Segunda Leitura

Brasil não deve aguardar uma tragédia para ter sua lei antiterrorismo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de fevereiro de 2015, 7h18

Spacca
O atentado ocorrido na França contra jornalistas do periódico satírico Charlie Hebdo, no dia 7 de janeiro passado, traz de volta à discussão a necessidade de uma lei antiterrorismo no Brasil.

Muitos consideram tais fatos absolutamente estranhos à nossa realidade. Acreditam que estamos imunes a tal tipo de ação. É possível que também acreditassem que no Brasil jamais haveria falta de água ou que seríamos sempre os reis do futebol.

Mas, afinal, o que vem a ser o terrorismo? No que ele difere de outros crimes?

O promotor peruano Luis Enrique Manco define o terrorismo como: “Sucessão de atos violentos para dominar por temor (medo, espanto ante um perigo ou ameaça). Forma de política violenta dirigida contra um governo, um estado, um grupo, uma organização social ou uma população. Persegue a finalidade de criar um clima de intimidação que facilite os objetivos dos terroristas (Terrorismo. Violencia. Guerra.- Centro de Asesoría y Estudios Sociales)”.[1]

O terrorismo só recentemente surgiu nos tratados internacionais. O primeiro de que se tem notícia é o “Convênio Internacional da Organização das Nações Unidas para a repressão dos atentados terroristas cometidos com bombas”, fruto de reunião realizada em Nova York, EUA, em 15 de dezembro de 1997.

No âmbito da América Latina, o tema tem sido tangenciado. Há o Comitê Interamericano contra o Terrorismo (CICTE), que é uma entidade criada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em termos de reuniões, em Lima (Peru) realizou-se de 23 a 26 de abril de 1996 a Conferência Especializada Interamericana sobre Terrorismo. Na ocasião, foi aprovada a “Declaração e o Plano de Ação de Lima para prevenir, combater e eliminar o terrorismo”. Todavia, não se tem notícias de resultados concretos dessas iniciativas.

No âmbito doméstico, a maioria dos países da América Latina criou leis antiterror, seja porque sofreram ataques por parte de guerrilhas (v.g., Colômbia), seja porque essa nova técnica de ataque, mais cedo ou mais tarde, pode ser utilizada, pelas mais diversas razões, nos seus territórios.

As leis antiterrorismo são sempre editadas em meio a forte polêmica. Ataca-se a redação dos tipos penais, afirmando-se serem muito abertos e com possibilidade de alcançar todos indistintamente. Atribui-se a esses dispositivos a possibilidade de que sejam impedidas manifestações sociais, inclusive de povos indígenas, ações estas essenciais ao regime democrático. Imputa-se-lhes rigor excessivo nas penas.

Na Argentina, a Lei 26.268/2007, marco legal antiterrorista, foi modificada pela Lei 26.734/2011. Com nova redação ao Código Penal, o texto estabeleceu que, quando alguma atividade fosse feita com finalidade terrorista, a pena seria elevada ao dobro entre o mínimo e o máximo. Em meio a polêmicas, foi introduzido um parágrafo no artigo 41, estabelecendo que a duplicação da pena não se aplica quando os fatos tiverem lugar no exercício de direitos humanos e sociais.

No Peru, que sofreu por muitos anos a ação dos Tupamaros, diversos textos legais tratam da matéria. Por exemplo, o Decreto-Lei 25.475 estabelece as penas para os delitos de terrorismo. A Lei 26.220 fixa regras para o exercício do direito de arrependimento às pessoas sentenciadas por terrorismo ou traição à pátria. A Lei 26.697 suspende a competência da Justiça Militar para processar os crimes de terrorismo.

Em El Salvador, o Decreto 108, de 21 de setembro de 2006, colocou em vigor a Lei Especial contra Atos de Terrorismo. A lei salvadorenha é minuciosa e prevê no artigo 29 a figura do financiamento de atos de terrorismo, punindo-o com sanção de 20 a 30 anos de prisão.

