Processo Familiar

Algo estranho no ar: famílias de família e famílias nem tão de família

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

15 de fevereiro de 2015, 7h00

Os processos no Direito de Família nos são mesmo estranhamente familiares. É certo que podemos sofrer de um desconforto quando nos defrontamos com as famílias que, de alguma forma, são diferentes de nossas escolhas e que, ainda, se distanciem de um modelo idealizado, apregoado e pregado em valores prevalentes nas mais diversas épocas. Por mais que se tente uma divisão – famílias felizes e infelizes, as emblemáticas e as problemáticas, as famílias de família e as tidas como não tão de família – nos defrontamos com o estranho porém, de alguma forma, familiar.

O que está à margem nos fascina e nos assombra; e a cada sobressalto trazido pelas mudanças quanto às formas e conteúdos de novas estruturas familiares, despertam-se as angustias e soam os alarmes do fim da família. Alarmes que buscam encontrar, nas mais diversas racionalizações, justificativas conscientes que, no entanto, a própria razão desconhece. Alarmes que o tempo tem provado falsos.

As marginalizações de algumas famílias acompanham a tentativa em impor valores que, no mais das vezes, são estranhos à própria finalidade da família. E exemplos não faltam das tentativas em (in)justamente negar o direito a se ser em família, e em se ter uma família que não se submeta aos valores prevalentes. São divisões em famílias de família e outras tidas como não tão de família, reconhecidas, desconhecidas e renegadas, cujas formas acompanham as mudanças na historiografia do direito, nas políticas do Estado, e em suas relações com as religiões. Uma história de “atos falhos” e da criação de sintomas sociais, de intolerância, nos quais transparecem as forças repressoras, próprias a cada época mas que, também, nas quais transparecem as sombras de vontades reprimidas. Vontades que, originalmente, são forjadas na constituição de nossa identidade, em que o familiar e o estranho coexistem. Vontades que encontram o equilíbrio para sua repressão, antes de mais nada, na própria família, de acordo com a identidade que é peculiar a cada uma.

A família, atualmente, não é só pensada como lugar de busca de lealdade quanto ao exercício da sexualidade; ela está um tanto mais liberta dos valores da família patriarcalizada, sacralizada, matrimonizada e patrimonilizada, e da tentativa de controle quanto às formas do exercício da sexualidade. Hoje ela se caracteriza como a família eudemonista que, apesar de rimar, não se confunde com hedonista. E, juntamente com a compreensão do que nos constitui, do que contribui para a nossa realização e bem-estar, cada vez mais os direitos da personalidade ganham lugar privilegiado.

E, falando do que nos constitui, cabe aqui um passo em direção às compreensão dos desejos: eles são a matéria prima da formação e da continuidade da família. A libido, termo caro aos psicanalistas, refere-se não só à sexualidade, em seu sentido comum, mas a todas as pulsões que integram o que compreendemos sob o nome de amor. O afeto, uma outra denominação que temos utilizado para o desejo – talvez porque nos assuste menos – refere-se ao que nos afeta, às diversas manifestações das pulsões, não só as do amor, mas também as da agressividade. O afeto é o que nos emociona, o que nos move, e que ganha no encontro com o Outro, igual ou diferente de si mesmo, a qualidade de sentimento: o que dá sentido às relações.

E, dada a natureza da estrutura que define a família, o desejo, a libido, os afetos, encontram nela mesma os limites para o seu equilíbrio, na preservação da finalidade da família. E é esta a compreensão, e mesmo relativa tranquilidade, que a visão psicanalítica pode trazer ao Direito de Família e às instituições que dela devem cuidar. Assim, a família surpreende seus defensores, vez que inerente à sua natureza e à sua sobrevivência, ela se reordena, se transforma e sobre-vive, num movimento autopoiético, resistindo às mais diversas influências extrínsecas que lhe ameacem.

