Passado a Limpo

Assistência Social e Ordens Religiosas na República Velha

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

5 de fevereiro de 2015, 7h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em 1921 a Consultoria-Geral da República respondeu a Aviso do Ministro da Fazenda a propósito da administração dos bens de sociedade pia, Patrimônio dos Órfãos do Pernambuco. Ao longo do parecer revela-se o modelo de assistência social dos tempos da República Velha, fortemente marcado pela atuação de sociedades pias e religiosas. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor-Geral da Republica. – Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 1921

Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda. – A Santa Casa de Misericórdia do Recife, no Memorial que acompanha os processos remetidos com o Aviso nº 152, de 19 de novembro do ano findo, dirige-se ao Exmo. Sr. Presidente da República, na qualidade de  legitima administradora dos bens que constituem o “Patrimônio dos Órfãos de Pernambuco”, dizendo-se perturbada no uso, gozo e exercício de seus direitos, para solicitar providencias que façam cessar semelhantes perturbações, reconhecendo-se de vez a sua situação jurídica com relação a esses bens que foram das extintas congregações de São Felipe Nery e Carmelitas Descalços, e hoje são “Patrimônio de Órfãos”, a seu cargo e sob a sua livre administração.

Do primeiro dos processos se verifica que, tendo sido desapropriados imóveis da Santa Casa, necessários às obras do porto de Recife, na importância total de 752:000$000, quando restava apenas efetuar o pagamento da ultima parcela, no valor de 70:000$, foram suscitadas duvidas acerca da propriedade da Santa Casa sobre todos os aludidos imóveis desapropriados, vindo afinal a ser formalmente contestado esse direito àquela pia instituição.

Em consequência, recusado o pagamento pelo Delegado Fiscal, houve recurso para V.Exa., que, em 12 de janeiro do ano findo, confirmou a decisão e mandou se procedesse na forma do parecer da Procuradoria Geral da Fazenda Publica.

Nessa conformidade, expediu esta ao Delegado Fiscal em Pernambuco a ordem de 2 de fevereiro do ano passado, assim concebida:

“Comunico-vos, para os devidos fins, que o Sr. Ministro, por despacho de 12 de janeiro, proferido no processo encaminhado com o vosso oficio nº 109, de 4 de agosto do ano passado, resolveu aprovar o ato pelo qual negastes deferimento ao pedido de pagamento apresentado pela Santa Casa de Misericórdia desse Estado, pela desapropriação dos prédios nºs 16 e 22 da rua Madre de Deus, que constituíam o antigo patrimônio da Congregação de São Felipe Neri. E, como esteja verificado pertencerem á União os bens desapropriados, o que demonstra o descabido da desapropriação e a irregularidade do pagamento efetuado á Santa Casa, determina o Sr. Ministro providencias da  seguinte forma, para que fiquem resguardados o interesse publico e os direitos da Nação: Com a Santa Casa de Misericórdia do Recife dever-se-á entender o procurador Fiscal dessa Delegacia, auxiliado por um engenheiro, que deveis requisitar da fiscalização do porto, para que um representante da referida instituição seja nomeado para compor a comissão que regularizará a situação dos bens do extinto patrimônio de S. Felipe. Providenciado, que tenha, a comissão, para que, não só a importância já paga à Santa Casa, mas também a que é reclamada, seja aplicada em bens, de preferencia imóveis e apólices, inscritos em nome da Fazenda, e cujos rendimentos se empregarão, por intermédio da aludida Santa Casa, na manutenção e educação dos órfãos, conforme determinação legal, deverão ai fazer-se as necessárias anotações do resultado do trabalho, de tudo certificando-se imediatamente o Tesouro e especialmente a Diretoria do Patrimônio Nacional.”

A Santa Casa, como se vê do telegrama do Delegado Fiscal, de 20 de abril de 1920, recusou-se a designar representante para fazer parte da comissão a que se referia a ordem acima, indicando, entretanto, o chefe de sua secretaria para fornecer todos os esclarecimentos de que necessitasse a Delegacia.

