Direito Comparado

Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (parte 4)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

18 de fevereiro de 2015, 7h00

Spacca
A usina de mandarins
O Império da China era governado “de cima para baixo por uma burocracia confuciana, recrutada com base no sistema de exames que talvez seja o mais exigente de toda a história”. De fato, “aqueles que aspiravam a uma carreira no serviço imperial tinham de se submeter a três etapas de exaustivas provas realizadas em centros de exame constituídos especialmente para essa finalidade, como aquele que ainda hoje pode ser visto em Nanquim: um enorme complexo murado contendo milhares de minúsculas celas um pouco maiores que o lavatório de um trem”. Nesses lugares tão estreitos, “o único movimento permitido era a entrada e saída de funcionários para repor comida e água, ou recolher dejetos humanos”. Alguns dos postulantes, “ficavam completamente loucos sob a pressão”.[1]  

Essa descrição dos exames para ingresso no serviço do Senhor dos Dez Mil anos, o Filho do Céu, o imperador da China, nos tempos da dinastia M’ing, é interessante para se comprovar que, mesmo com séculos e quilômetros de distância, a mística dos exames admissionais integra a cultura de diferentes povos. E ela vem sempre acompanhada de um momentum, um curto hiato de tempo no qual os candidatos têm de demonstrar sua capacidade para vencer o desafio imposto por examinadores. Seria este o coroamento de anos de preparação, com a abertura de um pedaço do céu para os vencedores e a oferta de uma vida mais perigosa e incerta para os derrotados.

Em certa medida, é este o ponto de culminância do ensino jurídico alemão: os famosos Exames de Estado (ou Exames Estatais). Se a universidade alemã criou os “professores mandarins”, como visto em coluna anterior (clique aqui para ler: http://www.conjur.com.br/2015-fev-04/direito-comparado-produz-jurista-alguns-lugares-mundo-parte), os estudantes de Direito da Alemanha tem de se submeter a um duríssimo ritual de passagem, que definirá o resto de suas vidas profissionais e que responde, em grande medida, pela elevação do nível médio de formação do jurista daquele país.

A regionalização do ensino jurídico na Alemanha
Os Länder alemães gozam de considerável autonomia legislativa e executiva em termos de ensino jurídico. Daí ser inadequado falar em modelo unificado de currículo e de avaliações para todo o país. Essas discrepâncias são acompanhadas pela assimetria qualitativa entre as faculdades de Direito de diversas regiões do país. Dito de modo mais explícito: até na Alemanha há cursos de qualidade irregular e não é o fato de ser uma instituição alemã que a torna de per si um centro de excelência jurídica. Dois pontos, contudo, são comuns aos Länder: a quase totalidade dos cursos são públicos (como visto na parte 2 desta série) e o acesso à universidade é amplo, desde que o candidato haja preenchido os requisitos de ingresso. Por essa razão, as salas lotadas e a dificuldade de se comparar o modelo alemão com o norte-americano, cujos alunos custeiam pessoalmente seus estudos em instituições privadas.

Feitas essas advertências, vamos aos Exames de Estado:

Os Exames de Estado e seu impacto na formação discente e nas carreiras jurídicas
Vamos fazer uma apresentação diferente nesta seção da coluna. Começaremos do final do processo para retornarmos ao início. O leitor compreenderá a vantagem desse método.

Segundo dados da Rede Europeia de Justiça em matéria civil e comercial[2], as carreiras jurídicas de magistrado, membro do Ministério Público e advogado possuem as seguintes características:

a) Magistratura. O juiz (Richter) é um agente político e sua seleção varia conforme as normas locais. Em geral, a escolha para os cargos de início de carreira dá-se pelo ministro da Justiça das unidades federadas ou por meio de um comitê de busca, cuja composição é variável, podendo haver juízes, advogado, políticos e personalidades de relevo. Os tribunais federais (por exemplo, o Bundesgerichtshof –Tribunal Federal de Justiça e o Bundesverwaltungsgericht – Tribunal Federal Administrativo) têm seus membros escolhidos por um comitê de busca federal e pelo ministro de Estado competente para o respectivo tribunal. Os magistrados federais devem sua nomeação ao presidente da República.

