Processo eletrônico

A tragicomédia do e-processo para quem lida com os sistemas informatizados

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3 de fevereiro de 2015, 7h33

Caro ledor, pedimos que se imagine à porta do teatro, ingresso à mão. Tomado assento, luzes apagadas, cortinas abertas, tem início o espetáculo, cujo protagonista pode ser você; sim, você, distinto leitor, a depender do papel que desempenhe nestas pequenas tragicomédias.

CENA 1
Primeiro ato

Em uma quente tarde de quinta-feira, o estagiário — ah, sempre o estagiário, já dirão alguns entre dentes — toma nota da divulgação de um acórdão, com publicação para o dia seguinte, uma sexta-feira.

Pensa o pobre em sua cadeira e à frente de seu computador: ora, amanhã comunico ao advogado responsável, pois diligente como sou acessarei ao sítio eletrônico do Tribunal e lá obterei a cópia do acórdão, uma vez que o processo é eletrônico. Muito bem pensado, repete mentalmente para si, várias e várias vezes, como um mantra.

Segundo ato

Na sexta-feira, cujo dia foi ainda mais quente que o anterior, o estagiário prontamente acessa ao sítio eletrônico da Corte e, para seu desespero, o acórdão não foi disponibilizado, não obstante constar no andamento processual sua publicação para aquela mesma data, aquele aterrorizador momento.

Mãos frias e sinapses à mil. O que fazer, pensa o bestunto da tarde anterior. Nada, decide. Na segunda comunico ao advogado.

Algo como que paralisado e ao final do dia, decide comunicar ao advogado o ocorrido. Como já passava das 19 horas, decide o patrono resolver o assunto na segunda-feira pela manhã, com o coração na boca, mas tentando tranquilizar o jovem aprendiz.

Terceiro ato

Confirmada em consulta ao sítio eletrônico do Tribunal a não publicação eletrônica do acórdão, mesmo que todo o trâmite processual indique o contrário, ao telefone, trava o advogado o diálogo que se segue com o diretor de Secretaria da Turma competente.

Advogado: —Bom dia, meu nome é Ciclano que gostaria de uma informação, por favor? (como se estivesse ajoelhado ao milho a dias)

Diretor: —Sim? (com o tom enfadonho)

Advogado: —Estou acessando ao sítio eletrônico do Tribunal, pois teria sido disponibilizado e considerado publicado um acórdão na última semana que não consta no e-processo, isto tudo de quinta para sexta-feira passada. O Sr. saberia informar o que ocorreu?

Diretor: — Um minuto (faz-se uma longa pausa). É, de fato o acórdão não está no e-processo, mas não se preocupe doutor, entrarei em contato com o Departamento de Informática para que a liberação ocorra e o Sr. possa acessar o documento. Até o meio do dia tudo estará resolvido.

Advogado: — Perdão, mas o Sr. não está entendendo (diz com cuidado, antes de prosseguir). Com a falha no sistema, o prazo para recorrer sofreu prejuízo… (interrompido)

Diretor: —Que nada, doutor. Seu prazo não começou a contar a partir de hoje, segunda-feira? Pois então, está tudo dentro da normalidade. E mais, se o Sr. tivesse passado por aqui na sexta-feira nós teríamos entregue uma cópia física do documento.

Advogado: —Mas, Sr. Diretor, o documento somente será disponibilizado a partir da metade do dia. No mínimo já perdi seis horas de trabalho, sem contar que já poderia ter iniciado o exame do acórdão na sexta-feira e no final de semana último. E se eu morasse em outro estado da federação, como faria sem o e-processo?

Diretor: —Ora, doutor (do tom irônico ao pejorativo), simples, o Sr. contrataria um correspondente…

Quarto ato

Próximo ao meio do dia, estagiário sentado à sua frente, o advogado caminha em sua sala de um lado para o outro com o Código de Processo Civil em uma das mãos, Regimento Interno do Tribunal à outra, balbuciando frases desconexas após saber pelo acadêmico em Direito que o documento ainda não estava disponibilizado.

Advogado: —Ora, ora, ora, qual a razão então do e-processo? Tem de haver uma saída, tem de haver. Pensa, pensa… . Repetia sem parar.

Virando-se para o estagiário com o olhar em chamas, dispara:

Advogado: —Pensas tu também, ó rapaz.

Estagiário:  —(após doloroso silêncio) Oi?

Advogado: —Nada, nada. Veremos o que fazer. Agora vai encostar teu umbigo em algum balcão.