E, por essa época, tendo vendido a Joaquim de Lima Amorim 200 apólices da dívida publica federal, foi-lhe negada, pela Delegacia, a transferência desses títulos para o nome do comprador, sob o fundamento de que haviam eles sido adquiridos com o produto da desapropriação dos bens que eram do antigo patrimônio de S. Felipe Neri, e que a situação dos mesmos bens, conforme a ordem de 2 de fevereiro,  devia ser regularizada para os fins ali recomendados.

No processo do recurso interposto do ato que negou a transferência, as informações do Tesouro são no sentido de que a matéria se prende á do anterior processo, não devendo ter solução antes deste.

De fato, há conexão entre um e outro processo, ou antes, a solução de ambos depende do exame de uma preliminar, a de saber qual é a verdadeira situação jurídica dos bens que constituíam outrora o patrimônio da extinta congregação de São Felipe Neri. Resolvido este ponto, tudo mais serão corolários. Isto posto, força é remontar á origem do patrimônio.

A Lei de 9 de dezembro de 1830, publicada na coleção oficial com a seguinte ementa:

“Extingue a Congregação dos padres de São Felipe Neri, estabelecida em Pernambuco, e aplica os seus bens para patrimônio de uma casa pia de educação de órfãos desvalidos de ambos os sexos”,

No art. 2º, dispunha:

“Toda a propriedade, de qualquer natureza que seja, pertencente à Congregação extinta, passará a ser incorporada aos próprios nacionais, e será consignada para patrimônio de uma casa pia, em que se recolham e eduquem os órfãos de ambos os sexos da província, segundo a possibilidade do mesmo patrimônio; o que tudo será regulado em lei separada, depois de concluída a liquidação dos fundos que houver a dispor.”

No art. 3º:

“A Junta da Fazenda, ficando competindo a administração desta propriedade…”

No art. 4º:

“O Juiz da Coroa, com o seu escrivão procederá ao inventario  de todos os bens, imóveis e semoventes…”

No art. 5º:

“A mesma Junta de Fazenda arrendará anualmente em hasta publica, todos os bens e raiz, e venderá  pelo mesmo modo os imóveis e semoventes, susceptíveis de descaminho ou danificação e conservará em boa guarda os que não correrem perigo”.

Finalmente, no art. 11, prescrevia:

“A disposição da presente lei será cumprida, em tudo que for aplicável, na Província da Bahia, no que é respectivo ao Hospício, que ali tem a Congregação extinta, doado, porém, desse já, o patrimônio que ali existe a Casa Pia dos Órfãos que tem aquela Província.”

O pensamento da lei é transparente: aplicar o patrimônio da ordem religiosa extinta em beneficio os órfãos. Possuía a Ordem bens em Pernambuco e na Bahia. O destino de todos existentes numa e outra província, era o mesmo. Mas a situação de fato variava: na Bahia já existia a “Casa Pia dos Órfãos”, enquanto que em Pernambuco, não. Por essa razão, idêntico embora o destino que a lei dava aos bens, as providencias imediatas não podiam ser as mesmas.

Assim, ao passo que o art. 11 doava, desde logo os bens da Bahia à Casa de Órfãos que ai já existia; quanto aos de Pernambuco mandava que fossem incorporados aos próprios nacionais. Mas, esta ultima providência e as constantes dos artigos 3º 4º e 5º eram evidentemente de ordem transitória, visando apurar, recolher e acautelar o patrimônio da Congregação extinta enquanto não era criada em Pernambuco a Casa de Órfãos. Nem dispunha, por forma alguma, a lei, que apenas a renda dos bens da Congregação constituiria o patrimônio dos órfãos de Pernambuco.


 

 

 

 

 

 

 

A redação, pouco cuidada, dos arts. 2º e 1º das duas leis de 25 de agosto e de 11 de novembro de 1831, – se por estas disposições isoladas se pudesse chegar ao exato intuito legislativo, aliás tão claramente manifestado em 1830, – poderia dar lugar a dúvida. Mas, o exame atento da matéria, através da legislação que a rege, harmonicamente entendida, logo a repeliria.