O cargo é privativo de nacionais alemães e não há, como visto, um concurso público para ingresso na carreira. É necessário, porém, que o candidato seja bacharel em Direito e haja sido aprovado no Segundo Exame de Estado. Suas notas nesses exames definirão fortemente suas possibilidades de ser escolhido para o cargo.

b) Ministério Público. Seus membros são denominados de magistrados do Ministério Público (Staatsanwälte). O processo de seleção é muito assemelhado ao dos juízes.  Não há autonomia administrativa e independência funcional. Em última análise, reportam-se ao ministro da Justiça do respectivo Lander ou da República Federal, conforme seus vínculos de carreira. Os requisitos para o cargo equivalem-se aos de juiz, tendo enorme peso a nota nos Exames de Estado. Não há restrição a que membros de outros Estados da União Europeia sejam membros do Ministério Público.

c) Advogados. São profissionais liberais e possuem status de “órgãos independentes da administração da justiça”. É necessário ter uma licença para o exercício da advocacia, obtida por meio de um processo pelas Rechtsanwaltskammern (Câmaras de Advogados).  O ingresso na advocacia exige do interessado o atendimento dos mesmos requisitos para o acesso à carreira de juiz, com ressalvas em se tratando de advogados europeus.  É necessária aprovação no Primeiro e no Segundo Exame de Estado.

Existem outras carreiras, mas fiquemos com essas três.

O que há de comum entre elas? A ausência da figura do concurso público, como nós o conhecemos no Brasil. Entretanto, o filtro de entrada é comum às três carreiras e ele tem natureza dupla: é aplicado no final do curso de bacharelado (Primeiro Exame de Estado) e depois do período de 2 anos que antecede à aplicação do Segundo Exame de Estado.  Não é sem causa que um jurista alemão coloque em suas páginas pessoais, currículo e, alguns, em seus livros que foram aprovados nesses exames, com indicação do local (pois há variações entre exames aplicados por este ou aquele Lander) e da nota obtida. É este o mais importante cartão de visitas de um jurista alemão para o mercado de trabalho. Pode-se dizer que esses exames são o combustível da usina de mandarins alemães.

O Primeiro Exame de Estado(PEE)[3]
Este primeiro exame, que é qualificado como “estatal” por ser aplicado pelos Länder e suas autoridades, de modo independente das universidades, exige dos candidatos a capacidade de solucionar problemas práticos (estudo dos casos) por meio da aplicação da lei. As questões conceituais, como bem anota Tilman Quarch, “só são feitas na parte das Zusatzfragen (perguntas adicionais)”. O paradigma das questões do Primeiro Exame é o trabalho de cassação, ou seja, a verificação de erros de direito, à semelhança do que faz o Superior Tribunal de Justiça no Brasil no exercício dessa competência, e do Tribunal Federal de Justiça alemão, de modo mais específico. Neste exame, o Gutachtenstil (estilo de parecer) é o predominante.[4]

As notas no PEE variam de zero a 18 pontos. Tilman Quarch, em tabela apresentada no referido artigo publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo, que nós coordenamos, demonstra a importância e o impacto desses resultados.[5] 0,15% dos candidatos ficam com notas entre 14-18 pontos. No intervalo de 11,50-13,99, estão 3,10% dos certamistas. A terceira faixa – 9-11,49 pontos – compreende 14,24%. O grosso das notas está nos intervalos de 6,50-8,99 (26,78%), 4,00-6,49(26,78) e 1,50-3,99 mais 0-1,49 (28,95).[6] 

O PEE é aplicado por tribunais locais (v.g. Renânia do Norte-Vestefália) ou por um órgão do Ministério da Justiça do Lander (v.g. Baixa Saxônia), cabendo sua elaboração e correção por comissões de variável composição (juízes, magistrados do Ministério Público, advogados do Estado, professores.

