Função constitucional

Judiciário tem poder para rever atos administrativos com base na razoabilidade

Autor

20 de fevereiro de 2015, 7h52

O devido processo legal surgiu na Inglaterra em 1215 com a apresentação da declaração de direitos chamada "Magna Carta de Libertatibus" ou "Great Charter". Naquele contexto, revelou-se necessária a oposição deste documento ao rei João-Sem-Terra (John Lackland) em razão das diversas arbitrariedades de seu governo, tal como a exigência de elevados tributos, que foi obrigado a aceitá-la e a respeitar os direitos ali previstos, sob pena de perda de apoio político por parte dos barões feudais, como relata Paulo Fernando Silveira, em sua obra Devido Processo Legal.

Assim, houve pela primeira vez na história a previsão normativa do instituto do devido processo legal. A sua conquista assegurou que nenhum homem seria privado de seus bens, sua liberdade ou seus direitos sem ser submetido a um processo. O devido processo legal foi recepcionado pelos Estados Unidos da América e incorporando às primeiras Declarações de Direito dos estados independentes. Antes mesmo do surgimento das 5ª e 14ª emendas da Constituição, o due process of law via-se inserido naquele sistema.

O devido processo legal nasceu para assegurar a regularidade procedimental, definindo regras e condutas que deveriam ser observadas pelas partes e pelos órgãos julgadores. Entretanto, com o decorrer do tempo, viu-se a necessidade de ampliar a principiologia que o revestia, dando origem à sua acepção substantiva, como bem descreve Carlos Roberto Siqueira Castro no seu livro O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade.

O direito norte americano, diante do pragmatismo calvinista, do interesse de independência e da expectativa de prosperidade econômica, preconizou a proeminência do Poder Judiciário sobre o Legislativo ao limitar o alcance das normas jurídicas e possibilitar a invalidação das normas contrárias à Constituição, conforme Carlos Roberto Siqueira Castro, na obra já mencionada.

Tratava-se da previsão da igualdade dentro da lei, como a garantia legal da isonomia aos ex-escravos e seus descendentes. Seria também a compreensão de que a igualdade deveria ser interpretada como requisito para o alcance do due process.[i]

No Brasil, foi por meio da Constituição de 1988 que se viu pela primeira vez a previsão legal do instituto do devido processo legal. Nos moldes do que foi previsto pela Magna Carta e pela Constituição americana, reza o inciso LIV do artigo 5º que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Complementa essa garantia a previsão do inciso LV do mesmo artigo que diz que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Com efeito, trata-se da Constituição que mais ampliou o rol de garantias e direitos fundamentais. Há doutrinadores, porém, que entendem que o princípio do devido processo legal esteve todo o tempo previsto nas Constituições brasileiras de forma implícita, na medida em que o Judiciário reconhecia a violação ao direito de defesa, mesmo sem fazer menção direta ao instituto. De qualquer forma, foi mesmo somente com a promulgação da Constituição vigente que as decisões judiciais passaram a aludir expressamente ao devido processo legal[ii].

No que diz respeito à utilização do devido processo legal substantivo para revisão das decisões administrativas, faz-se necessário adentrar minimamente na esfera de atuação dos administradores públicos para sua melhor compreensão. Com efeito, bem se sabe que a administração pública dispõe dos poderes vinculado e discricionário, sendo, resumidamente, o primeiro a necessidade de o administrador seguir estritamente os termos da lei; e o segundo a opção de o administrador, dentro de determinadas margens conferidas pela lei, decidir entre um ou outro caminho, permitindo-lhe mais de uma solução[iii], dentro da legalidade.[iv]

Daí porque em tese não poderia o Poder Judiciário invadir esse espaço reservado pela lei ao administrador, pois, se assim procedesse, estaria substituindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, poderia decidir diante de cada caso concreto.

No entanto, com relação ao ato discricionário, o Judiciário pode apreciar os aspectos da legalidade e verificar se a Administração não ultrapassou os limites normativos. Neste caso, pode o Judiciário invalidar o ato porque a autoridade ultrapassou o espaço livre deixado pela lei e invadiu o campo da legalidade, desrespeitando-o[v].

Fica claro que o ato administrativo, em seu aspecto vinculado, poderá sofrer todo tipo de intervenção estatal, vez que, se não obedecer aos estritos ditames legais, caracterizará ilegalidade no sistema jurídico[vi]. Por outro lado, a esfera discricionária do ato jamais poderia ser avaliada pelo Judiciário por ser área reservada à atuação exclusiva do administrador.

O devido processo legal substantivo pode ser entendido como o embasamento do controle jurisdicional por meio do qual se busca a adequação dos atos administrativos, como forma de equilibrar o exercício do poder estatal, com a preservação dos direitos fundamentais do cidadão administrado[vii].

