Nem sempre nítida

Tribunais precisam evoluir jurisprudência da venda casada ilegal

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9 de fevereiro de 2015, 8h00

No início do ano, o Ministério da Justiça aplicou multa milionária a grandes lojas varejistas sob a alegação de que teriam praticado venda casada ao fornecer produtos conjuntamente com seguros de vida, títulos de capitalização, garantias estendidas etc. Pelas notícias divulgadas, não fica claro se o problema estaria na falta de informação clara ao consumidor acerca daquilo que é ofertado ou se há, de fato, injustificável obrigatoriedade na aquisição desses produtos secundários.

Pretendemos demonstrar que a venda casada ilegal não é, sempre, uma conduta tão claramente identificável quanto possa parecer (e deveria ser para ensejar a aplicação de multas administrativas) e que os Tribunais ainda têm muito o que evoluir na construção jurisprudencial do tema.

O art. 39, inc. I, do CDC, proíbe aos fornecedores “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.

A primeira parte do dispositivo implica que, ao consumidor, deve ser dada a oportunidade de adquirir separadamente produtos ou serviços que também sejam oferecidos em conjunto. A segunda parte se refere a limites quantitativos: tem o condão de impedir que o consumidor seja obrigado a adquirir uma quantidade maior que as suas necessidades, salvo “justa causa”. Assim, admite-se descontos proporcionais à quantidade, desde que o consumidor possa, pagando o preço normal, adquirir o quanto deseja – solução também aplicável a brindes.

Para parte da doutrina, a noção de “justa causa”, como permissão para a venda casada,  só se aplicaria em termos quantitativos. Nenhuma exceção permitira condicionar a aquisição de um produto ou serviço à aquisição de outro produto/serviço diferente. Mas, por óbvio, as coisas não são tão simples.

O direito comercial (assim como a noção de lex mercatoria) nasce da dinâmica das relações tipicamente de mercado (em oposição às relações civis, sucessórias, de família etc.), que demanda normas e conceitos jurídicos flexíveis, adaptáveis aos usos e costumes. O direito do consumidor, do mesmo modo, se dirige a relações dinâmicas e não prescinde desse tipo de abertura interpretativa.  

Há vários casos de exceções à proibição da venda casada, tão costumeiros e razoáveis que não chegam a ser questionados. Ninguém sugere que o consumidor possa exigir que todos os componentes de um computador sejam também vendidos separadamente. Ou que o pé esquerdo e o pé direito de um par de sapatos sejam vendidos separadamente. Ou que possa comprar separadamente a calça e o paletó.

Daí a observação de para quem a venda casada “pressupõe a existência de produtos e serviços que são usualmente vendidos separados”, e de para quem a venda casada pode ser lícita se decorrer de imperativos fáticos ou econômicos, sendo que a “inexistência de um mercado separado para o produto ‘casado’ ou secundário leva à inexistência de ilícito”.

Assim, a análise da legalidade da venda casada não depende apenas de fatos planos (p.ex., saber se é possível ou não adquirir o produto/serviço separadamente), mas também da valoração jurídica de fatos complexos, ou seja, saber se há imperativos físicos/mercadológicos determinantes da venda casada e se esses imperativos se coadunam com o interesse dos consumidores.  

No REsp 744.602, o STJ entendeu que configura venda casada ilícita a proibição de consumo, dentro do cinema, de alimentos adquiridos em outro estabelecimento. Ou seja, a venda casada foi analisada à luz dos usos e costumes específicos: a despeito da possibilidade de se adquirir separadamente ingressos para o filme e alimentos da bomboniere, a consequência para o consumidor que deseje assistir ao filme comendo pipoca é a obrigação de comprar pipoca na bomboniere.

Em outro julgado significativo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também adentrou na valoração jurídica dos fatos e entendeu haver venda casada ilícita na prática de um posto de gasolina que condicionava o pagamento à prazo de gasolina à aquisição de refrigerantes de uma determinada marca, porque, “a dilação de prazo para pagamento, embora seja uma liberalidade do fornecedor – assim como o é a própria colocação no comércio de determinado produto ou serviço –, não o exime de observar normas legais (…)  Apenas na segunda hipótese do art. 39, I, do CDC, referente aos limites quantitativos, está ressalvada a possibilidade de exclusão da prática abusiva por justa causa, não se admitindo justificativa, portanto, para a imposição de produtos ou serviços que não os precisamente almejados pelo consumidor” (REsp 384.284).

Nota-se, contudo, que o julgado se apoia mais em uma interpretação restritiva do art. 39 do que no fato de que, no caso, não havia imperativo fático ou econômico a justificar a venda conjunta de gasolina à prazo e refrigerante. Perdeu-se, assim, oportunidade para a construção jurisprudencial de critérios mais complexos (e, portanto, mais adequados) para o tema.

