador se manifestou perplexo ao perceber que a revisão tinha sido deferida, em votação informada como unânime, para absolver Mauro Henrique Queiroz. Maior surpresa teve quando viu que a tira de julgamento assinada eletronicamente consignou tal fato e mandou o acórdão para publicação, quando a decisão ali retratada não espelhava a verdade do julgamento.

STJ
“O resultado e o conteúdo da decisão foram forjados, manipulados em favor do réu”, afirmou Schietti (foto), para quem “o provimento judicial deve ser construído com a garantia de participação simétrica daqueles sobre os quais recairão seus efeitos”. Schietti afirmou que o erro foi proposital e que, por essa razão, o recurso especial está fundamentado em mentira que jamais poderá ser considerada legítima. Isso porque, segundo ele, “nenhum efeito de proteção do sistema processual pode ser esperado da publicação de um acórdão cujos conteúdo e resultado foram forjados”.

Correção
De acordo com o ministro, a atitude do TJ-SP, ao retificar a decisão anterior, apenas desconsiderou o ilícito, o que poderia ter sido feito em qualquer momento. Schietti lembrou que a desconstituição de decisão terminativa de mérito em que se declarou extinta a punibilidade do réu não é inédita. O próprio Supremo Tribunal Federal já procedeu dessa forma, apontou, diante da comprovação, posterior ao trânsito em julgado, de que a motivação da decisão é falsa.  

No Habeas Corpus 55.901, o ministro Cunha Peixoto destacou que “uma decisão proferida em tais circunstâncias, fundada exclusivamente em fato insubsistente, é juridicamente inexistente, não produz efeitos, mesmo porque a tese contrária violaria o princípio segundo o qual é inadmissível que o autor de um delito venha a ser beneficiado em razão da própria conduta delituosa”.

Para Rogerio Schietti, não se trata de rejulgamento da revisão criminal, como os familiares do falecido queriam que fosse reconhecido, mas de simples decisão interlocutória por meio da qual o Judiciário, diante da constatação de flagrante ilegalidade, corrige o ato e proclama o resultado verdadeiro.

“A proposta do recorrente é que está a revelar verdadeira ofensa ao princípio do devido processo legal, aqui analisado sob o prisma dos deveres de lealdade, cooperação, probidade e confiança, que constituem verdadeiros pilares de sustentação do sistema jurídico-processual”, concluiu o ministro. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Leia a íntegra do voto vencedor do ministro Rogério Schietti.
Clique aqui para ler a íntegra do acórdão.
Clique aqui e aqui para ler a cobertura do caso pela ConJur em 2009.

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