Segurança ao cidadão

Teoria política e a ineficácia do sistema penal

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12 de fevereiro de 2015, 8h03

A taxa de homicídios no Brasil pulou de 11 mortos por 100 mil habitantes em 1980 para 29 em 2012. Dezenove cidades brasileiras estão entre as 50 mais violentas do mundo. Nosso Estado está falhando na sua finalidade básica de propiciar segurança aos cidadãos. Esta é, para o pensamento político moderno, sua finalidade principal, a causa mesma de sua existência. Sufocar o lobo do homem, conter a guerra de todos contra todos, para lembrar Hobbes. Nosso sistema penal tem se mostrado ineficaz para atingir esse desiderato.

O debate sobre essa constatação, contudo, avança com dificuldade, e para isso contribuem algumas premissas teóricas equivocadas que pretendemos explicitar. Atualmente, certo discurso jurídico padece de um antiestatismo radical, tomando qualquer proposta de conferir maior eficácia ao sistema como atentatória aos direitos e liberdades individuais. Esquece que, além de potencial violador de direitos, a demandar limites na sua atuação, o Estado é garantidor dos direitos individuais. Necessário se faz revisitar alguns temas da teoria política.

O primeiro aspecto a ressaltar é que, para a maioria das correntes da filosofia política, o Estado é um bem ou um mal necessário. Ele é um bem para as teorias chamadas por Norberto Bobbio de organicistas, que veem o todo acima das partes. É um mal necessário sobretudo para o liberalismo, que privilegia a análise política a partir do indivíduo e prega a limitação e redução do poder estatal. O Estado só é um mal tout court para o anarquismo e talvez para o marxismo, que o associa à exploração econômica de uma classe por outra, embora a experiência histórica do socialismo real tenha reforçado grandemente o poder estatal.

Fiquemos com o liberalismo, concepção que triunfou no mundo ocidental. O Estado deve ser limitado, no sentido de que deve respeitar os direitos individuais, devendo os seus agentes atuar de acordo com a lei. A defesa dos direitos e liberdades individuais está ligada ao princípio da legalidade. Outra concepção liberal é que, para bem respeitar os direitos individuais, o Estado deve limitar-se também do ponto de vista das funções que desempenha (reduzir-se). Aqui chegamos às teses do Estado mínimo, aquele que deve se ocupar somente da segurança das pessoas e da defesa da propriedade. O Estado-vigia noturno de Nozick.

Há ainda a considerar, sobretudo em relação ao direito e processo penal, que, além da submissão à legalidade e obediência às garantias processuais, há alguns princípios substanciais que limitam a ação do Estado: a proibição de penas cruéis e degradantes, e no nosso caso da pena de morte, a punição indireta dos familiares do acusado, as diversas formas de estigmatização e degradação do condenado, etc. Aqui, notadamente em Beccaria, os postulados do jusnaturalismo aliam-se a concepções utilitaristas: as penas devem ter como limite a sua utilidade social, sua efetiva utilidade na prevenção dos crimes, critério a preponderar sobre inspirações religiosas ou morais baseadas na ideia de castigo.

Contudo, apesar de todo esse conjunto de concepções que constitui o liberalismo e particularmente o chamado processo penal liberal, não se vê aí uma defesa da ineficácia do Estado ou capitulação diante das atividades nocivas dos indivíduos. O Estado é visto como necessário à garantia dos direitos individuais, e essa finalidade manifesta-se principalmente na sua atuação repressiva. Como se afirma no artigo XII da Declaração francesa de 1789, a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita uma força pública. Permanece íntegra no pensamento político liberal a necessidade da pena, da identificação e efetiva punição dos criminosos. Pode-se dissentir quanto ao tamanho do Estado (Estado mínimo x Estado social), pode-se defender que a ação estatal seja regrada (Estado liberal x Estado autoritário), pode-se sustentar que o Estado respeite os direitos do indivíduo (Estado de direito x Estado totalitário). Mas não existe teoria política que faça elogio da ineficácia do Estado naquelas funções que lhe remanescerem. O vigia pode vir somente à noite, mas se espera dele que cumpra sua função.

É preciso, pois, discutir a questão da eficácia do nosso sistema penal, que não tem sido apto a dissuadir a prática de crimes, dos homicídios à corrupção. Essa ineficácia pode estar na ação dos diversos órgãos envolvidos, como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Pode estar também na legislação penal e processual, em matérias como a execução penal, a prisão cautelar e o direito de permanecer em liberdade enquanto tramitam todos os recursos. Pode residir num certo garantismo excessivo que acaba por conferir precedência absoluta aos direitos dos réus em detrimento do interesse público na persecução penal.

O que quisemos demonstrar aqui, porém, foi apenas a legitimidade, segundo a teoria política e o próprio liberalismo, da preocupação com a eficácia da repressão penal. De um ponto de vista dominante, o Estado é um bem ou um mal necessário e, assim sendo, é necessário que ele bem desempenhe suas funções. Parodiando uma reflexão de Alexy, não se conceberia a constituição que estabelecesse no seu artigo 1º: X é uma república soberana, federal e ineficaz. Além da “pretensão à correção” que, segundo o autor alemão, perpassa todo o direito, existe também uma “pretensão à eficácia”, sem a qual o Estado não cumpre sua finalidade mais básica.

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