Constituição e Poder

Por que dizem que ato normativo tem duas caras?

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3 de fevereiro de 2015, 19h42

Spacca
Dedico o presente artigo ao professor Gabriel Nogueira Dias, em homenagem à sua espetacular pesquisa de Doutoramento, “Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen”. Depois de sua publicação entre nós, ninguém mais no Brasil tem o direito de dizer que não conhece a obra de Hans Kelsen.

A maior parte dos estudiosos no Brasil acredita que a Teoria da Gradação Escalonada do Direito (Stufentheorie) seria uma criação de Hans Kelsen, o grande jurista do Século XX. Contudo, deve-se a sua autoria a Adolf Julius Merkl, um dos cofundadores da Escola de Viena (juntamente com Kelsen e Alfred Verdross). Vamos falar um pouco desse personagem e de sua teoria. 

Na primeira grande obra publicada por Kelsen, em 1911, os seus famosos “Problemas Capitais da Teoria do Direito do Estado” (Hauptproblemen der Staatsrechtslehre), lembra Robert Walter, o pai da Teoria Pura do Direito limitou-se a realizar uma análise das leis, excluindo, conscientemente, a discussão sobre a perspectiva da produção e da execução dos atos normativos. De fato, como insistem os especialistas, no seu famoso primeiro trabalho científico, Kelsen concentrou-se em uma consideração estática do direito, deixando para o futuro uma investigação sobre a conformação e estrutura dinâmica do ordenamento jurídico[1]

O direito foi então observado, estaticamente, apenas como conjunto de normas legais (atos normativos) que prescrevem condutas, não se preocupando o grande Kelsen em descrever o processo dinâmico mediante o qual a ordem jurídica produz e aplica as normas que a compõem. Entretanto, como explica o Prof. Gabriel Nogueira Dias, não obstante voltar-se naquele momento a uma análise da dimensão estática do Direito (o direito como “agregado estático de deveres”), o pai da Teoria Pura já pressentia a possibilidade (não ainda imprescindibilidade) de uma análise sobre a estrutura dinâmica da ordem jurídica[2].

Foi apenas sob a reconhecida influência da Teoria da Gradação Escalonada do Direito (Stufentheorie), de seu famoso discípulo, Adolf Merkl, que Kelsen assimilaria  definitivamente em sua Teoria Pura a análise da dinâmica da ordem jurídica. A influência da Stufentheorie de Merkl foi expressamente reconhecida no prefácio da segunda edição (não modificada) dos “Problemas Capitais”, em 1923, em que, lembra ainda Robert Walter, Kelsen expressamente reconhece que havia “tomado a teoria do escalonamento como uma parte essencial no sistema da Teoria Pura do Direito”[3]

Adolf Merkl sustentara, em diversos trabalhos, que o direito deve ser compreendido como um “sistema de produção de atos normativos de forma escalonada”. Na verdade, a teoria de Merkl teve tal influência nos meios acadêmicos, e não apenas no círculo da Escola de Viena, que, anota Robert Walter, apesar de sua indiscutível complexidade, acabou por ser vítima de uma simplificação excessiva.

Graças a Stufentheorie, os estudiosos do Direito voltariam sua atenção não apenas às normas que impõem condutas, mas também às normas que disciplinam a própria produção e aplicação do Direito. Como acentuaria o próprio Kelsen  posteriormente, é uma característica dos sistemas jurídicos que “o direito regule sua própria criação e aplicação”[4]. Mais do que isso, diante dessa primeira constatação, Kelsen, com base ainda em Merkl, retiraria uma conclusão ainda grave: “Se as normas jurídicas podem ser criadas somente de acordo com outras normas, isto é, apenas com fundamento na ordem jurídica, a criação do direito é simultaneamente aplicação do mesmo, pelo que os atos criadores de direito são atos aplicadores de direito”[5].

Como se vê, a Teoria da Gradação Hierárquica do direito Adolf Julius Merkl está longe de permitir a explicação simplificadora que o tempo acabou por consagrar. Ao afirmar que  direito é uma construção escalonada ou hierarquizada de normas, Merkl buscava explicar que todo ato jurídico, isto é, toda decisão conformada em uma norma jurídica (lei, ato administrativo ou sentença judicial), revela simultaneamente uma elemento de produção/criação como de aplicação/execução da ordem jurídica.

A lei ordinária, por exemplo, não seria apenas simples aplicação-execução da Constituição, mas também condicionaria a produção/criação de outros atos normativos (atos administrativos e sentenças, por exemplo). Tanto a sentença, que concretiza a lei ordinária, como na lei ordinária, que concretiza a Constituição, são atos jurídicos que, simultaneamente, criam e aplicam (executam) normas jurídicas.