 

Com efeito, em 1º lugar, os dois textos não contem disposição nova sobre o ponto em questão.

Um e outro dispõem sobre objeto diverso e apenas incidentemente se referem (o 2º, de modo expresso) à Lei de 9 de dezembro de 1830.

Diz o art. 2º da Lei de 25 de agosto:

“A casa em que até agora têm habitado (os Carmelitas Descalços), será destinada para o estabelecimento de uma das casas em que se devem recolher e educar os órfãos, á cuja manutenção foram destinadas as rendas dos bens dos ex-Congregados de São Felipe Neri.”

Diz o art. 1º da Lei de 11 de novembro:

“O Governo fica autorizado a mandar pôr em execução os estabelecimentos dos órfãos de ambos os sexos para que foram destinadas, pela Lei de 9 de dezembro de 1830, as rendas dos bens que foram da  Congregação dos Padres de São Felipe Neri em Pernambuco.”

O que desses dos textos se pode concluir é que com as rendas dos bens da antiga Congregação seriam mantidos os estabelecimentos, não que elas constituíssem exclusivamente o patrimônio de órfãos. O modo como seria constituído esse patrimônio já o determinará a Lei de 9 de dezembro de 1830, lei básica, a que as outras se referem e subordinam, nestes precisos termos: “Toda a propriedade,  de qualquer natureza que seja será consignada para patrimônio de uma casa pia, etc.”

Formariam, consequentemente, o patrimônio não apenas as rendas, mas a propriedade, para que, é obvio, com as rendas desta fossem mantidas as casas de órfãos. E nem seria admissível a restrição quanto à de Pernambuco, porquanto os bens da Ordem na Bahia foram doados à Casa de Órfãos desta província (art. 11 cit.), e não se compreenderia como, para o mesmo fim, á da Bahia tivesse sido transferida a propriedade, e á de Pernambuco apenas os rendimentos.

Demais, a própria Lei de 11 de novembro de 1831, no art. 6º prescrevia: “A administração não poderá vender, alienar, nem permutar os bens por qualquer maneira que seja.”

Se o intuito do legislador fosse o de constituir o patrimônio da pessoa jurídica a criar apenas com as rendas, é fora de dúvida que não teria que cogitar da possibilidade da venda, alienação ou permuta de bens, pela razão simples de que não lhe tendo sido transferida a propriedade, deles não poderia jamais dispor, por qualquer daquelas formas.

Por sua vez, o art. 5º, dizia:

“A administração haverá pelos meios legais quaisquer bens sonegados, ou por outro modo extraviados, e reivindicará todos aqueles que forem indevidamente alienados…”

Ora, só pode demandar pela ação real de reivindicação quem tem o domínio. “Consiste o domínio na livre faculdade de usar e dispor das coisas e de as demandar por ação real.” (T. de Freitas – Const., art. 884). “A reivindicação é a ação real que compete ao senhor da coisa, para retoma-la do poder de terceiro, que injustamente a detém. A dita ação tem por causa o domínio. Não pode, pois ser exercida senão por aquele a quem o domínio pertence. Seu fim é exatamente fazer reconhecer o direito do proprietário”. (Lafayette – Dir. das Coisas, parágrafos 82 e 84).

De sorte que, a inteligência que reduzisse o patrimônio de órfãos de Pernambuco ás rendas dos bens da extinta ordem religiosa, seria, não só contraria à prescrição terminante da Lei de 1830, mas também inconciliável com as disposições dos arts. 5º e 6º da Lei de 11 de novembro de 1831, lei, esta última, invocada em apoio de sua opinião pelos que negam a transferência da propriedade.

