Liberdade de expressão

A livre manifestação do pensamento e sua responsabilidade

Autor

  • Clever Vasconcelos

    é promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo professor de Direito Constitucional e Eleitoral (Damásio Educacional) e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.

5 de fevereiro de 2015, 7h39

Após um longo período de ditadura militar (que durou de 1964 a 1985), marcada pela censura, o país democratizou-se com o advento da Constituição Federal de 1988. A Constituição cidadã, assim apelidada pelo então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses de Guimarães, consagrou a liberdade de pensamento dentre os direitos e garantias fundamentais. Contudo, como tantos outros direitos fundamentais, a liberdade de pensamento não constitui direito absoluto. A livre manifestação do pensamento, por vezes, se sujeita a limites que, uma vez não observados, dão ensejo à responsabilidade civil e criminal.

A liberdade de pensamento é consagrada na Constituição Federal no artigo 5º, IV, ao dispor “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, no inciso XIV do mesmo artigo, ao prever “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”, e finalmente no art. 220, ao dizer “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, ressaltando-se a redação de seu parágrafo 2º, segundo o qual “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Define-se a liberdade de pensamento como o direito de exteriorização do pensamento. Mas não só. Mencionado conceito é restrito perto de sua real amplitude, eis que compreende também o direito ao pensamento íntimo, fruto da consciência humana, e o direito ao silêncio, o direito de não manifestar o pensamento. Dentro da primeira perspectiva (o direito de exteriorização), o pensamento engloba a manifestação verbal, corporal e simbólica (como, por exemplo, queimar a bandeira do país).

Trata-se de um direito fundamental, direito inerente à pessoa humana, reconhecido e positivado na ordem constitucional. Aliás, a positivação é a melhor forma de garantir sua efetividade perante o Estado. No estudo das dimensões dos direitos humanos, a liberdade de expressão aloca-se entre os direitos humanos de primeira dimensão, exigindo do Estado a não intervenção sobre a liberdade dos indivíduos.

Diz-se que a liberdade de expressão é um bônus acompanhado de um ônus. Este corresponde à vedação do anonimato. Isto significa dizer que aquele que manifestar seu pensamento deve identificar-se. Tal necessidade decorre da possível responsabilização na órbita jurídica, que pode advir do exercício da liberdade de pensamento. Conforme já mencionado, a livre manifestação do pensamento se sujeita a limites que, uma vez não observados, dão ensejo à responsabilidade civil e criminal.

Os limites à liberdade de expressão são estabelecidos pelo próprio constituinte. Decorrem do superprincípio da dignidade da pessoa humana (fundamento da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição) e da inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (assegurada no artigo 5º, inciso X, da Constituição).

As limitações à livre manifestação do pensamento, entretanto, não podem gerar a censura. A censura é o controle estatal realizado sobre o conteúdo da mensagem antes de sua publicação, divulgação ou circulação. É um controle prévio por excelência, expressamente vedado pelo constituinte, como corolário da democracia (artigo 220, parágrafo 2º, da Constituição).

Não deve, portanto, existir um controle prévio. Deve admitir-se a publicação ou a divulgação da mensagem para que sobre ela, se for o caso, exista um “controle” posterior, que permita a devida responsabilização.

Dentro desta perspectiva o Supremo Tribunal Federal já se manifestou, conforme trecho de ementa a seguir transcrito:

"O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma CF: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os mencionados incisos do art. 5º). Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos ‘sobredireitos’ de personalidade em que se traduz a ‘livre’ e ‘plena’ manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa” (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009). 

Nesse mesmo sentido, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

“A concessão de tutela inibitória em face de jornalista, para que cesse a postagem de matérias consideradas ofensivas, se mostra impossível, pois a crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não pode ser aprioristicamente censurada.Sopesados o risco de lesão ao patrimônio subjetivo individual do autor e a ameaça de censura à imprensa, o fiel da balança deve pender para o lado do direito à informação e à opinião. Primeiro se deve assegurar o gozo do que o Pleno do STF, no julgamento da ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 06.11.2009, denominou sobredireitos de personalidade – assim entendidos como os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa, em que se traduz a livre e plena manifestação do pensamento, da criação e da informação – para somente então se cobrar do titular dessas situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também formadores da personalidade humana. Mesmo que a repressão posterior não se mostre ideal para casos de ofensa moral, sendo incapaz de restabelecer por completo o status quo ante daquele que teve sua honra ou sua imagem achincalhada, na sistemática criada pela CF/88 prevalece a livre e plena circulação de ideias e notícias, assegurando-se, em contrapartida, o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis e penais que, mesmo atuando após o fato consumado, têm condição de inibir abusos no exercício da liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento. Mesmo para casos extremos como o dos autos – em que há notícia de seguidos excessos no uso da liberdade de imprensa – a mitigação da regra que veda a censura prévia não se justifica. Nessas situações, cumpre ao Poder Judiciário agir com austeridade, assegurando o amplo direito de resposta e intensificando as indenizações caso a conduta se reitere, conferindo ao julgado caráter didático, inclusive com vistas a desmotivar comportamentos futuros de igual jaez” (REsp 1388994 / SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 29/11/2013)