O estagiário sai para sua baia dizendo que tem coisas a terminar. O advogado, então,  senta e começa a freneticamente redigir uma peça reclamando a restituição de seu prazo.

Quinto ato

À porta do Tribunal, cópia da petição protocolada em mãos, o advogado pede para falar com a chefe de gabinete do relator, pois fora informado de que o julgador não retornaria naquela tarde ao Tribunal.

Inconformado, explica à zelosa servidora seu martírio e o diálogo que manteve com o Diretor de Secretaria, e a sordidez do tratamento que daquele recebeu, levando-se em conta que o mesmo nunca deve ter passado pelas agruras do exercício da advocacia.

A chefe de gabinete toma nota de tudo e, com um golpe de misericórdia, consulta o sistema informatizado e, surpresa, lá estava o acórdão em sua integralidade.

Sem ruborizar o patrono explica que o documento não estava lá tempos antes de sua saída do escritório, como comprova a tela do andamento por ele impressa e juntada ao seu pedido; mais ainda, que a decisão somente estava lá porque fora ele quem alertara o problema ao Tribunal.

Despediram-se com a promessa de que um magistrado convocado analisaria o pleito.

Ato ‘fatal’

A dois minutos do encerramento do expediente no Tribunal, e na terça-feira, dia seguinte ao despacho mantido, adentra esbaforido à sala do advogado o estagiário, andamento impresso em mãos, comunica que uma decisão foi proferida ao pedido de restituição de prazo formulado.

—E então? Pergunta o advogado sem se permitir negar a corrente de tensão que lhe corria pelo corpo.

—Foi i-n-d-e-f-e-r-i-d-o. Tratou de pausadamente informar o estagiário, para que não precisasse repetir mais de uma vez a mesma notícia.

Com o documento amassado entre os dedos, o advogado toma ciência que o indeferimento se dera com fundamento em informações prestadas pelo Diretor ao magistrado convocado, com um reforço na tinta feito pelo Informante, em especial para o fato de que havia o patrono sido comunicado que a decisão estava à sua disposição na Secretaria e, mais que isso, que se tratara de um mero erro do Departamento de Informática.

CENA 2
Primeiro ato

Entre tantos e muitos outros prazos, o advogado trabalha aceleradamente para fechar um recurso, cujo prazo final era naquela sexta-feira, por meio eletrônico e para um Tribunal localizado em outro estado da federação.

Um café aqui, um livro acolá, uma pesquisada em uma das várias abas de programas abertos na tela do computador, o patrono segue firme em seu intento.

Não percebe que o tempo lá fora vai tomando ares de um pesadelo que se desenha nas pesadas nuvens que se formam ao final do dia; e disso nem se deu conta pelo alerta que lhe fez a patroa, quando ele ligou para avisar que a noite seria longa e que ela não o esperasse para o jantar.

Quase encerrando a peça processual, ‘pum’, eis que cai a energia. Olha pela janela e constata que tudo está às escuras. Pelo celular recebe a notícia da mulher de que também no bairro onde mora a situação é a mesma.

Após esperar por angustiantes horas, dá-se conta pelas tuitadas que lê no celular que o problema atingiu inclusive o estado da federação para o qual tem de eletronicamente enviar o recurso, e mais, não há previsão para o reestabelecimento da energia.

Leva às mãos à cabeça.

Segundo ato

Pouco depois da zero hora a energia é reestabelecida. E como ainda estava no escritório decide por transmitir o recurso, informando em preliminar o ocorrido.

Com alguma dificuldade, pois o sistema informatizado somente recebe o apelo ‘em doses homeopáticas’ e em um limitado número de arquivos, ‘fatiados’ que têm de ser – uma vez que é impossível a remessa em um único arquivo -, termina a tarefa quarenta e cinco minutos após seu início.

Leva às mãos ao céu.

Terceiro ato

Dois dias seguintes ao ocorrido – e entre um e outro prazo – recebe a notícia de que seu recurso foi considerado intempestivo.

Após alguns telefonemas, uma reunião com seus colegas de firma e enormes goles de café, decidido está que vai recorrer de tal decisão.

E assim ‘dá tratos à bola’.

Livros, anuários, ementas resultantes de pesquisas, tudo espalhado sob sua mesa.

Leva às mãos ao teclado.

Quarto ato

Recurso eletronicamente interposto. Longas horas de voo. Está o advogado agora à porta de um dos gabinetes dos julgadores que apreciarão seu apelo. Nas audiências que atendeu as lágrimas não lhe caem à face, escorrem pelo corpo em forma de um suor frio, obrigando-o a relembrar o infortúnio.