Tem a meu ver, inteira razão a Santa Casa, quando, no seu jurídico memorial, declara que as leis de 1830 e 1831, instituíram com os bens da extinta Ordem de S. Felipe Neri, uma fundação pia, doando-os aos colégios de órfãos e órfãs para sua manutenção. De fato, mediante essa doação com encargo, criaram as referidas leis uma fundação, pessoa jurídica autônoma. Invocando a autoridade do nosso Clovis (Th. Ger. Do Dir. e Cod. Civ. Comment., art. 24), quando ensina: “Para a existência da fundação, fazem-se necessários os seguintes requisitos: a) Um patrimônio composto de bens livres no momento da constituição; b) um ato de dotação; c) estatutos; d) uma administração”, conclui muito bem o memorial: “Houve um patrimônio livre – o das extintas congregações; houve uma dotação , que foi a disposição da Lei de 1830, confirmada pelas de 1831, consignando aqueles bens para patrimônio de uma casa pia, em que se recolhessem, em Pernambuco, os órfãos desamparados: houve a elaboração dos Estatutos; houve a nomeação da administração e houve, enfim, o ato material em que se concretizaram as disposições abstratas das leis: a entrega solene, por parte do Juiz, de ditos bens á administração encarregada de geri-los.”

E há ainda um elemento decisivo para o esclarecimento da questão relativa á constituição do patrimônio dos órfãos. Havendo a Lei provincial n. 452, de 21 de junho de 1858, autorizado, no art. 44, o Presidente da Província a dar novo regulamento aos colégios dos órfãos, o mesmo Presidente, tendo em vista a referida autorização e mais a que lhe conferia o art. 24, § 4º, da Lei de 12 de agosto de 1834, expediu o regulamento de 28 de janeiro de 1861, cujo art. 1º, logo, peremptoriamente, dizia:

“Todos os BENS da extinta congregação dos Padres de São Felipe Neri, constituem o patrimônio destinado á educação dos órfãos, na forma da Lei de 11 de novembro de 1831”.

Todos os bens, e não apenas: – as rendas dos bens. Tal era a situação quando, em 1862, por força da autorização concedida pela Lei provincial n. 450, de 12 de junho de 1858, que no seu artigo único estatuía:

“Fica o Presidente da Província autorizado a instalar nesta capital (Recife) uma irmandade de Misericórdia, ficando a cargo desta a administração dos estabelecimentos de caridade, dando-lhe os estatutos ou compromissos que a deve reger, revogadas as leis e disposições em contrário”,

Foi aprovado pela Assembleia Provincial (Lei n. 531, de 9 de junho) o compromisso de 17 de março. Data daí uma nova fase da questão. Pelo art. 2º do compromisso, a Santa Casa tomava a seu cargo a administração de vários estabelecimentos pios, entre os quais os colégios de órfãos e órfãs (§ 2º). Se o compromisso não contivesse outra disposição além da citada, não acarretaria mais do que a simples mudança da administração da fundação, que subsistiria como pessoa jurídica. A alteração, porém, foi mais profunda. Os colégios de órfãos e órfãos passaram de instituições autônomas, que eram, a estabelecimentos da Santa Casa, meras dependências suas. Assim, efetivamente, os denomina o art. 2º do compromisso, e, além dele, o art. 54, quando, no § 2º, se refere à  … Santa Casa e seus estabelecimentos”; no § 3º, a “… todos os estabelecimentos e negócios da Santa Casa. . .”; no § 5º, a “. . . todos os estabelecimento e repartições de Santa Casa.” E, o que é mais: no Cap. IX, que se inscreve: “Do patrimônio da Santa Casa e aplicação de suas rendas”, reza o art. 76: “Constituirão o patrimônio da Santa Casa: § 2º. Os bens que fazem o patrimônio dos órfãos, formando o patrimônio dos colégios dos órfãos e órfãs”, declarando ainda o § 4º que as doações, legados e esmolas ou qualquer dadiva, feitas á Santa Casa para qualquer dos estabelecimentos a seu cargo, entrarão para o patrimônio da Santa Casa ou de todos os estabelecimentos que mantém.