Para quem estava e está acostumado a uma leitura simplificada da ordem jurídica, como estrutura estática de onde atos jurídicos concretos, numa quase derivação lógica, surgem como mera execução de normas legais abstratas, a Teoria de Merkl chamava a atenção para a maior complexidade dos sistemas normativos.  A Stufentheorie jogava luz sobre a difícil relação entre os níveis de produção e aplicação das normas jurídicas.

Lembra Robert Walter que, por exemplo, “o legislador é normalmente menos limitado pela Constituição que o poder regulamentar ou o juiz pela lei”. Mas, em todos os escalões, existem margens de liberdade e discricionariedade conferidas aos órgãos habilitados a conformar -por atos normativos inferiores – as normas de hierarquia superior: “A teoria da formação escalonada quer desta maneira contrarrestar a ilusão de que a produção do direito seja um processo quase-lógico e indicar que na ordem sucessiva não apenas se executa direito, mas também se cria direito e deste modo os atos jurídicos têm, de uma parte, função executiva, de outra parte, função criadora do direito e, finalmente, para utilizar uma expressão de Merkl, possuem uma face dupla jurídica, têm Cabeça de Jano”[6].   

 

Outra consequência da Teoria Escalonada seria a revolução provocada em relação ao papel dos operadores do direito. Até então, o centro de produção normativa centrava-se exclusivamente na legislação, sendo os atos administrativos e sentenças fenômenos jurídicos limitados à condição de simples derivação, ou melhor, execução das normas legais[7]. Como bem esclarece o Prof. Gabriel Nogueira Dias, Adolf Merkl, contudo, demonstrará “que a concepção original de Kelsen – segundo a qual decretos, sentenças etc. não representam deveres jurídicos autônomos, ou seja, que o conteúdo desses fenômenos jurídicos sempre pode se reduzir inteiramente ao da lei – não está em condições de apreender o processo jurídico na sua singularidade substancial”[8]. Segundo Merkl, a própria natureza da lei, “como norma geral e abstrata (…), para não ser um nada, requer uma complementação por meio da ação concretizadora e individualizadora do operador do direito”[9].

A cabeça de Jano
Todo ato jurídico possuiria assim uma face dupla, pois o operador do direito não apenas aplica e executa uma norma de um nível mais geral e abstrato, como também participaria da própria criação e produção de atos normativos. Todo ato normativo, à exceção da Constituição, seria sempre simultaneamente ato normativo de criação e de aplicação/execução do Direito[10].

Estamos diante da famosa teoria da dupla face do direito (Das doppelte Rechtsantlitz): “Cada etapa  da aplicação do direito comporta uma ‘face dupla’, de que ela é um ato ‘condicionado’ e ‘condicionante’”[11]. De fato, todo ato normativo ao ser editado, por um lado, é condicionado pela “norma abstrata de nível mais elevado imediatamente superior” (à exceção da Constituição) e, de outro, todo ato condiciona a criação dos atos normativos que serão criados num nível normativo imediatamente inferior  (à exceção aqui é a dos atos jurídicos que, a exemplo das execuções judiciais, por estarem no fim da cadeia normativa não poderiam, de regra,  condicionar a produção de outros atos normativos) [12].

Essa compreensão colocaria “por terra a ideia de ‘uniformidade’ do direito”, que então se baseava numa visão estática da ordem normativa, que tinha na lei a “única forma do direito”. O direito, pois, só pode ser compreendido como um “fenômeno normativo dinâmico” [13].

Em resumo, para concluir, todo ato normativo é simultaneamente condicionado/vinculado (à exceção da Constituição) e condicionante/vinculante (à exceção dos atos de execução final, como as execuções judiciais) em relação a outros atos normativos.


[1] Roberto Walter. La doctrina del Derecho de Hans Kelsen. Universidad Externado de Colômbia, 2001, versão Kindle, posição 334 de 932. Ver também Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 197 e seguintes.

[2] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 197 e seguintes.

[3] Roberto Walter. La doctrina del Derecho de Hans Kelsen. Universidad Externado de Colômbia, 2001, versão Kindle, posição 334 de 932.

[4] Hans Kelsen. ?Que és un acto jurídico? Isonomia nº 4 Abril 1996, p. 65.

[5] Hans Kelsen. ?Que és un acto jurídico? Isonomia nº 4 Abril 1996, p. 65.

[6] Roberto Walter. La doctrina del Derecho de Hans Kelsen. Universidad Externado de Colômbia, 2001, versão Kindle, posição 364 de 932.

[7] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 206.

[8] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 206.

[9] Adolf Merkl. Die Verordnungsgewalt im Kriege (1915), apud Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 207.

[10] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 208.

[11] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 208/209.

[12] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 209/210.

[13] Gabriel Nogueira Dias. Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito na Obra de Hans Kelsen. SP: Revista dos Tribunais, 2010, p. 213.

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