Paradoxo da Corte

Conversão da execução de tutela específica em perdas e danos

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3 de fevereiro de 2015, 7h00

O processo judicial — direção no movimento — consubstancia-se num instituto essencialmente dinâmico, e, por isso, durante o seu curso, a realidade fática levada pelos litigantes à cognição judicial pode sofrer profunda alteração, chegando até mesmo a alterar substancialmente o resultado da demanda.

Assim, quando sobrevier um fato involuntário ou não ao ajuizamento da ação, em qualquer de suas fases, que tenha o condão de modificar a estabilidade do processo, não poderá ele deixar de ser apreciado pelo órgão jurisdicional. É, aliás, o que preceitua o artigo 462 do CPC: “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença”.

Dúvida não pode haver no sentido de que essa regra legal também se aplica durante a fase de execução, seja nos próprios autos, seja em demanda executiva autônoma. Se o fato superveniente disser respeito à alteração material da coisa objetivada pelo credor, é evidente que este não perde o seu direito à satisfação.

Desse modo, ficando comprovado, no curso da execução, que o objeto da execução, diante da mora do devedor, teve o seu valor depreciado ou mesmo que acabou perecendo, nasce para o exequente, de um lado, o direito de rejeitar o recebimento da coisa devida; e, de outro, a pretensão de ser reparado mediante a recomposição de perdas e danos.

Resulta claro, pois, que a demora no cumprimento da obrigação autoriza a recusa da prestação, sobretudo nas situações nas quais a perda do interesse objetivo do credor tenha sido precedida por ação condenatória de obrigação específica, consistente num fazer, não-fazer ou dar coisa certa.

Há mais de duas décadas, a redação do artigo 461 do CPC é precisa ao preceituar que: "a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente".

Sobre esse tema, Eduardo Talamini (Tutela relativa aos deveres de fazer e não fazer, 2ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2003, pág. 336) é categórico ao afirmar que não existe relutância em aceitar a conversão da obrigação específica em perdas e danos, mesmo após a sentença, nos seguintes termos: "Também não apresenta maiores dificuldades a definição da via processual a ser adotada, quando a impossibilidade do resultado específico ou a opção do autor pela indenização pecuniária ocorrerem depois da sentença final. (…) A assertiva é válida ainda quando a sentença silencie acerca da possibilidade de futura conversão em perdas e danos. O provimento que veicula o reconhecimento do direito ao fazer ou não fazer e impõe o resultado específico traz consigo a autorização da obtenção do equivalente pecuniário, restando apenas a verificação dos pressupostos materiais do dever de ressarcir ou compensar, eventualmente ainda não examinados no processo já realizado".

Vale invocar, a propósito, importante precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 598.233-RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no sentido de que, a impossibilidade de entrega de certo bem contratado verificou-se apenas quando da fase executiva, circunstância que não impediu a conversão da obrigação em perdas e danos, textual: “… Contudo, verificada já na ação de conhecimento a impossibilidade de cumprimento da obrigação como anteriormente estabelecida, é cabível a condenação pelas perdas e danos… No caso dos autos, não houve uma deterioração da coisa, mas uma impossibilidade, segundo o acórdão, de o devedor cumprir com a sua obrigação, que era a de repassar os 25% do total da área construída, inclusive quanto aos acréscimos. É certo que somente na execução, quando verificada a impossibilidade de entrega da área acordada é que seria a devedora condenada a indenizar a autora”.

Assim, ainda que deferida a tutela específica perseguida pelo credor, restando impossível o cumprimento da respectiva obrigação ou caso o interesse do credor não mais subsista, o meio processual apto à satisfação do direito daquele consubstancia-se na conversão da execução em perdas e danos. Tal escolha, aliás, não é passível de impugnação (v., nesse sentido, Araken de Assis, Manual da execução, 16ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2013, pág. 647).

Discorrendo sobre esta relevante temática, Teori Albino Zavascki assevera que, “frustrada a execução específica para entrega de coisa, tem o credor direito a convertê-la em execução por equivalente, nos termos do artigo 627, mesmo quando o título for extrajudicial. Na liquidação incidental ali prevista, aplica-se (como, aliás, ocorre em se tratando de título judicial), a técnica da cognição parcial, no que se refere à amplitude: faz-se juízo apenas sobre o valor da coisa prevista no título, e não quanto à existência da obrigação” (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8, São Paulo, Ed. RT, 2000, pág. 445).

Nem se afirme, por outro lado, que a conversão da obrigação específica em perdas e danos está condicionada ao pedido inicial, ou mesmo prevista no dispositivo da sentença.

Ainda que não tenha sido deduzido pedido de conversão em perdas e danos da obrigação específica, se, porventura, sobrevier a "destruição do interesse do credor", ainda assim, é perfeitamente possível a conversão da obrigação em perdas e danos.

Ademais, não há se falar em decisão extra petita, pois, em última instância, o vencedor estará ambicionando proveito econômico equivalente (v., em senso idêntico, Cassio Scarpinella Bueno, Curso sistematizado de direito processual civil, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, pág. 475 (sobre obrigações de fazer e não-fazer) e pág. 509 (a respeito da obrigação de dar).

Em outras palavras: não se faz necessário, à evidência, que o dispositivo da sentença preveja a possibilidade de o vencedor-exequente requerer a conversão em perdas e danos. A equivalência do proveito econômico não emana do provimento jurisdicional, mas da própria interpretação axiológica do texto legal.

Não há como conceber um sistema jurídico no qual o exequente esteja constrangido a determinada pretensão in executivis, fadada ao insucesso, se for possível alcançar o mesmo proveito econômico por meio de pleito indenizatório, sobretudo na hipótese em que o executado contribuiu de forma desidiosa, a ensejar a frustração do cumprimento atempado da obrigação específica!

Repudiando a hipótese de o processo proporcionar situação de vantagem contrária ao direito a qualquer litigante, Chiovenda (Dell’azione nascente dal contratto preliminare, Saggi di diritto processuale civile, vol. 1, Roma, Foro Italiano, 1930, pág. 110), em conhecida doutrina, exortava que: “o processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que tem direito de conseguir”.

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