 

 

 

 

 

 

 

Por sua vez, os bens doados genericamente á Santa Casa serão aplicados indistintamente ao estabelecimento ou estabelecimentos que precisarem (Art. 77). Finalmente, a receita da Santa Casa é orçada e a despesa de todos os estabelecimentos, fixada num só orçamento anual (Art.88).

Os colégios de órfãos, pois, passaram a não ter vida e economia separadas, sendo feita apenas para fins internos e de escrituração, a discriminação dos patrimônios daqueles e outros estabelecimentos a cargo da Santa Casa. Essa organização foi integralmente mantida na reforma do compromisso, realizada em 31 de maio de 1892.

Continuaram os estabelecimentos dependentes a não ter via patrimonial distinta da santa Casa. Privados de entidade civil autônoma, de representação jurídica independente, a personalidade da Santa Casa absorveu as daqueles.

E no que toca aos imóveis do patrimônio dos colégios dos órfãos, ela alega, no seu memorial, que, se os não tivesse reformado, substituído, melhorado, valorizando-os enormemente, ou já não existiriam, pela ruína do tempo, ou estariam em condições mui inferiores. Demonstra ainda que, de 1904 a esta parte, o déficit do patrimônio dos órfãos tem sido coberto pelo patrimônio geral, numa cifra de réis 1.359:358$683, o que quer dizer que, desde muitos anos, tornou-se aquele manifestamente insuficiente para a manutenção dos colégios.

Não deixarei de acentuar que a legislação provincial de Pernambuco, de 1858 a 1862, que tão importante subsídio traz á elucidação da questão, era justamente a que, após o Ato Adicional, passou a regular privativamente a espécie.

A própria Lei n. 1.083, de 23 de agosto de 1860, art. 2º, § 1º, ultima parte, ressalvou a disposição do art. 10, n. X da Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional), mantendo a atribuição das assembleias provinciais de legislarem sobre as casas de socorros públicos e instituições pias existentes nas províncias, compreendida nessa faculdade a de aprovarem os compromissos das irmandades.

Direi ainda que das duas leis, nº 222-A, de 23 de novembro de 1894, e n. 3.760, de 6 de setembro de 1919, promulgadas muitos anos depois da legislação que constituem o assento da matéria, não se podem validamente tirar argumentos contrários, primeiro, porque ambas visam confirmar a situação de direito e de fato existente, e, consequentemente, não autorizam a suposição de que intentassem introduzir a mais ligeira alteração nesse estado de coisas; segundo, porque, em face de qualquer delas jamais  se chegaria a resolver a questão do patrimônio; uma por sua imprecisão e inocuidade, a outra por não corresponder á verdade na referencia que faz á legislação anterior.

Com efeito, o teor da Lei n. 222 A é este:

“Os próprios nacionais, que por lei do antigo regime foram entregues á Santa Casa de Misericórdia com o encargo de recolhimento e educação de órfãos desamparados, bem como a colônia Izabel, no Estado de Pernambuco, continuarão  a ter o destino a que estão servindo”.

O da Lei n. 3.760, o seguinte:

“Nos termos da Lei de 9 de novembro de 1830 e de 25 de agosto de 1831, continuam, sob o poder e administração da Santa Casa da Misericórdia do Recife, de acordo com a Lei n. 222 A, de 23 de novembro de 1894, os bens que pertenciam á extinta Congregação de S. Felipe Neri, bem como á extinta Associação dos Carmelitas Descalços.”

Ora, as leis de 1830 e 1831 jamais estabeleceram que os bens que pertenciam às extintas Ordens de S. Felipe e dos Carmelitas ficassem sob o poder e administração da Santa Casa.

Mandou a primeira fossem incorporados aos próprios nacionais para constituírem o patrimônio das casas de órfãos a se fundarem em Pernambuco. Mandou a segunda que o prédio em que até então haviam habitado os Carmelitas Descalços fosse destinado para uma dessas casas.