Os responsáveis por analisar seu pedido são afáveis, escutam sua justificativa, mas são honestos ao afirmar que pouco há a fazer, pois a jurisprudência é remansosa sobre a matéria e não há que permitir brechas, pois em primeiro plano é necessário prestigiar o e-processo.

Leva às mãos à boca.

Ato ‘fatal’

O julgamento foi rápido e com o useiro emprego do jargão: ‘Com o relator’, dá-se o fato consumado, a intempestividade foi mantida em valorização ao e-processo.

Luzes baixas, olhar ao longe, celular tocando sem parar, sentado na poltrona de canto de sua sala está o advogado.

Leva às mãos ao revólver.

CENA 3
Primeiro ato

O estagiário entra à sala do advogado e comunica que não foi possível fazer cópia do documento processual, pois que ele não tem procuração nos autos. O advogado terá de ir pessoalmente ao Tribunal Administrativo.

— Ah – diz o estagiário – e nosso pessoal da outra Unidade está ‘cobrando’ com urgência a certidão de trânsito em julgado.

Segundo ato

Já no setor de documentação e no dia seguinte, o advogado dirige-se a um dos servidores e promove a solicitação do documento, antes, entretanto, joga conversa fiada sobre a rodada de final de semana dos campeonatos regionais, e, então, comunica o real motivo que o levara até lá: ser o portador de procuração nos autos.

Com cara de poucos amigos o ‘servidor’ toma nota dos dados do processo e vai até à mesa, pensando o advogado que o time do analista deve ter tomada uma coça. De costas para o advogado o servidor avisa que o sistema está lento, muito lento.

O advogado recebe aviso ainda mais assustador, o e-processo não promove a identificação das peças, nem as páginas em que esses se localizam, fazendo com que todos os volumes do e- processo tenham de consultados, quadro a quadro.

Terceiro ato

Quarenta e cinco minutos se passaram. Após pegar um copo d’água retorna à sala de documentação, oportunidade em que o servidor que lhe atendera está agora cercado por outros quatro, todos falando em voz baixa.

Um deles levanta os olhos em direção ao advogado e faz um sinal aos demais, que então o encaram.

O que lhe parece ser o mais articulado deles toma a palavra.

Servidor: —Doutor, é o seguinte, seu processo já foi expedido, assim não dá para obter a cópia do documento solicitado.

Advogado: —Mas, como assim? O processo estava aqui ontem!

Servidor: —Pois é, mas baixou à origem. Daí que não podemos fornecer a cópia solicitada.

Advogado —Ué, mas o processo não é eletrônico? A base de consulta não é única para os órgãos da Administração? Como pode?

Ato ‘fatal’

Os servidores seguem olhando-se uns aos outros em silêncio, enquanto o advogado já  na rua segue desorientado buscando uma explicação, sem o documento em mãos.

Fecham-se as cortinas.

A peça acima é mera ficção e quiçá não mereça aplausos, talvez sim apupos, sendo que qualquer coincidência com a vida real é, ou foi sim, tentativa de retratar algo próximo a realidade.

Eis a tragicomédia do e-processo para aqueles que têm de lidar com os sistemas informatizados, seja para os que estão à frente do balcão, seja para aqueles que dele estão atrás.

O e-processo é por óbvio um avanço, traz celeridade ao trâmite processual na esfera do Poder Judiciário e junto aos demais órgãos da Administração.

É a realidade. Não há volta.

Ocorre que alguns problemas têm sido tratados como males de menor grandeza, até com zombaria, necessitando, ao contrário, um tratamento mais cuidadoso e parcimonioso, em especial daqueles que detém e para quem é reclamado um poder decisório final sobre o tema.

Daí que a partir da raiz da palavra teatro derivada do grego theaomai1 (θεάομαι) — olhar com atenção, perceber, contemplar — reclama-se não ver o e-processo em um sentido comum, mas sim em uma experiência mais intensa, envolvente, meditativa, inquiridora, a fim de descobrir seu significado e seu emprego de modo mais intenso; uma interpretação pelas partes interessadas de seu verdadeiro alcance.

O e-processo tem de se apoiar em alguns pressupostos básicos: quem o alimenta, quem o consulta, e o resultado que se obtém.

É um fenômeno que existe no espaço virtual, cuja concretude será plena quando a informação que pretende publicitar se dê no espaço real (físico), sem ferir o acesso à informação, o direito de petição, a ampla defesa e o contraditório.

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