É com a permissão desta ferramenta que o Poder Judiciário adentrará na esfera de atuação da administração pública, examinando até mesmo as questões concernentes ao mérito administrativo, visto que sem esse controle estaria a administração dotada de poder ilimitado, possibilitando arbitrariedade, o que é repudiado pelo direito administrativo.

Assim, tem-se no substantive due process of law espécie de poder político, uma ferramenta que permite ao Poder Judiciário adentrar na análise do conteúdo do ato administrativo, com o escopo de verificar se observa os pressupostos de justiça, necessidade e razoabilidade. Surge, assim, nova vertente que defende a possibilidade de exame do ato administrativo também quanto ao seu mérito. Um dos adeptos dessa nova vertente é o jurista Celso Antonio Bandeira de Mello. Ele defende também que, por princípio, nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF). É assim, com base neste princípio, que os atos administrativos deverão ser examinados até mesmo quanto à sua substância. No mesmo sentido é a posição de Lúcia Valle Figueiredo.

Em suma, os princípios constituem verdadeiros vetores jurídicos condutores dos grandes valores consagrados na Carta Maior e em todo o ordenamento. Por esta razão, além de respeitar a norma, os atos administrativos deverão observar, sobretudo, as verdades fundantes da ciência jurídica. Conclui-se, pois, que o Judiciário tem poderes para examinar a adequação dos motivos invocados pela administração pública para emanação do ato, adentrando no mérito administrativo e avaliando os princípios valorizados pela administração[viii].

O processualista Cândido Rangel Dinamarco ensina ser o devido processo legal substantivo uma forma de autolimitação do poder do Estado, convertendo-se num instrumento para limitar a própria legislação[ix]. É possível afirmar que a jurisprudência caminha para o entendimento de que negar ao Judiciário a possibilidade de revisar os atos da administração pública seria o mesmo que conferir poder ilimitado ao administrador. Contudo, o poder da administração está restrito aos ditames legais até mesmo na discricionariedade, na medida em que sempre haverá parâmetros a observar, sob pena de cassação pelo Poder Judiciário, conforme Celso Antonio Bandeira de Mello em sua obra Curso de Direito Administrativo. Abre-se, assim, importante caminho para atuação dos administrados contra exceções, injustiças e irregularidades perpetradas pelos administradores, permitindo-se que atos desta natureza sejam reexaminados pelo Poder Judiciário no desempenho de sua função constitucional de aplicar a lei.


[i] BUENO, Vera Scarpinella, Devido Processo Legal na Administração Pública, Coord. Lucia Valle Figueiredo, ed. Max Limonad, São Paulo, 2001, p. 19.

[ii] LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1999. P. 165-174.

[iii] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª edição. São Paulo: Melhoramentos. 2010. P. 120-121.

[iv] FIGUEIREDO, Lúcia Valle, Curso de Direito Administrativo, 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 215.

[v]PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 23ª edição. São Paulo: Atlas. 2010. P. 217.

[vi] No mesmo sentido Hely Lopes Meirelles: “a discricionariedade é sempre relativa e parcial, porque, quanto à competência, à forma, e à finalidade do ato, a autoridade está subordinada ao que a lei dispõe, como para qualquer ato vinculado. Com efeito, o administrador, mesmo para a prática de um ato discricionário, deverá ter competência legal para praticá-lo; deverá obedecer à forma legal para a sua realização; e deverá atender à finalidade legal de todo ato administrativo, que é o interesse público. O ato discricionário praticado por autoridade incompetente, ou realizado por forma diversa da prescrita em lei, ou informado de finalidade estranha ao interesse público, é ilegítimo e nulo” (Cf. MEIRELLES, 2010, p. 122 (grifos do autor)).

[vii] Cf. LIMA, 1999, p. 273.

[viii] Repise-se que para Hely Lopes Meirelles o exame do Poder Judiciário limita-se à apreciação da legalidade, in verbis: “em tais atos (discricionários), desde que a lei confia à Administração a escolha e valoração dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador, porque não há padrões de legalidade para aferir essa atuação” Vale destacar, o que o doutrinador condena é a troca de aferição de discricionariedade do administrador pelo do juiz: “erro é considerar-se o ato discricionário imune à apreciação judicial, pois a Justiça poderá dizer sobre a sua legitimidade e os limites de opção do agente administrativo, ou seja, a conformidade da discricionariedade com a lei e os princípios jurídicos” (Cf. MEIRELLES, 2010, p. 123/159 ).

[ix] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7ª Ed. rev. São Paulo: Malheiros. 2013. P. 250.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!