O Segundo Exame de Estado (SEE)[7]
 Durante a faculdade, não há formação prático-profissional, como os estágios no Brasil. Essa etapa ocorre precisamente após o aluno ter concluído o curso e haver sido aprovado no PEE. Após isso, ele inicia um período de Referendariat, um estágio obrigatório de duração média de 2 anos, no qual “o Referendar (assim se chama o jurista-estagiário durante o Referendariat) aprende a Relationstechnik, i.e., a “técnica de relação” dos fatos que corresponde à observância dos ônus da alegação e da prova (Darlegungs– und Beweislast) tal como está disciplinada pelo processo civil alemão”.[8]

O Referendar, em tese, estagia em tribunais, no Ministério Público e em escritório de advocacia, além de outros ofícios aonde tenha interesse ir. A intenção é que ele se familiarize com as diferentes formas de exercício profissional e, ao fim, escolha a que irá seguir. É possível que este venha a escolher o magistério superior. Nesse caso, a experiência no Referendariat não lhe será inútil: ele a usará na docência ou, em muitos casos, na oferta de pareceres (o que alguns professores fazem diretamente ou por meio de contratação do instituto de pesquisa ao qual está vinculado) ou ainda quando os professores são chamados a integrar os tribunais regionais ou as cortes superiores.  Não é necessário ter o SEE para ingressar no magistério. Mas, é quase impossível que alguém seja aceito como docente universitário sem o SEE e com notas medíocres no exame. O estagiário recebe um bolsa durante o Referendariat.

A estrutura de notas do SEE é muito próxima à do PEE. Tomando-se novamente o exemplo do exame da primavera de 2013 no Estado de Baden-Württemberg, desta vez com dados do SEE, veja-se essa aproximação nos resultados, em ordem decrescente: 14-18 pontos (muito bom, 0,37%); 11,50-13,99 (bom, 1,12); 9-11,49 (plenamente satisfatório,19,33%); 6,50-8,99 (satisfatório, 38,66%); 4-6,49 (suficiente,  30,11%) e 1,5-3,99 (deficiente)e 0-1,49 (insuficiente), com o percentual de 10,41. As notas do padrão baixo (deficiente e insuficiente) apresentaram maior diferente no SEE, o que se explica pela seleção ocorrida no PEE, que eliminou os piores candidatos.[9]

O impacto dos Exames de Estado
Os efeitos dos resultados dos exames na vida profissional são imensos. A reprovação por duas vezes impede a obtenção do título. Não há terceira oportunidade. As notas acumuladas abaixo de 9 inviabilizam a contratação na maior parte dos escritórios e, se estas ocorrem, dão-se em condições menos vantajosas e após maior tempo de espera.  A colocação nos exames também determina a carreira jurídica, sendo as mais prestigiadas destinadas aos que obtiveram notas mais elevadas.[10] 

Por conta de críticas ou de opções políticas governamentais, adotou-se uma composição mista do Exame de Estado, com a integração de até 30% da nota por uma avaliação feita pela própria universidade. Segundo Tilman Quarch, essas notas universitárias “não são levadas a sério pelo mercado de trabalho”, o que leva os candidatos a pedirem que elas sejam discriminadas no currículo, a fim de evitar confusões.[11]  

O modelo alemão é meritocrático e implacável com os que não alcançam resultados satisfatórios em sua vida universitária e no estágio preparatório ao SEE. A preocupação em se ficar preso nas frestas do sistema ronda os estudantes e os torna mais conscienciosos de que não há uma terceira oportunidade. Os efeitos colaterais são também notórios: a) menor preocupação com disciplinas não dogmáticas; b) direcionamento da vida universitária para uma boa formação voltada aos exames estatais. Os defensores do modelo, contudo, reagem com 2 argumentos: a) os bons alunos interessar-se-ão por disciplinas não dogmáticas e seguirão os estudos nesses temas por vontade, associando os dois saberes. Saber Filosofia não é impeditivo que se conheça bem Direito Penal; b) a média geral qualitativa dos alunos termina por se elevar, o que justifica a conservação do modelo.

Quando este colunista participou da Comissão do Ministério da Educação para a Reforma do Ensino Jurídico brasileiro (2013-2014), um dos pontos que colocamos para apreciação dos pares foi a introdução de algo semelhante ao Primeiro Exame de Estado no Brasil. Era uma forma de retirar o peso da avaliação dos alunos sobre os professores e também de uniformizar os padrões de qualidade do ensino, além de inserir o Estado como um agente mais próximo do que era produzido nas faculdades de Direito. A ideia não foi apoiada pela maioria dos membros do comitê. Ponderou-se que não havia condições de introdução desse modelo no Brasil nas circunstâncias atuais.