O Paraguai editou, em 23 de junho de 2010, a Lei 4.024, “que castiga os fatos puníveis de terrorismo, associação terrorista e financiamento do terrorismo”.[2] A lei paraguaia tem apenas três artigos e as penas são mais brandas do que em outros estatutos semelhantes. Por exemplo, no artigo 2º está estipulado que criar uma associação com finalidade terrorista ensejará uma punição de 5 a 15 anos de prisão.

No Brasil tramitam no Congresso Nacional vários projetos de lei sobre o assunto. O primeiro deles é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 728, de 2011, apresentado pelo senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). A proposta teve parecer contrário em três comissões, e sua aprovação é tida como improvável.

O segundo é o PLS 762/11, de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP).  Esse texto foi apensado ao PLS 707/11, do senador Blairo Maggi (PR-MT). Por fim, todos foram anexados ao projeto de lei que cria o novo Código Penal e, assim, aguardam que este seja definido para só depois serem examinados.

As discussões que aqui se travam são semelhantes às dos demais países. Porém, entre as teses contrárias, a mais forte é a que teme que uma lei antiterrorista venha a ser utilizada contra as manifestações dos movimentos sociais.

A preocupação não se justifica. Não me parece difícil que possa o legislador estabelecer limites e ser coerente em um texto, conciliando o combate à prática terrorista e protegendo as manifestações populares. Basta colocar um dispositivo afirmando: “Não se aplica o disposto nesta lei quando o agente estiver no exercício de direitos sociais ou outros assegurados na Constituição.”

E nem se diga que temos um Código Penal que poderia ser invocado. Nosso Código é de 1940, e seus crimes e penas são direcionados a ações individuais, como o homicídio ou o furto.

Não se invoque também a Lei de Segurança Nacional (7.170, de 14 de dezembro de 1983), editada pouco antes da abertura política. Dita lei, ignorada pela comunidade jurídica, tem por objetivo proteger a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, bem como a pessoa dos chefes dos Poderes da União.

Referidas leis não têm previsão para atos como associar-se para fim de prática de atos terroristas ou promover o financiamento do terrorismo. Isso significa que quem for surpreendido em tais atividades ficará impune por falta de lei.

Mas alguém poderá pensar: por que isto ocorreria no Brasil? Afinal, não temos ódio religioso, guerrilha ou ideais separatistas radicais. A resposta é simples. Não precisamos desses requisitos para termos terrorismo em nosso território. Ele pode surgir simplesmente para chamar a atenção mundial e nem ser dirigido contra brasileiros especificamente. Por exemplo, nas Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, pode um atentado terrorista visar a delegação de um dos países participantes.

E mais. Vivemos na sociedade do espetáculo, da imagem. Um atentado pode ter por objetivo a transmissão de imagens, de vídeos, de poder. Frustrações pessoais, fracassos profissionais e isolamento social podem levar pessoas a atos extremos que as tornem famosas, heróis junto à sua comunidade. Atualmente, terroristas usam câmeras GoPro[3] acopladas aos fuzis e o slogan publicitário da GoPro é “seja um herói”.[4]

Pois bem, diante do quadro que se avizinha, cabe ao Congresso Nacional dar andamento aos projetos de lei antiterrorismo, discuti-los sem a pressão de algum acontecimento trágico, consultando a sociedade, associações de classe, movimentos sociais e a Academia, oferecendo assim, ao Brasil, uma lei moderna, equilibrada e eficiente.

 


[3]  É “a câmera portátil que cabe na palma da mão e leva ao nível máximo a ideia de fotografar, filmar e postar cada momento da vida. Com suportes para ser colocada em capacetes, pranchas de surfe, hastes, ou onde for, ela é a primeira máquina a registrar com apuro o mundo pela perspectiva da visão em primeira pessoa. Em http://veja.abril.com.br/noticia/vida-digital/gopro-a-camera-e-voce/, acesso em 20.1.2015.

[4] Gabriel Zacarias, “Terrorismo GoPro”, Estado de São Paulo, Aliás, 25.1.2015, E8.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!