No plano da responsabilidade civil, a Constituição Federal assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo, e indenização por dano material, moral ou à imagem (artigo 5º, inciso V).

O direito de resposta é o direito de rebater a ofensa, que configure ou não infração penal, veiculada nos meios de comunicação.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, o exercício deste direito independe de regulamentação legal. A norma constitucional (artigo 5º, inciso V) recebeu densidade normativa suficiente e, por isso, pode produzir efeitos imediatos.

A própria Constituição Federal impôs um requisito para o exercício do direito de resposta: a proporcionalidade. Assim, a resposta deve ser veiculada com o mesmo destaque, duração ou tamanho (se imprensa escrita) do agravo que se pretende repelir.

Além do direito de resposta, a Constituição da República assegura a indenização por dano material, moral e à imagem. Salienta-se que a indenização soma-se ao direito de resposta, que não constitui medida alternativa àquela.

Na seara criminal, não se olvide da possibilidade de o ofensor ser responsabilizado por crimes de calúnia, de injúria, de difamação (crimes contra a honra), de incitação ao crime, apologia de crime ou criminoso (crimes contra a paz pública), e até mesmo o crime de racismo.  Não se admite a prática de condutas delituosas a pretexto do exercício da liberdade de expressão.

Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal sobre um caso emblemático, acerca da publicação de livros antissemitismo, no qual se reconheceu que escrever, editar, divulgar e comercializar livros fazendo apologia de ideias preconceituosas contra a comunidade judaica constitui crime de racismo, à luz do artigo 20 da Lei 7.716/89. Destaca-se um trecho da ementa, oriunda do julgamento feito pela corte:

 “Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica” (HC- 82.424-RS, rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.03.2004).

Recentemente, a temática da liberdade de expressão reacendeu. Infelizmente a partir da perda de valiosas vidas no ataque terrorista ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, responsável pela elaboração de charges contendo a caricatura de Maomé.

Sem entrar no mérito do caráter ofensivo ou não à religião islâmica, é certo que liberdade de expressão compreende a elaboração e divulgação de charges e caricatura, mas jamais a violência. Por oportuno, ensina Paulo Gustavo Gonet Branco “a liberdade de expressão, contudo, não abrange a violência. Toda manifestação de opinião tende a exercer algum impacto sobre a audiência – esse impacto, porém há de ser espiritual, não abrangendo a coação física. No dizer de Ulrich Karpen, “as opiniões devem ser endereçadas ao cérebro, por meio de argumentação racional ou emocional ou por meras assertivas”- outra compreensão entraria em choque com o propósito da liberdade em tela” (Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 4ª Ed.).

De tudo o que foi dito, podemos concluir que a liberdade de pensamento é um direito inerente à pessoa humana, reconhecido e assegurado na ordem constitucional vigente. É inerente ao Estado Democrático de Direito no qual se insere a República Federativa do Brasil.

Todavia, assim como tantos outros direitos fundamentais, a liberdade de pensamento não constitui direito absoluto. Ao contrário, encontra limites nos demais direitos da personalidade consagrados pela Constituição Federal como a dignidade da pessoa humana, a honra, a imagem, entre outros.

A violação a outros direitos fundamentais sujeita o titular da liberdade de pensamento à responsabilização civil ou criminal, vedada, entretanto, a censura prévia. Acolhido o entendimento do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, deve-se assegurar em primeiro lugar os sobredireitos, tal qual a livre e plena manifestação do pensamento, para depois cobrar eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, eis que o artigo 220 “caput” da Constituição veda qualquer tipo de restrição à livre manifestação do pensamento.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP. Professor de Direito Constitucional, Administrativo, Eleitoral e Legislação do Ministério Público. Membro do IBDC - Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!