Extinção da vida

Mata-se aqui e ali, um legitimado pelo juiz, outro obedecendo a religião

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4 de fevereiro de 2015, 17h07

A decapitação é praticada desde tempos imemoriais. O homem tem prazer especial em separar partes de corpos.  Tal costume vem, inclusive, de antiga legislação saxônica, assentando-se que nobres, se e quando condenados à morte, não podiam sofrer torturas, nem morrer pelo machado. Havia exceções (Mary Stuart), mas a regra, quanto a nobreza, era a espada. Isto consta, inclusive, de texto latino vigendo lá atrás. No Brasil a pena de morte é excepcional, isso em tempo de guerra e sob muitos requisitos, não se conhecendo um só caso desse naipe. Isso não significa que não tenhamos tal costume em um ou outro presídio, quando a população carcerária, enlouquecida pela “Maria Louca” ou drogas clandestinamente introduzidas, aproveita a insurreição interna para separar a cabeça de inimigos, atirando-a das muralhas. Diga-se, portanto, que o universo não se mostra infenso a execuções tais, realçando-se a Revolução Francesa, legitimando-se, no cadafalso, a invenção do doutor Gilhotin, ele próprio decapitado mais tarde, descontente é certo, mas orgulhoso, quem sabe, por degustar a ferrugem daquela criação mefítica.

Curiosamente, qualquer notícia correspondente a morte violenta traz multiplicação da atenção do povo. Acontece muito: crônicas sérias sobre direito e processo penal perdem espaço à publicação de comentários referentes a tal forma anômala de extinção da vida. Há leitores entusiasmados com particularidades referentes à decapitação. Conta-se que Danton, na véspera de sua execução, foi visitado pelo carrasco, pretendendo-se cortar-lhe os cabelos. Ele recusou, correndo-se o risco de consequência apta a que Madame Guilhotina se embaraçasse no vasto conjunto capilar do revolucionário caído em desgraça. Maria Antonieta, por todos conhecida, teve os cabelos cortados antes da execução. Atividade assemelhada sucedeu na Inglaterra a Ana Bolena e Mary Stuart, preferindo-se, quanto à última, o gume do machado, contando-se que o primeiro golpe falhou. Tocante aos carrascos, é bom dizer que uns e outros usavam gibão vermelho. Na França havia matador oficial morando em compartimento posto embaixo da guilhotina. Os executores eram respeitadíssimos pelo povo. Podiam, nas feiras-livres, carregar gratuitamente o alimento que lhes coubesse nas mãos. Que coisa indigesta!

Comentando-se ainda a pena de morte, é incrível que nos Estados Unidos de Obama ainda se aplique a execução fatal em alguns segmentos. Por exemplo: o Texas, império dos Bush, executa prisioneiros, antes pela eletroplessão, agora a poder de injeção na veia, nem sempre absolutamente eficaz. Vai daí, os islamitas se entusiasmam. Se milhares de cabeças rolaram no piso ensanguentado da Madame Satânica, se duas rainhas perderam a cabeça publicamente na Inglaterra elizabeatana, se os silvícolas penduravam crânios à porta das ocas, isso tudo por motivos políticos e religiosos, por que eles, do pseudo Estado Islâmico, não poderiam mostrar ao mundo, fiados em Alá, que também sabiam fazê-lo? As razões, basicamente, são o ódio racial, a defesa hipotética de território e as trinta mil virgens (Há divergência. Segundo alguns são só setenta e duas). Os islamitas não têm especial predileção por pescoços japoneses. Entretanto, coincidentemente, havia dois prisioneiros nipônicos, isso em sequência aos ocidentais antes decapitados. Fiados na similitude com os Estados Unidos da América do Norte, os assassinos filmaram o refém Haruna Yukawa e lhe cortaram a cabeça a faca, fazendo-o um carrasco vestido de negro. Em seguida, mataram o outro. A história é confusa, mas os executores pareciam querer 200 milhões do governo japonês. O Japão não pagou. Mataram-no também, segundo consta. Obama explode em santa ira, porque, entre outras razões, a execução capital precisa ser rodeada de decisões advindas do Poder Judiciário, nunca concretizadas sob o gume de um cutelo de caça, e sim a poder de veneno assepticamente instilado nas veias do condenado, desinfetando-se o local para evitar micróbios, esmerando-se os médicos, mas nunca a poder de exibição mundial na TV. Isto significa que nos Estados Unidos da América do Norte também se mata, sofisticadamente, é verdade, inexistindo o pretexto das 72 virgens. A China é pragmática: uma bala na nuca, rapidinha por sinal.

A crônica poderia ser pittigrilesca. Entretanto, o famoso teatrólogo não quis chegar a tanto. No fim de tudo, mata-se aqui e ali, um em nome do Estado, legitimado pelo juiz, outro obedecendo a crença religiosa, autorizado por Alá, restando alguns a fazê-lo a título de homenagem a Maomé. No entremeio de tudo resta a horripilante foto do refém Kenji Goto, ajoelhado ao lado de diabólico matador. O espetáculo é indizivelmente sofrido. A bem-dizer, legitimaria uma declaração de guerra. Contra quem? Contra quantos? Digam-no os cientistas políticos pontilhando por aí.

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