A jurisprudência dos Tribunais estaduais traz alguns elementos, embora ainda sem a consistência necessária para uma orientação segura.

Em ação civil pública movida contra fabricantes de computadores, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) entendeu que não constitui venda casada ilícita o fornecimento de computadores com sistemas operacionais já pré-instalados. Como apontou o relator, “quem pretende comprar um computador ‘de marca’, quer comprá-lo com imediata funcionalidade. E isto somente será possível se vier com o software instalado (…) Não foi demonstrado o alegado condicionamento da venda dos computadores à de programas. Mas a indispensabilidade destes é inquestionável, sendo do conhecimento de qualquer um que pretenda usar um computador. E essa indispensabilidade é de tal ordem que, efetivamente, o programa como que passa a fazer parte interante do computador” (Apel. 2007.001.50110).

Aqui, o Tribunal se orientou tanto pelos usos e costumes (o que espera quem compra um computador?) quanto pela existência de imperativos fáticos/mercadológicos para a venda conjunta de computadores e programas pré-instalados que não colidem com os interesses do consumidor.

Outra hipótese que vem sendo tratada pelos Tribunais diz respeito às promoções em que, mediante a compra de uma determinada quantidade de produtos, o consumidor ganha um brinde.

Em ação civil pública questionando campanha nesse sentido, o TJSP decidiu que a necessidade de pagamento para obtenção do brinde caracterizaria venda casada ilícita pois, segundo o relator, “a palavra ‘brinde’ significa presente, mimo. Normalmente, esse produto é utilizado como uma forma de propaganda do estabelecimento, da marca ou de algum produto. Desse conceito, pode-se concluir que os ‘brindes’ deveriam ser entregues gratuitamente aos consumidores, o que não acontece no presente caso. Aqui, os consumidores pagavam pelo ‘brinde’” (TJSP, Apel. 0342384-90.2009.8.26.0000).

Há outros julgados do TJSP confirmando esse entendimento: (a) o brinde não pode ser condicionado ao pagamento de valores adicionais; e (b) o brinde deve também ser oferecido separadamente. 

Em sentido ligeiramente diverso, na Apel. n.º 994.03.091.346-1, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que a possibilidade de aquisição separada do brinde afastava a venda casada ilícita mesmo diante do fato de que o produto (revista) acompanhado do brinde (DVD) tinha o preço superior. Mas esse parece ser um caso isolado.

Há maciça jurisprudência no TJSP sobre a ilegalidade da cobrança da taxa SATI (Serviço de Assessoria Técnica Imobiliária) e de corretagem em contratos de compra de imóvel em stands de venda. Segundo vários julgados do TJSP, a cláusula contratual impondo a cobrança dessas tarifas, em contrato de compra e venda de imóvel, configuraria uma forma de venda casada do imóvel com serviço de assessoria/corretagem (v. Apel. n. 0004956-29.2013.8.26.0576, com profunda fundamentação e Apel n. 1086527-75.2013.8.26.0100, com indicação de diversos precedentes das câmaras de direito privado).

No entanto, nesse caso, o problema parece mais relacionado ao fato de que a tarifa não corresponde a nenhum serviço, já que a compra se deu em stand de vendas e, portanto, não há assessoria nem corretagem (ou seja, típico defeito de informação, já que a formação de preços é, em regra, livre). A venda casada pressupõe que houve sim um serviço, mas que o consumidor não podia recusá-lo.

Também se firmou no TJSP o entendimento de que não configura venda casada ilegal condicionar o desconto na aquisição de um sofá à aquisição de um seguro de vida. De um lado, “o desconto do móvel estava condicionado à aceitação do seguro de vida”, mas, de outro lado, “essa condição, ao que dos autos verte, mais favorável ao consumidor, foi aceita pela autora” (TJSP, Apel. n.º 1008565-73.2013.8.26.0100. No mesmo sentido Apel. n.º 0041356-16.2010.8.26.0554). Aqui, pela leitura do acórdão, se nota que o benefício ao consumidor foi utilizado como fator de flexibilização da proibição, mas essa premissa não foi, infelizmente, explicitada.

Diante de conceitos legais abertos, é função dos Tribunais apontar as distinções que possam, a cada caso, criar um esquema de orientação para interpretação da lei. O conceito de venda casada, como visto, é inevitavelmente aberto, já que há casos em que, por imperativos fáticos ou econômicos, ou por beneficiar o consumidor, a venda conjunta de produtos/serviços não é, necessariamente, ilegal. A gravidade do problema se evidencia quando se vê órgãos de proteção ao consumidor, cujo exercício do poder de política deveria ser pautado por rígidos parâmetros de certeza e segurança jurídica, construírem sua própria interpretação da norma e da sua tipificação para aplicar multas milionárias.  

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