Não cogitaram, nem poderiam cogitar, da Santa Casa do Recife que, a esse tempo, nem sequer existia. Também é errônea a referencia á questão que se encontra á pag. 50 do Relatório da Comissão de Tombamento dos Próprios Nacionais, da lavra de Teodósio Silveira da Motta, publicada em anexo ao Relatório, do Ministro da Fazenda, de 1901.

O trecho, que foi transcrito numa das informações juntas ao processo, é assim concebido:

“Além dos próprios mencionados, há no Estado de Pernambuco, outros próprios que não estão aplicados em serviços públicos federais. Neste caso se acham os bens que pertenceram á Congregação de S. Felipe Neri, extinta pela Lei de 9 de dezembro de 1830, que os mandou incorporar aos próprios nacionais, destinando-os para patrimônio de uma casa pia, ficando os mesmos bens sob a administração da Santa Casa de Misericórdia do Recife, pelo Decreto de 19 de novembro de 1831”, que continua em vigor, conforme estabeleceu a Lei n. 222 A, de 23 de novembro de 1894.”

Antes de tudo, esta ultima, não mandou que ficasse em vigor lei alguma, e muito menos a de 19 de novembro de 1831. Com esta data, nenhuma existe interessando á questão. As leis são, como se viu, as de 9 de dezembro de 1830 e 11 de novembro de 1831.

E quando a uma destas se tivesse querido referir o Relatório, ainda assim o erro não teria sido unicamente de data; nem aquelas, nem outra qualquer lei de 1830 ou 1831, determinaram que os bens em questão ficassem sob a administração da Santa Casa, que, só trinta anos depois, foi criada.

Fácil, é, portanto, a quem se der ao trabalho de estudar a questão, nas suas origens, verificar logo a absoluta imprestabilidade de qualquer elemento colhido, quer nas leis de 1894 e 1919, quer no Relatório de Silveira da Motta.

E, quanto a estas leis, se acaso tivessem o intuito de revogar a legislação anterior, seriam manifestamente inconstitucionais, pelo vicio da retroatividade, uma vez que viriam ferir direitos legitimamente adquiridos, na posse e gozo dos quais se mantinham desde largos anos, os respectivos titulares.

Resta-me assinalar que em 1892, já no domínio da Constituição Republicana, a reforma do compromisso da Santa Casa, expurgou-o de todas as disposições que permitiam a ingerência do poder civil na sua administração.

A faculdade da pia instituição de adquirir, possuir e dispor – essência da plena capacidade, e, portanto, da personalidade civil, não pode sofrer a menor contestação. Muito menos a de livremente administrar o seu patrimônio, ao qual foi incorporado o das casas de órfãos, originariamente de ordens religiosas extintas.

Foram estes bens transferidos, com o encargo de manter os colégios.

Perdeu, assim, a antiga fundação a sua individualidade própria, passando a corporação donataria a ser o verdadeiro sujeito dos respectivos direitos. (Espínola – Syst. Do Dir. Civ. Br. I, pag. 363).

O destino dos bens não foi com isso, afetado. Fez-se á Santa Casa a transferência dos encargos com os meios de os cumprir, assegurada, destarte, a imutabilidade dos fins, isto é, a indestrutibilidade da obra pia.

Em consideração da liberalidade que recebeu, ficou a Santa Casa com o ônus de manter os estabelecimentos. E, com a transferência, os verdadeiros beneficiados são os referidos estabelecimentos, ou antes, os órfãos, que continuam a ser os destinatários em favor dos quais o patrimônio da Santa Casa tem vindo constantemente suprindo a insuficiência do que primitivamente fora criado.

Tais são, Sr. Ministro, os fundamentos em que me baseio para pensar que ao Governo não assiste direito de embaraçar, ou de qualquer forma, tolher, á Santa Casa, a livre administração e disposição dos bens que constituem o seu patrimônio.

Reitero a V.Exa. os meus protestos de elevada estima e distinta consideração.

James Darcy.

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  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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