A família não se dissolve, ela se transforma, lhe sendo inerente a complexidade. Em uma necessária expansão de perspectiva para contemplar sua complexidade, somada à consciência da impossibilidade em simplesmente separar razão e emoção, pensamento e sentimento, o Direito tem encontrado a colaboração da Psicanálise. À busca de sentido ao que é manifesto soma-se a necessidade em contemplar o que está encoberto pelas lentes de uma extremada objetividade. E assim, o afeto, mas também a compreensão do desejo, da libido e da sexualidade em suas diversas manifestações, tem feito sua entrada no Direito de Família, num claro movimento de integração interdisciplinar.

Em tempos de valorização do indivíduo, de valorização do afeto e de maior liberdade quanto ao exercício da sexualidade, em paralelo às diversas mudanças nas formas de exercício do poder, que se traduzem nos movimentos feminista e, mais recentemente,  o da homossexualidade, muitas revoluções se tem operado. De uma divisão e oposição entre homens e mulheres, de formas de pensar e linguagens diversas quanto às manifestações dos afetos, a Psicanálise nos fez ver a existência das nuances na constituição de nossa identidade.

Contemplam-se com esta visão, as variadas formas de manifestação da sexualidade, em uma relação não exclusiva e unívoca com o sexo biológico. O que nos faz humanos em muito transcende a aparência. E papéis e funções se flexibilizaram na família e na sociedade, contemplando os direitos de realização da personalidade. Personalidade constituída com ingredientes que, claramente, transcendem o sexo, mas que integram as manifestações da libido, do que compõe o desejo, a vontade e o amor. 

Personalidade que se forma nas relações familiares. E intrínseca à constituição da família são os limites impostos à satisfação dos impulsos, sejam os agressivos, sejam os amorosos. E, se ao falar em liberdade maior quanto ao exercício da sexualidade, é mister frisar de que não se trata de qualquer e toda manifestação de sexualidade. Imperioso esclarecer que a lei maior, a norma fundamental de constituição da família – o que lhe é fundante – é o interdito do incesto. Este marca a diferença essencial entre as gerações, as formas proibidas de manifestação da sexualidade e os limites quanto à agressividade. Por tanto é que a família se constitui e sobrevive a despeito de suas variações.

Assim, a família, é uma estruturação psíquica em que cada um ocupa um lugar, exerce uma função; família marcada pela diferença entre as gerações, entre as funções, e que se exercem na complementariedade quanto à finalidade da estrutura familiar – o cuidado dos mais vulneráveis, as crianças e os idosos – e, também, da vulnerabilidade que nos é inerente.

E é na família que constituímos e mantemos nossa identidade – idem entidade – o que permanece contínuo a despeito das circunstâncias, por meio das manifestações de afeto e de amor, este condicionado às possíveis formas de sua expressão. Identidade formada no encontro com o igual e o diferente, um diferente estranho – nas definições e indefinições da criança para o adulto, do adulto para a criança, da mulher para o homem e do homem para a mulher. Um diferente e estranho, mas nem tanto que impeça a capacidade de empatia – o colocar-se no lugar do outro. É na família que aprendemos a olhar além do nosso reflexo no espelho das semelhanças, buscando o que está atrás do espelho, o estranho e o diferente que, de alguma forma nos integra.

E, neste momento, se impõe uma questão/conclusão. Não seriam as mudanças pelas quais estamos passando, não só porta-vozes de maior liberdade e valorização dos indivíduos, da chamada revolução trazida pelo afeto em suas mais diversas manifestações (inclusive quanto à sexualidade) mas, também, não seriam tais mudanças as manifestações do que o afeto encerra de mais precioso: a capacidade em se deixar afetar pelo outro, pelo igual e pelo diferente? Não seria esta uma evolução/revolução quanto às manifestações e valorização da qualidade da empatia? Empatia – colocar-se no lugar do outro, reconhecendo a igualdade na diferença.

A isto tudo diz respeito o respeito ao exercício das expressões da sexualidade, para além do preconceito com o termo; sexualidade também no sentido de libido, de ligação, e de amor. Mas um amor que possibilite amar ao próximo com a complexidade que se tem em si próprio, e não como espelho narcísico de si.

O desenvolvimento da capacidade de empatia — valor e capital social por excelência — afigura-se como o caminho seguro para ampliar a familiaridade e diminuir o estranhamento nos processos do direito de família e, também, o estranhamento com as famílias tidas como não tão de família. 

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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