O Repetitorium
Como prometido na última coluna, vamos falar muito brevemente dos cursinhos jurídicos alemães. Trata-se de uma instituição muito antiga, oriunda do final do século XVIII e que hoje é operada majoritariamente por lucrativas empresas privadas (bem longe do conceito de “instituição de caridade”), apesar de algumas universidades manterem um Repetitorium público para seus estudantes. As aulas são voltadas à preparação para o exame estatal e têm seu público formado por estudantes universitários.

Muito da literatura jurídica alemã sobre Direito Civil ou Direito Penal, traduzida para o português e que é citada por autores brasileiros como se fossem “grandes obras”, não passam de livros de cursinhos alemães, com seus estudos de casos e questões específicas para quem deseja se submeter ao exame estatal.

Alguns desses “resumos” são elaborados por professores universitários, pelo que recebem bons valores em direitos autorais. No entanto, eles não lecionam nessas instituições. É igualmente impensável que um docente de Repetitorium seja admitido como professor em uma universidade alemã respeitável.

Conclusões

Encerramos hoje a longa viagem pelo riquíssimo modelo de ensino jurídico alemão. Com suas virtudes e seus problemas, o exemplo da Alemanha deve ser estudado com profundidade. Muitas das soluções ali encontradas não são compatíveis com a realidade nacional, seja pela diferença na seleção dos professores, seu prestígio e sua representação social, a existência dos exames estatais e a formação prático-profissional ser diferida para depois da universidade. Apesar disso, a investigação sobre essa experiência evita que se propaguem muitos mitos sobre o que seria melhor para a qualidade do ensino jurídico, como se procurou demonstrar nesta série de colunas.

A ética meritocrática, a existência de mecanismos de exclusão (praticamente) definitiva por insuficiência de notas, a valorização dos códigos (não no modelo de leitura descontextualizada, evidentemente), a participação do Estado na seleção dos universitários e graduados, são standards, práticas e valores cujo aproveitamento deveria ser pensado a sério no Brasil.  A específica questão dos exames deveria, contudo, ser objeto de ampla discussão sobre sua metodologia, o tipo de conhecimento exigido e, acima de tudo, seria imperativa a existência de controles sociais sobre o processo. Não se poderia admitir a perpetuação de bancas, a ausência de critérios formais para sua composição e que a sociedade deixasse de fiscalizar suas atividades, como infelizmente se dá hoje em muitas provas de ingresso em carreiras jurídicas.

No volume 1 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, Nelson Nery Jr., em entrevista concedida a este colunista, deu um depoimento dos mais eloquentes sobre as qualidades do modelo alemão, que tanto influenciou sua formação e sua vida profissional:

O professor Schwab então me disse: ‘Aqui na Alemanha, as pessoas estudam. Elas não ficam esperando o professor ensinar, elas vão à biblioteca, leem e estudam, não ficam esperando pelo professor’. Foi um grande contraste para mim. (…) O estudante lá é um estudante, na acepção da palavra. (…) Isso tudo me impressionou muito. O aluno alemão tem de estudar em profundidade os assuntos. Ele deve fazer esses trabalhos de pesquisa, com referências em vários autores, com notas de rodapé”.[12]

Reflitamos sobre essas palavras de um de nossos grandes juristas. Na próxima coluna, o ensino jurídico em Portugal.


[1] FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente versus Oriente. Tradução de Janaína Marcoantonio. 1. reimpressão. São Paulo: Planeta, 2012. p. 69.

[2] Disponíveis em: http://ec.europa.eu/civiljustice/legal_prof/legal_prof_ger_de.htm. Acesso em 15-2-2015.

[3] Erste juristische Staatsprüfung.

[4] QUARCH, Tilman. Introdução à hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil.Revista de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de 2014, p.251.

[5] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[6] Resultados do PEE da primavera de 2013 no Lander de Baden-Württemberg.

[7] Zweite juristische Staatsprüfung.

[8] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[9] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit. Dados também disponíveis aqui: http://www.jum.baden-wuerttemberg.de/pb/site/jum/get/documents/jum1/JuM/import/pb5start/pdf/ii/II%20F%2013%20-%20Ergebnisse.pdf. Acesso em 16-2-2015.

[10] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[11] QUARCH, Tilman. Op. cit., loc. cit.

[12] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Entrevista com Nelson Nery Jr. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p. 367,  out.-dez. 2014. 

Autores

  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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